Sem Rumo - Capítulo 1: Frio

Parte da série Sem Rumo

Sem rumo...

Era como eu me sentia ali, deitado na minha nova cama, no meu novo apartamento, na minha nova cidade.

"E agora?"

Um novo sentimento de dúvida e medo me atingiu. Novo e velho, porque eu já tinha sentido isso antes. Pra dizer a verdade, eu sempre senti, mas agora, como tudo a minha volta, esse sentimento tinha um sabor novo.  Um sabor amargo.

Comecei a pensar no que me levou a ir para uma outra cidade com duas pessoas que nem eu sabia se chegavam a ser amigos meus. Talvez eu buscasse distância de algo, ou de vários "algos".

Não. "Eu vim para estudar" pensei eu. E era mais fácil pensar dessa forma, me deixava leve o suficiente para encontrar o sono. No dia seguinte eu iria ter o primeiro dia de aula. A janela estava aberta, o ar da noite entrava.

"Que frio", pensei antes de cair num turbilhão negro de sonhos.

***

O céu estava cinza e o ar estava gelado. Eu o olhava com admiração. Um céu lindo.

_Ei, Vic, em que sala você ficou?

Desviei meu olhar para Henrique que sorria sutilmente enquanto eu tentava processar o que exatamente ele tinha me perguntado. "Eu costumava admirar esse sorriso", pensei.

_Não sei. Vou ver quando chegar lá. - respondi.

_Achei que tínhamos combinado de pedir para que nos colocassem na mesma sala - disse Wilian.

_Eu devo ter me esquecido. - dei um sorrisinho claramente forçado - Mas talvez a gente acabe caindo na mesma sala, de qualquer forma.

Henrique e Wilian morariam comigo durante aquele ano. Íamos fazer o terceiro ano em um colégio de Curitiba. O ensino das escolas da nossa cidade de origem não chegava nem aos pés do das escolas da capital, e como nós três buscávamos algo melhor, resolvemos fazer a mudança.

Henrique era alto, com seus 1,86 metros, corpo esculpido por dois anos de academia mas não exageradamente, tomando uma forma esguia, pele branca, cabelos curtos castanho escuros e olhos negros. Era normalmente alegre, machista às vezes, e muito estudioso. Wilian tinha 1,80 de altura, costumava fazer academia mas ainda possuía um pouco de barriga, albino e com olhos azuis. Era mais calmo do que Henrique, não se dedicava tanto aos estudos, mas ainda assim era bastante inteligente.

Chegamos ao colégio e eu pude ver que não estávamos na mesma sala. Fui procurar pela minha enquanto Henrique e Wilian se acomodavam e provavelmente já faziam novas amizades, já que pareciam ter tendência à popularidade. Eu certamente teria problemas na socialização, mas ainda assim não conseguia me importar em não ter caído na mesma sala dos dois. Não queria me prender a eles e nem prendê-los a mim.

A minha sala era a D. Achei-a e entrei. Por sorte, haviam duas carteiras desocupadas na linha da frente, então peguei uma delas rapidamente, como se algum ser do inferno fosse brotar ali mesmo e puxar as duas mesas para o submundo. Sentei e abri minha mochila, peguei meu "Duplo Dexter" (6° livro da série Dexter) e o abri, dando o meu primeiro passo errado no processo "conhecer gente nova".

Minutos depois entrou na sala um cara que já me fez ficar um pouco mais feliz de ter caído na D. Na mesma faixa de altura de Wilian e Henrique, pele clara, corpo que refletia um claro vício em exercícios físicos, com braços fortes e peito largo, seus olhos tinham um tom acizentado, tinha uma barba por fazer e seus cabelos eram pretos e cortados bem curtos, quase militar. Era possível ver parte de uma tatuagem preta em seu braço esquerdo, parecia tribal, mas eu não tinha certeza.

Ele sentou na carteira bem ao lado da minha, também na linha dianteira. Notei um olhar dele no meu livro. Deveria puxar conversa com ele? Pensei na minha inabilidade para esse tipo de coisa e logo desisti, o cara parecia não estar muito aberto a qualquer tipo de conversa. Além disso, eu já estava deixando esse tipo de pensamento inútil me invadir.

"Tá na hora de parar de pensar em garotos, Victor" pensei, não confiando nem mesmo no que minha própria consciência me dizia.

***

Encontrei Henrique e Wilian no recreio, eles estavam conversando em um grupo. Cumprimentei o pessoal, informei Wilian e Henrique sobre minha sala e falamos rapidamente sobre os professores que havíamos conhecido.

_Vejo vocês na saída. - eu disse por fim.

_Ainda faltam dez minutos de recreio. - disse Henrique.

Virei para eles e gesticulei com meu livro de Dexter, sorrindo. Os dois me reprovaram com gestos.

Encontrei um lugar, sentei no chão e comecei a ler. Quando leio, eu me desligo do mundo físico, e consequentemente não percebi a aproximação de uma pessoa.

_Série ou livros?

Olhei para cima e vejo ele, o cara da minha sala que sentou na carteira do lado. "Objetivo... é assim que você joga, não é?" pensei.

_Prefiro os assassinos dos livros. - eu disse.

_Mas nos livros é preciso muita imaginação.

_Eu fui agraciado com um bom cérebro. - retruquei.

Ele sorriu. Estendeu a mão para mim. Eu me levantei.

_Gabriel. E eu concordo com o seu ponto de vista. Os assassinos realmente são muito mais legais no livro. - ele disse.

Apertei a mão dele.

_Victor. É bom encontrar alguém com imaginação.

***

As outras aulas passaram rapidamente. Eu conversava com Gabriel de vez em quando. Descobri que ele havia sido reprovado no ano anterior e que ele gostava muito de ler. Descobri também que ele não é uma pessoa de muitos amigos.

A última aula acabou e eu e Gabriel nos dirigimos para a saída. Nos despedimos e ele foi embora em seu próprio carro. "Posso arranjar carona, futuramente..." pensei. Wilian e Henrique me esperavam na calçada em frente a escola.

_Já arrumou um namorado logo no primeiro dia? - disse Henrique, sorrindo maliciosamente.

_Não. Infelizmente ele parece gostar de pessoas altas, definidas e com uma personalidade mais machista. Tipo você. - menti, retribuindo o sorriso malicioso.

_Cai fora! - disse Henrique, enojado, enquanto Wilian ria ao nosso lado.

Meus dois amigos sabiam que eu era gay desde o ano anterior. Henrique achava estranho e não correto, mas para minha surpresa, continuou sendo meu amigo. Wilian pareceu não ter se importado nada. Apesar de eu achá-los bonitos e até ter gostado de Henrique durante um tempo antes de ele saber do meu segredo, eu sabia que os dois eram héteros e nunca passava dos limites com eles.

Almoçamos em um restaurante ali perto e fomos para nosso apartamento que ficava a duas quadras do colégio, já que não haveria aula a tarde na segunda. O dia foi tranquilo, nós três fomos ao mercado para comprar algumas utilidades, eu tomei um sorvete, estudamos em trio e fui com Henrique em busca de academias próximas, embora eu estivesse procurando qualquer outro esporte, como artes marciais ou natação. Odiava academias. Mas se fosse necessário, eu entraria em uma, só não podia ficar sem fazer nenhum esporte. O dia continuava frio.

Perto das oito da noite eu fechei meu livro e fui tomar um banho quente. Saindo do banheiro, parei em frente ao espelho do guarda-roupas, olhei para mim mesmo e, como sempre, fiquei desanimado ao pensar que talvez nunca achasse alguém. Talvez eu estivesse exagerando, não sou feio, mas também não sou a coisa mais linda do mundo. Com 1,70 metros e branco, mas não daquele "branco" e sim um pouquinho mais escuro, não sei explicar. Uso óculos. Cabelos castanho escuros passando para o preto, ondulados, eu havia cortado eles mais curtos do que eu geralmente uso, mas ainda tinha uma pequena franja e mal dava para ver ondulações. Algumas espinhas no rosto, mas nada desesperador. Magro com alguns resquícios de gordura aqui e ali, mas meio definido por um tempo de academia (que passei a odiar) e natação. Olhos castanho escuros, mas só se você olhasse bem de perto. Eu olhava meu reflexo e só conseguia pensar:"sem sal".

Depois desse pensamento eu tive certeza de que outros pensamentos ainda piores iriam me invadir. Sorri. "Tudo a minha volta é novo, mas eu continuo o mesmo" pensei. Com pijamas, deitei e comecei a ouvir música. De repente, um desespero tomou conta de mim. "O que eu estou fazendo aqui? O que eu quero para minha vida? Eu sou inútil, sem sal, sem esperança." esse tipo de pensamento era jogado em mim quase como se algum deus dos pensamentos estivesse me pregando uma peça. Esperança sempre foi considerado por mim o combustível que continua movendo os seres humanos em cada dia de suas vidas miseráveis. Eu não sentia esperança nenhuma dentro de mim.

Saí do apartamento e desci para a rua. A noite estava muito fria. Minha camiseta de manga longa e a minhas calças tinham tecido fino, então senti o frio na minha pele, chegando aos ossos. Sempre gostei do frio. Olhei para o céu, minha respiração congelava logo que saia, formando aquela "nuvenzinha". Comecei a andar sem rumo pelas ruas, ignorando o perigo do horário.

Depois de um tempo vagando, em uma rua pouco movimentada, achei uma loja de bebidas alcoolicas. Seria ótimo beber alguma coisa coisa com álcool, mas eu não tinha dinheiro ali comigo e era menor de idade. Havia uma árvore em frente a um prédio que ficava do lado da loja. Me sentei embaixo dela, no meio fio. Estava mais escuro ali, com a árvore bloqueando a luz dos postes. Sempre gostei do escuro. Frio e escuro...

_Noite...

Virei o rosto para o lado. Havia um homem sentado também sob a árvore. Não havia enxergado ele por causa da escuridão, ou talvez por simplesmente estar desatento. Pelo que eu conseguia ver, ele vestia uma camisa social com as mangas puxadas até o cotovelo, calças e sapatos. Era magro e parecia bem forte, como estava sentado não consegui calcular a altura. Era da minha cor, talvez um pouco mais escuro. Cabelos curtos e levemente bagunçados, barba por fazer que eu achei bastante sexy. Eu estava lidando com pessoas bonitas hoje. Suspirei, deprimido. Isso só piorava minha auto estima.

_Boa noite. - olhei para ele e dei um sorriso forçado, minha especialidade.

_Frio, né? - disse ele, examinando o que eu vestia, minha camisa e calças sacudiam com o vento, não me oferecendo proteção nenhuma - Quer beber?

Ele me mostrou a garrafa, mas eu não conseguia ver o que era, nem o nome. Mas tanto faz.

_Sim. Obrigado.

Ele serviu o copo em que estava bebendo e me ofereceu. Estava cheio até a metade.

_Se não se importa em usar o mesmo copo. - eu não me importava, tomei um gole. Era forte, fiz uma careta, ele riu. Virei tudo no segundo, dessa vez apenas fazendo uma leve careta com o rosto enquanto a sensação quente descia pelo meu peito.

_E aí, o que tá fazendo vagando por aí de pijamas na noite?

Eu devolvi o copo pra ele e ele se serviu.

_Procurando o meu rumo, eu acho... e você? - perguntei.

Ele olhou para o copo, como se estivesse procurando o que dizer ali dentro.

_Terminei um namoro. - ele deu um risinho - Acho que eu tinha tomado um rumo falso para enganar a mim mesmo. Talvez eu também esteja procurando meu rumo agora. Mas a gente tem que ter esperança de que sempre vai ter um caminho para ser seguido, talvez a gente já esteja no caminho e nem sabemos... - ele parou de falar e riu - Acho que eu tô bêbado. Mas é isso, se realmente não houvesse mais rumos a serem tomados, qual seria o sentido de viver? Eu já teria me suicidado.

Ele tinha razão. Talvez eu já esteja no caminho. Em um dia nessa cidade eu conheci pessoas que valiam a pena. Gabriel, alguns colegas, esse cara do meu lado. Ele me ofereceu mais um copo, eu bebi.

_Tem razão, acho que estou no caminho certo. E se não estiver...

_...posso começar de novo. - ele disse junto comigo. Nós rimos. Aquela era uma cena muito clichê.

_Obrigado pela bebida e pelas palavras - eu disse, levantando e tirando a poeira que poderia ter ficado na parte de trás da calça.

_Quer que eu te leve na sua casa? - perguntou ele quando eu já havia saído da sombra da árvore.

Virei-me para ele e respondi:

_Não precisa. E você? Vai dirigir desse jeito?

_Sou um ótimo motorista. Não tem medo de assalto ou coisa parecida?

_Não. - menti, eu tinha, mas não naquela noite - Vou indo. Hum... adeus. - me virei e comecei a andar.

_Ei! - ele me chamou, eu me virei novamente - Até a próxima.

"Até a próxima?" . Sorri e acenei já de longe.

_Até!

Sorrindo, entrei na noite solitária. Ele me fez ver o que eu não estava vendo. Essa cidade, o colégio, as novas pessoas. Tudo isso fazia parte do meu mais novo caminho. Abandonei a minha trilha antiga quando fiz essa mudança e essa era minha nova chance.

O frio me abraçava sob a noite velada por estrelas mas me sentia aquecido. "Talvez eu esteja meio bêbado. Ou talvez..."

"...eu tenha achado o meu rumo."

Continua...

Comentários

Há 4 comentários.

Por em 2013-03-28 07:04:26
Tocante, me identifiquei com seu conto, foi algo que tocou minhas emoções e alma.
Por em 2013-01-24 04:02:40
cade o restante pow? Posta logo ai.
Por em 2013-01-15 10:37:34
Gostei.
Por em 2013-01-15 03:12:22
- Adorei, muito bom, super interessante, não deixe de postar!