Sem Rumo - Capítulo 2: Surpresa

Parte da série Sem Rumo

Três dias haviam se passado desde o meu encontro com o cara desconhecido e eu ainda me sentia motivado. Meu comportamento mudou, causando espanto em Henrique e Wilian.

_Acho que alguém entrou em um relacionamento cor de rosa. - disse Henrique, me olhando com um sorriso zombeteiro.

_Acho que é aquele Gabriel da sala dele. - disse Wilian, dando uma leve cotovelada em Henrique.

_Acho que os dois deveriam cuidar das próprias vidas. - eu disse com um tom alegre e irônico.

Uma amizade nasceu entre mim e Gabriel, embora eu não soubesse como isso fosse possível. Éramos extremamente diferentes, exceto por algumas raras semelhanças, como o hábito de leitura. Conversávamos sobre muitas coisas, principalmente livros. Ele não sabia sobre minha opção sexual, e eu preferia deixar dessa forma. Henrique, Wilian e eu estávamos prestes a entrar no colégio quando parei em frente a eles e disse, sério:

_Não ousem falar  sobre minha sexualidade com o Gabriel. Eu ainda não sei qual seria a reação dele.

_Ei, ei, calma aí, Purpurina Queen. Não vamos dizer nada para o seu boy. - disse Henrique, fazendo gestos afeminados com as mãos enquanto dizia "boy".

_É, fica de boa, não vamos revelar seu lado arco-íris para ele. - disse Wilian, e os dois caíram na risada.

Suspirei. Por mais idiotas que pudessem ser, eles tinham minha confiança. Entramos no colégio e nos separamos. Chegando à minha sala, escutei gritos e um barulho de mesas e cadeiras caindo. Fiquei surpreso ao ver que a fonte daquilo era uma briga entre Gabriel e outro cara. Gabriel acabava de dar um soco certeiro no rosto de seu adversário quando outros garotos neutros na briga seguraram ele. O sujeito recém atingido pelo golpe fez menção de levantar e ir pra cima novamente, mas alguns amigos dele o seguraram. Eu sabia que Gabriel não tinha nenhum amigo ou colega ali, então eu supostamente deveria fazer alguma coisa. Mas o quê? Nunca tive que lidar com esse tipo de coisa antes.

Deixei minha mochila do lado da porta e fui até meu novo amigo violento. Ele estava vermelho de raiva, com um corte aberto em seu lábio inferior por onde saía muito sangue. Seu nariz também sangrava.

_Vem comigo, pro banheiro. - eu disse, meio incerto.

Gabriel se desvencilou dos braços que o seguravam. O cara com quem ele brigou já havia sido levado pelos amigos. Saímos da sala e fomos ao banheiro, que estava vazio. Peguei papel para secar mãos e molhei uma ponta na pia, virei para limpar um pouco do sangue, ele estava de frente para mim. "Bonito, mesmo acabado" pensei. Encostei a parte molhada do papel em seu corte labial.

_Ai, caralho! - reclamou, desviando a cabeça. - Me dá isso.

Ele pegou o papel da minha mão e foi até o espelho para limpar o sangue. Encostei-me na parede e o observei, fazendo uma cara indiferente.

_Fresco, esse monte de músculos é só aparência? - zombei, vendo a cara de dor que ele fazia cada vez que tentava limpar o ferimento. - E aliás, bom dia, não vou nem perguntar se você tá bem.

_Aquele viadinho desgraçado. - disse Gabriel de frente para o espelho.

Fiquei meio assustado quando ele disse "viadinho" com todo aquele ódio. "Será que...não, melhor não pensar nisso, não é só homofóbico que usa esse termo, e ele tá com raiva" pensei.

_Um viadinho bastante violento para fazer isso, hein? - eu disse, dando um risinho.

_Que bom que sua acidez voltou. Achei que aquela sua melosidade desses últimos dias não ia acabar nunca. - ele disse.

Então até Gabriel havia notado a minha mudança, e eu achando que nem era grande coisa. Eu passei a ver aquela nova vida de uma nova forma, mas isso não significava que eu ia ficar alegrinho pra sempre. Os questionamentos continuavam ali, mas agora eu tinha esperança, e era isso o que importava. O Victor frio e indiferente de sempre estava voltando.

_É, tem razão. Eu quase tenho prazer de ver essa sua cara toda surrada, deve ser sinal de que minha frieza está voltando. - nós rimos, ele tinha terminado de limpar o sangue da melhor forma possível - Ei, tem sangue na lateral da sua cara ainda. Me dá esse papel de uma vez.

Tirei alguns resquícios do seu rosto. Pensando bem, não fazia a mínima diferença, havia manchas vermelhas em sua camiseta. Ele ignorou aquilo e rumamos para a sala, o sino já ia bater.

***

Cheguei em casa às seis e meia da tarde, junto com Henrique e Wilian. Havíamos enfrentado aulas matutinas e vespertinas, nem todas muito legais, pelo menos na minha opinião. Estávamos acabados.

Fui para meu quarto enquanto os dois tomavam banho. Havia dois banheiros no apartamento, e eu me voluntariei para ser o último. Henrique ficou no quarto que possuía um dos banheiros e terminou antes de Wilian, então me disse para usá-lo.

Tomei meu banho e coloquei meu roupão. Saí do banheiro e vi Henrique deitado de barriga para baixo em sua cama com a cabeça voltada para a parede. Estava sem camisa, vestindo shorts de dormir. Talvez por descuido ou algo parecido, ele virou o rosto na minha direção, então pude ver que seus olhos estavam marejados e meio avermelhados. Ele virou seu rosto rapidamente de volta para a parede. Eu não sabia o que dizer ali, parecia que estavam conspirando contra mim, aquela era a segunda situação em que eu me sentia totalmente perdido naquele dia.

Henrique e eu sempre tivemos uma amizade estranha, talvez por ele ser um menino e eu ser gay. Era fato que eu não me relacionava bem com pessoas do sexo masculino. Nossa amizade sempre foi algo meio seco, sem aqueles negócios de contar todos os segredos e com contato físico chegando a quase zero, mesmo antes de ele saber sobre a minha sexualidade. Aquele foi um dos raros momentos em que vi ele mostrando uma forte emoção, e talvez a primeira vez que estava vendo ele chorar.

Finalmente decidi perguntar, mesmo hesitante:

_An... tá tudo bem?

Ele ficou em silêncio por um instante até que pareceu ter decidido que não adiantava mais esconder. Sentou-se na cama, de frente para mim.

_Eu tô bem. É só saudade da família e dos amigos.

_Sei... hum... você já não fez novos amigos? - perguntei.

_Só tem gelo dentro de você, Vic. Vou sentir saudades dos meus antigos amigos mesmo que eu faça novos. E a minha família é insubstituível.

_Entendo... - mas a verdade era que eu não entendia.

_Desculpa, Vic. Sei dos seus problemas com sua família. - ele disse, meio envergonhado por ter tocado no assunto.

_Ah, relaxa. Eu não ligo. Não é porque meu relacionamento familiar é uma merda que vou passar passar a odiar todas as outras famílias do mundo. - eu disse, e realmente não me importava.

Ele sorriu, retribuí com outro um pouco forçado e comecei a andar para fora do quarto.

_Ei, não vai nem dar um abraço para me acalmar?

Olhei para ele com um olhar duvidoso, do tipo "você disse isso mesmo?". Ele sorria abertamente e havia se levantado, meio que me esperando.

_É sério, Vic. Nossa amizade tem que sair dessa coisa fria que ela é.

Henrique tinha um terrível hábito de brincar com esse tipo de coisa e eu sabia que aquele era um caso, mas Gabriel tinha razão, eu estive meloso nos últimos dias e devia ter sobrado um pouco dessa melosidade, porque eu comecei a andar em direção a Henrique, que ainda sorria. Ele abriu os braços, seu corpo era realmente muito bonito, seu rosto também. Dei um abraço desajeitado. Minha altura não ajudava, meu rosto ficava em parte abaixo do ombro dele. Senti a pele quente das costas dele contra minhas mãos, e o calor do seu ombro em meu rosto. Aquilo até que era bom, o abraço.

_Ei,não vai ficar de pau duro, ok? - ele disse repentinamente, eu me soltei enquanto ele ria.

_Vai se fuder, Henrique! - eu disse rindo junto, dando um soco em seu braço.

_Meu Deus! Acho que esses seus punhos másculos quebraram meu braço. - disse ele, fingindo uma cara de dor e depois rindo novamente.

Saí do quarto dele sorrindo.

***

Eu estava no meu quarto estudando química orgânica, minha parte favorita da química (a mais fácil, na verdade) e comendo um sanduíche como janta. Wilian de repente bate na minha porta e diz que o porteiro queria falar comigo. Saí do meu quarto e peguei o aparelho.

_Oi?

_Boa noite, é o Victor? - perguntou o porteiro com sua voz grossa.

_Sim.

_Tem um homem aqui embaixo perguntando pelo seu nome, e você é o único Victor do prédio. Devo mandá-lo subir?

_Pede para ele esperar que eu vou aí embaixo.

Eu estava com o mesmo pijama daquele dia em que eu saí no meio da noite. Tirei apenas as calças e coloquei uma bermuda. Saí do apartamento e desci.

Chegando lá, perguntei quem tinha me chamado ao porteiro e ele me apontou o local em que a pessoa estava. Era uma pequena área com algumas cadeiras almofadadas, iluminada por algumas lâmpadas incandescentes. Quando me aproximei, um homem alto se levantou, era magro, tinha um peitoral largo e braços que pareciam bastante fortes. Vestia uma camisa social com alguns botões abertos, calça jeans não muito justas mas não folgadas e sapatênis. Era moreno claro com olhos castanho claros, com cabelos pretos lisos que estavam meio bagunçados e uma leve barba por fazer. Resumindo, era extremamente bonito.

_Hum... oi? - eu disse meio sorridente e meio incerto.

Ele sorriu. Eu parecia conhecer ele, mas não tinha certeza.

_Achei você, finalmente! Eu disse que nós íamos nos ver de novo. - sua voz combinava perfeitamente com seu porte físico.

Olhei para ele com um pouco mais de incerteza. De repente, minha feição mudou para surpresa ao notar que ele era o homem com quem eu bebi debaixo da árvore na segunda-feira. Ele deve ter notado minha expressão, porque disse:

_Lembrou? Segunda, árvore, você bebendo o que não sabe o que é de alguém que você não conhece. Falando nisso, eu recomendo que você tenha mais cuidado.

Eu continuava pasmo. Não sabia o que dizer, então minha inabilidade para conversar resolveu se manifestar.

_Como você sabe o meu nome? - perguntei. Ele continuou sorrindo e se aproximou de mim. Chegou bem perto e eu pude sentir seu perfume. Ele pegou minha camiseta e...

_Eu vi seu nome bordado na camiseta. - ele disse. Olhei para baixo e ele segurava bem no lugar onde minha mãe havia mandado bordar meu nome no pijama quando eu estava para ir em uma excursão no ano anterior.

_Eu me chamo Guilherme, prazer. - ele se apresentou sorrindo após se distanciar com alguns passos para trás.

Ele era extremamente bonito mesmo.

_Ah, eu sou o Victor...

_É, eu tô sabendo. - disse ele, se esforçando para não rir. A aparência dele estava ofuscando minha mente, mereço perdão.

_Ah, claro... mas como você me achou? - perguntei.

_Confesso que você me deu trabalho. Passei os últimos três dias te procurando pela região depois do trabalho. Saí perguntando por um adolescente chamado Victor nos prédios e aqui estou.

_Ah, desculpe. Nem me apresentei naquele dia. Mas então, Guilherme...

_Pode me chamar de Guil, meus amigos me chamam assim.

_Eu não uso apelidos. - eu disse, talvez mais ríspido do que eu queria.

Ele pareceu não ter se importado, sorrindo, disse:

_Bom... eu não sigo essa regra, Vic.

Ele tinha acabado de me chamar pelo meu apelido ou era impressão minha? Ele riu. Nós nos sentamos de frente um pro outro, nas extremidades opostas da mesinha que ficava entre as cadeiras

_E então, achou seu rumo? - ele perguntou.

_Creio que sim... espero que sim. Decidi que a minha mudança para cá é o meu novo caminho. Aquela conversa realmente me ajudou. E você?

Ele sorriu como se estivesse satisfeito.

_Eu ainda estou tentando saber se já estou no caminho ou se tenho que escolher um. - ele olhou nos meus olhos e foi como se seu olhar penetrasse na minha alma - Mas acredito que eu já esteja no caminho mesmo.

_Mas, mudando de assunto, então você é novo na cidade. - ele continuou.

_Sim...

E começamos a conversar. Acho que havia se passado uma hora e foi como se tivesse passado apenas 5 minutos. Falamos sobre minha nova vida aqui, contei sobre a briga de Gabriel e falei mais coisas que não tinham nada a ver com ele. O que estava acontecendo comigo?

Olhei para o relógio de parede, eram dez horas da noite.

_Nossa... tenho que subir. Hora de dormir.

_Tudo bem, foi ótimo conversar com você. - ele disse, ainda sorrindo. Pensei que ele poderia estar sendo sarcástico, afinal, só eu falei, praticamente. Mas ele e suas palavras pareciam verdadeiras - Pode me passar o seu celular?

Fiquei meio chocado com o pedido. "Calma, não coloque o carro na frente dos bois, ele quer só o seu número." pensei. Passei o meu número para ele e ele me passou o dele.

_Bom... acho que é isso. Hum... até mais? - eu disse meio incerto.

Ele deu um risinho.

_Você pode sair amanhã a noite?

Ok, agora o choque tinha sido dez vezes maior. Senti que o sangue estava indo para o meu rosto.

_Am... claro.

O sorriso dele aumentou, fazendo ele ficar ainda mais lindo.

_Ótimo, eu te ligo. - e dizendo isso, começou a ir embora. - Até logo.

Não respondi. Estava em choque. Fui até o elevador e lá dentro comecei a pensar: "Não conheço o cara, o que foi que eu fiz? Mas como poderia negar? Ele é bonito demais. Será que é uma brincadeira? Mas ele parece ser tão verdadeiro... o que eu tô dizendo? Mal falei com o cara direito. Merda, para de pensar, Victor." Quando olhei ao redor, já estava no meu quarto. Escovei os dentes e me deitei, coloquei os fones de ouvido e escolhi uma música animada no celular. Depois de algumas músicas, um som diferente a interrompe. Alguém estava me ligando. "Não... não pode ser..."

Mas era.

_Guilherme?

_Só ligando pra desejar uma boa noite, Vic. - ele dava um estranho foco no."Vic".

_Ah, certo. Boa noite pra você também. - não sabia mais o que dizer, fiquei em silêncio e ele também, por uns segundos.

_Não vai desligar? - ele perguntou com um tom zombeteiro.

_Ah, claro! Am... tchau. - eu disse, meio atrapalhado.

Desliguei, mas tive a impressão de ter ouvido ele rindo do outro lado da linha. E com um sorriso eu caí no sono.

***

Cheguei na escola no sábado de manhã. Estava alegre e tudo parecia mais bonito. Até mesmo as nuvens que ameaçavam alagar o mundo todo e o clima frio. Estava indo para minha sala quando...

_Ei! Você é o amigo daquele idiota, não é?

Virei-me e vi que alguém caminhava em minha direção. Esse alguém era nada mais nada menos que o garoto com quem Gabriel havia brigado no dia anterior. Supus que o "idiota" a quem ele tinha se referido era o próprio Gabriel.

_Gosto de pensar que sou amigo dele. - eu disse, meio indiferente. Na verdade eu estava meio intimidado, o cara era grande e tinha uns braços que poderiam esparramar meus dentes ali no chão.

Olhando mais de perto, eu o reconhecia. Ele era conhecido na escola por ser gay assumido e namorar um garoto do segundo ano.

_Olha aqui, você parece ser um carinha legal, e eu não sei porque você andaria com alguém como ele, então eu vou te avisar pra ter cuidado.

_Ah, se você olhar embaixo daquele monte de músculos, daquela aura negra que ele emite e ainda embaixo de toda aquela frieza dele, você pode achar uma pessoa bem legal. -Sorri de forma irônica.

_É sério, isso é um conselho, eu ficaria longe dele.

_E por que? Ele matou alguém? É nazista ou, sei lá, o anticristo? - perguntei, e estava sendo ousado demais para alguém que media uma cabeça a menos.

_Cara, você não sabe? Ele é homofóbico. - ele disse com um ar meio sombrio e depois deu um sorriso desafiador - Faça o que quiser, mas eu reconheço um gay quando vejo um. Até outra hora!

E ele se foi. A chuva começou a cair, mas eu estava em um local coberto. Olhei para o céu. Quando as coisas começavam a ficar boas, um raio cai na minha cabeça para me acordar para a realidade.

"Gabriel... homofóbico..."

Uma mão me toca no ombro e me viro sobressaltado.

_Ei ei, calma! - Gabriel riu, seu rosto já estava muito melhor - Quer me ajudar num problema de Trigonometria ali?

Olhei para os olhos dele. "Por quê?" pensei. O único amigo que fiz era um inimigo potencial. O que eu deveria fazer? Me recompus.

_Sabe que a soma dos ângulozinhos dos triangulozinhos é 180 graus né, criança? - eu disse.

_É bem mais complicado que isso. - ele disse indignado.

_Ah, claro, imagino! - disse eu, irônico.

Fomos para a sala. Por baixo do meu sorriso estava a angústia.

"O que eu faço agora?..."

As primeiras pedras apareciam no meu caminho de flores.

Continua...

Comentários

Há 6 comentários.

Por Cesar Neto em 2014-07-30 09:06:10
Muito bom, adorei a história, os personagens são ótimos (o guil é o meu favirito) e sua escrita é incrivel ... Só tem um problema CADE O PROXIMO CAPITULO???? VOLTA LOGO A ESCREVER RAPA KKKK Mas agora é serio, manda outro capitulo pq realmente sua serie é muito boa, abração cara !!!
Por selu em 2014-04-18 10:00:47
cadê a continuação?
Por Fox em 2013-08-30 04:49:23
Eu espero de todo o resto de fé que tenho no meu coração, que você volte a contar.
Por Fox em 2013-08-30 04:47:22
Eu espero o final dessa história a muito tempo, e muito linda, ler esse conto, é como se eu tivesse me olhando no espelho.
Por LoveLucas em 2013-08-03 23:35:44
Continua por favor, eu preciso disso!
Por ll.e.x em 2013-08-03 02:52:18
continua*___*