Capítulo 31
Parte da série Tribulações
Nós três estávamos acomodados na sala, assistindo TV.
Já era de tarde, estava quase escurecendo. Eu não tinha passado muito tempo a sós com o Vinícius depois de desfazermos as minhas malas pela manhã. Não sei se ele percebeu que eu quase desabei a chorar depois que terminamos, precisei de muita força pra segurar aquele choro.
Minha tia estava deitada no sofá de três lugares. E nós dois estávamos sentados no sofá de dois lugares, não estávamos exatamente sentados, estávamos com a bunda tão pra frente, que estávamos quase deitados também. O Vinícius abraçava uma almofada, e eu estava com os braços cruzados sobre o estômago.
Vinícius: Você costuma sair muito?
Felipe: Não. Quase não saio! E você?
Vinícius: Também não, é difícil eu sair…
Izaura: Difícil é pouco.
Dei risada.
Felipe: Fica fazendo o que em casa?
Vinícius: Assistindo TV, jogando alguma coisa, vendo filme ou alguma série que eu nunca vou continuar.
Felipe: Entendi...
Vinícius: Tem namorada?
A Izaura se mexeu no outro sofá, talvez estivesse incomodada com a pergunta.
Felipe: Não... - Menti mais uma vez.
Vinícius: Huum...
Felipe: Você tem?
Vinícius: Não!
Felipe: Haam. - Ficamos em silêncio por um instante, e então eu tentei puxar assunto de novo - Você estuda de manhã?
Vinícius: Isso! Seria legal se te colocarem na minha sala...
Felipe: Por que? - Fiquei curioso de verdade.
Vinícius: Ah... - Ele riu - Tipo, moramos juntos, estudamos juntos. Acho que seria legal. Podíamos fazer os trabalhos juntos, nos ajudarmos nas tarefas, estudar pras provas.
Ele estava sonhando alto, e aquele sonho dele me deixou com um certo medo. Mas ele terminou com uma frase que abalou todo o receio que eu tinha até então. Ele disse: "eu teria um amigo pra tudo!".
A partir disso eu já não sabia o que ele pensava, talvez eu estivesse exagerando em achar que ele estava afim de mim só porque estava sendo bonzinho comigo. Talvez ele tivesse poucos amigos, e quisesse um amigo "inseparável", ou algo parecido.
Felipe: Quem sabe! Vamos ver em que sala vou ficar...
Vinicius: Você também podia fazer academia comigo, né?
Felipe: Você faz academia?
Vinicius: Faço. No final da tarde! Você não quer fazer também? Ficar fortão? - Ele riu no final.
Felipe: Faz tempo que você faz?
Vinicius: Uns dois meses, ou mais, não sei direito. Mas você não tá afim? Vai alguns dias, pelo menos, se não gostar, você para.
Felipe: Vou pensar.
Vinicius: Ok, Ok. Mas vamos! Mal não vai fazer! E duvido que você não vai gostar quando começar a crescer o braço, formar barriga tanquinho... - Ele riu. A Izaura fingia nem estar ouvindo, mas ela riu da barriga tanquinho.
Por um lado ele estava certo, mal não faria, mas eu não tinha dinheiro pra pagar academia, e eu duvidava muito de que meu pai pagaria pra mim. Mas não contei isso ao Vinicius, seria estranho, eu pelo menos tinha que fingir ter falado com meu pai e depois inventar uma desculpa pra não fazer.
Vinicius: Enfim, pensa aí! Eu vou tomar banho.
Felipe: Vai lá!
Um tempo depois de ele ter saído da sala, a Izaura se sentou no sofá e olhou direto pra mim.
Izaura: Posso falar com seu pai. Aposto que ele vai pagar academia pra você.
Felipe: Eu duvido muito.
Izaura: Eu acho que vai. E se ele não pagar, eu pago!
Felipe: Não adianta! A ordem dele é pra eu não sair de casa.
Izaura: Posso jogar verde e dizer que é coisa de homem, aposto que ele vai deixar.
Felipe: Ok, tia. Pode tentar, mas eu só acredito vendo...
Izaura: E sobre a escola, acho que você só começa na terça, porque segunda vamos ter que fazer sua transferência pra cá.
Felipe: Não vai ter jeito, né? Vou ter que ficar aqui?
Ela torceu os lábios.
Izaura: Tudo tem seu tempo, querido. As coisas vão se acertar. Seus pais não vão manter essa situação pra sempre. Tenha fé...
Felipe: Minha preocupação é o Nicolas! O que ele vai pensar? De repente eu desapareço...
Izaura: Querido, vai ser tão difícil pra ele quanto está sendo pra você. Mas da próxima vez que vocês se encontrarem, as coisas já vão estar certas, e nada nunca mais vai separar vocês dois... - Ela disse sorrindo.
Felipe: Queria ter metade dessa boa fé que você tem...
Izaura: Você vai ver, querido! Vai ver!
Ela se deitou de novo e se prendeu à TV. Eu fiquei ali desnorteado, esperando o Vinícius voltar do banho.
E ele demorou pra voltar! Na verdade, eu ouvi ele saindo do banheiro e fechando a porta do quarto. Me levantei e fui até lá. Dei duas batidas na porta, e ele disse: "Oi".
Felipe: Tá vestido? Quero pegar minha toalha pra tomar banho...
Vinícius: Tô, pode entrar...
Fiquei um pouco com medo de entrar e ele estar de cueca lá, mas não, já estava de bermuda e camisa! O quarto estava com um cheiro forte de perfume, nos entreolhamos e ele sorriu. Eu me apressei e peguei minha toalha e roupa pra eu já me vestir no banheiro e evitar constrangimentos depois.
Enrolei um pouco no banho. Eu tinha momentos de alta e momentos de baixa, embora os momentos de baixa fossem mais fortes que os de alta. Abri o chuveiro no máximo, fiquei curtindo aquele monte de água batendo no rosto e descendo pelo meu corpo.
Não fiquei esbanjando água, também já tinha perdido a noção do tempo quando achei melhor encerrar e sair. Me sequei bem e me vesti no banheiro mesmo! Só fui pro quarto pra me perfumar. E o Vinícius realmente estava lá, sentado na cama, lendo algo no seu caderno, volta e meia ele pegava sua lapiseira e rabiscava algo. Nos entreolhamos quando entrei, ele deu um "meio sorriso" e disse: tarefa da escola.
Felipe: Ah tá. Fica tranquilo, não vou te incomodar...
Vinícius: Relaxa, você não incomoda.
Olhei pra ele, mas ele já não estava me olhando. Sentei na minha cama e fiquei observando o Vinícius, ele estava muito concentrado, parecia nem ter reparado que eu estava ali olhando pra ele. E então fiquei ali, observando seus olhos se fechando um pouco, talvez ele não estivesse entendendo algo? Algumas vezes, enquanto escrevia, ele colocava a ponta da língua pra fora, e abria bem os olhos. Quase não piscava. Tive quase certeza de ouvir um palavrão, imagino que a ponta da lapiseira tenha se quebrado.
Um bom tempo depois ele parou e me olhou, e deu risada.
Vinícius: Que foi?
Felipe: Nada... Só to observando...
Vinícius: Hum...
Felipe: Falta do que fazer...
Vinícius: Tenho jeitos engraçados?
Felipe: Só é engraçado o jeito que você põe a língua pra fora enquanto escreve...
Vinícius: Mas eu não faço isso o tempo todo! Ou faço?
Felipe: Não, só de vez em quando.
Vinícius: Que bom... - Ele piscou pra mim - Seria muito mais estranho se eu fizesse isso o tempo todo...
Felipe: Você nem percebe quando faz?
Vinícius: Não... - Ele riu - É automático. Quando vejo, a língua já tá pra fora...
Dei risada, e ele acabou rindo junto comigo.
Vinícius: Nossa!
Felipe: O que?
Vinícius: Acho que é a primeira vez que você riu.
Fiquei sem saber o que falar.
Felipe: Pois é...
Vinícius: Você é tímido mesmo, ou tem algo te incomodando?
Felipe: Sou um pouco tímido. - Eu não queria dizer que havia algo me incomodando, pois se dissesse, não poderia dizer o que era, e então ele pensaria que era algo em relação a ele.
Vinícius: Entendi. Eu sou um pouco também...
Felipe: Sei. É, faz parte, né...
Vinícius: Uhum... - Ele disse me olhando - Pensou na academia?
Felipe: Preciso falar com meu pai...
Vinícius: Por que?
Felipe: Porque eu não tenho dinheiro pra pagar, eu não trabalho! Vou ter que pedir pra ele pagar...
Vinícius: Aah, faz sentido... - Ele disse sem jeito.
Felipe: Por que você faz academia?
Vinícius: Gosto da ideia de ser fortinho. Mas ser magro não me incomoda… e também não é a intenção ficar enorme, só quero um corpo legal, sei lá.
Felipe: Entendo. Não é pra chamar atenção das meninas?
Vinícius: Não, não é a intenção. Isso será uma consequência... - Ele riu.
Várias vezes a pergunta "Você é gay?" me veio na ponta da língua, e eu engoli, por medo de perguntar e ele me interpretar mal, ou não ser e ele se ofender. Eu não conseguia entendê-lo direito.
Felipe: Você nunca namorou?
Ele fez que não com a cabeça.
Vinícius: E você?
Respirei fundo, eu tinha que mentir de novo.
Felipe: Não...
Vinícius: Huum. Entendi, por que você não quer, ou por que ninguém te quer?
Era uma mentira ainda mais difícil de contar.
Felipe: Ambos.
Vinícius: Entendo. Você tem muitos amigos?
Acho que foi a primeira vez que pensei na Angélica e na Bianca depois de toda a briga com meus pais. Como será que elas estavam? O que fariam quando percebessem que havia algo errado? Ou melhor, o que a Bianca faria, porque a Angélica provavelmente não faria nada.
Felipe: Amigos de verdade não...
Vinícius: Não?
Felipe: Não. Nunca tive muitos amigos. Eu não gosto de chamar a atenção, não gosto de fazer parte daquela turminha dos populares, onde um se exibe mais que o outro. Prefiro ficar na minha, curtir amizades verdadeiras em paz.
Vinícius: Uhum... Que legal. Então você não é um boy alienado que gosta de andar pela escola se achando o gostosão?
Felipe: Não, com certeza não. - Fiz uma pausa. - Por acaso você é?
Vinícius: Não, sou igual você, eu acho...
Felipe: Você acha?
Vinícius: É, ué... - Ele disse de um jeito engraçado.
Felipe: Então tá.
Ele me olhou de um jeito engraçado, mas a Izaura apareceu na porta do quarto e me chamou. Olhei pra ela, que fez um sinal com o dedo pra que eu a seguisse.
Felipe: Já volto...
Vinícius: Tá...
Saí do quarto e fui até a cozinha com a Izaura.
Izaura: Seu pai vem pra cá amanhã... - Eu gelei quando ela disse isso - Ele vai pegar os papéis da transferência na sua escola antiga e trazer pra escola aqui. E então isso já vai estar certo. Sobre a academia, ele disse que você pode fazer. Ele só me pediu pra avisar que...
Felipe: Eu tenho que ir de casa pra academia, e da academia pra casa. Eu sei! - Interrompi mesmo sem ter certeza se era isso mesmo, mas pela reação dela, era exatamente isso que ele tinha dito.
Izaura: Ele vai depositar o dinheiro na minha conta, e eu pago o boleto pra você, certo?
Felipe: Certo. Era só isso?
Izaura: Era.
Felipe: Obrigado, tia... - Falei dando as costas e saindo da cozinha, mas pouco antes de eu sair, ela me chamou.
Izaura: Fê?
Felipe: Oi... - Parei bem na porta.
Izaura: Não vai perguntar como eles estão? Nem como seu pai estava ao telefone?
Felipe: Não quero ser grosseiro com você, tia, mas não me importo.
E deixei a cozinha.