Capítulo 30

Conto de SyncMaster como (Seguir)

Parte da série Tribulações

Fiquei ali na cozinha por um bom tempo! Parei de chorar, mas continuei ali. Sem saber o que fazer.

O relógio no armário marcava três da madrugada quando resolvi voltar pra cama, apaguei a luz da cozinha e voltei pro quarto com um pouco de dificuldade naquele escuro. Mas consegui encontrar a porta e entrar sem fazer grandes barulhos. Eu podia ver o vulto do Vinicius deitado, mas não enxergava detalhes. Me deitei na cama e me cobri, depois disso não demorou muito pra eu pegar no sono e dormir também.

Acordei sozinho no outro dia, olhei pra outra cama e não vi o Vinícius. Eu queria ver a hora, mas eu não tinha um celular pra olhar, e nem havia relógio no quarto.

Me sentei na cama, agora não dava pra fugir, eu tinha que enfrentar o pirralho. Me levantei sonolento e fui ao banheiro primeiro, fiz tudo o que precisava fazer, depois lavei as mãos, joguei uma água no rosto e me encarei no espelho, eu estava horrível! Respirei fundo e saí do banheiro, fui direto pra cozinha.

A Izaura estava sentada, tomando café! Estava de frente pra mim. E um garoto de cabelos pretos bagunçados estava de costas, camisa cinza escuro, sem manga, e bermuda preta. A Izaura sorriu quando me viu na porta, foi o suficiente pro meu primo se virar e me encarar sorrindo. Ele era bonito, tinha nariz, boca e queixo num formato perfeito, seus olhos eram parecidos com os da Izaura, ele tinha braços levemente avantajados. Pensei que seria bom repensar no apelido “pirralho”.

Izaura: Bom dia, querido! Dormiu bem?

Felipe: Bom dia! Dormi, obrigado!

Me aproximei da mesa, e o Vinícius se levantou, ele era da minha altura, só era um pouco mais forte que eu, ele me estendeu a mão e sorriu dizendo: "Bom dia, Felipe".

Apertei sua mão e respondi sem conseguir sorrir: "bom dia, Vinícius".

Me sentei ao lado dele, que tomou a frente da conversa.

Vinícius: Ah, desculpa se te acordei ontem de noite! Juro que não era a intenção!

Felipe: Ah, não, não acordou. Tudo bem!

Vinícius: Que bom... - Ele realmente pareceu aliviado.

Izaura: Fê, pode pegar o que quiser, fica a vontade! Não sei se ainda tem leite na caixinha, seu primo é um bezerro, toma leite demais, se não tiver, pode pegar outra na geladeira!

Felipe: Tá, obrigado, tia. - Dei risada da parte do bezerro.

Quase que no mesmo instante, o Vinícius se levantou, foi até a geladeira e pegou outra caixa de leite! Eu não percebi o que ele tinha feito até ele por o leite na minha frente.

Vinícius: Não tinha mais, eu tomei tudo...

Felipe: Obrigado... - Falei estranhando um pouco a bondade dele.

Ficamos alguns instantes em silêncio, mas logo o Vinícius o quebrou.

Vinícius: E então, veio estudar?

Felipe: É... - Falei incomodado com a mentira.

Vinícius: Entendi...

Ele não puxou mais assunto, talvez eu tenha sido seco demais com ele.

Felipe: E você tem quantos anos?

Vinícius: Tenho dezesseis, e você?

Felipe: Tenho dezesseis também...

Vinícius: Eu achei que você era mais velho.

Felipe: E eu achei que você era mais novo.

Ele riu.

Vinícius: Desculpa te desapontar!

Felipe: Relaxa! - Sorri um pouco pela primeira vez.

Ficamos em silêncio, e quando esse silêncio começou a incomodar, a Izaura interferiu e puxou uma conversa.

Izaura: Foi você quem comeu o pedaço da pizza que sobrou, Fe?

Felipe: Foi... - Falei sem graça - Eu acordei de madrugada, fiquei sem sono. E acabei sentindo fome... - Me enrolei na explicação.

Izaura: Tudo bem, querido! - Ela riu depois de eu desistir de tentar falar - Era pra comer mesmo!

Vinícius: Eu vi você levantando... Eu ainda estava acordado!

Felipe: Ah... Achei que você já tinha dormido… - falei preocupado. Será que ele tentou me seguir e me viu chorando?

Vinícius: Não. Mas eu dormi antes de você voltar pro quarto… Ia levantar atrás de você, mas achei melhor deixar você sozinho.

Felipe: É, eu fiquei um bom tempo sentado aqui.

Vinícius: Estranhou a cama? - Ele perguntou, tentando identificar a causa da minha insônia, claro que ele estava longe de acertar. Possivelmente ele nem imaginava o verdadeiro motivo.

Felipe: Não... - Falei sem pensar, quando deveria ter dito que sim, e acabar com o assunto - Eu só não tive sono…

Foi uma péssima mentira. Como eu não tive sono, se estava dormindo quando ele chegou, e nem me mexi com todo o barulho dele no quarto?

Izaura: Acontece com todo mundo vez ou outra... - Ela interferiu - Eu acordo quase todos os dias no meio da madrugada! Mas é só virar pro outro lado e consigo dormir logo, logo... - Ela disse como uma criança fofa.

Vinícius: Eu não acordo. Durmo como uma pedra...

Ficamos em silêncio, que durou apenas um instante.

Vinícius: Eu ronco? - Ele me olhou, esperando uma resposta. Eu achei engraçado.

Olhei pra ele, mas desviei o olhar quando nossos olhos se encontraram. A Izaura riu da pergunta...

Felipe: Não, não ronca...

Vinícius: Ah, que bom!

Ele era um pouco estranho, mas no fundo só estava tentando puxar assunto.

Vinícius: Se você não gostar de dormir na janela, podemos trocar de cama...

Esse jeito dele já estava me incomodando demais! Por que ele parecia se importar mais comigo do que com si mesmo? E isso logo no primeiro dia, quando ainda nem havia se passado uma hora desde que nos conhecemos.

Felipe: Obrigado, mas não me importo de dormir perto da janela.

A Izaura só falava quando ficávamos tempo demais sem conversar. Isso estava me incomodando, eu só queria ficar quieto, por que ela me forçava a conversar?

Izaura: Vai sair hoje, filho?

Vinícius: Não! Por que?

Izaura: Só perguntando. Fê, o que você pretende fazer na faculdade?

Fiquei pensativo, imóvel encarando o meu copo de leite, segurando um pedaço de pão com as duas mãos. Eu não tinha ideia do que fazer na faculdade, e isso era mais uma coisa que não fazia mais sentido pra mim. Voltei pro mundo real quando o Vinícius me cutucou com o cotovelo.

Felipe: Não sei... - Respondi num susto - Ainda não me decidi...

Izaura: Precisa se decidir, querido...

Vinícius: Eu quero fazer engenharia civil... - Ele se meteu na conversa - Já andei pesquisando sobre o curso, olhando materiais na internet, acho que vou gostar!

Felipe: Tomara... - Tentei sorrir.

Vinícius: Você não tem nem ideia do que fazer?

Felipe: Andei pensando em alguma coisa na informática, ou alguma engenharia. Quero exatas...

Vinícius: Entendi... Legal, quem sabe fazemos o mesmo curso!

Felipe: Quem sabe...

Fiquei um pouco em silêncio, eu sei que ele não disse por mal, mas a ideia de fazer faculdade junto com o Vinícius me trazia a ideia de que eu ficaria ali com eles para cursar a faculdade lá também. A ideia de passar muito mais tempo ali me atormentava, eu precisava voltar pra minha cidade, voltar pra perto do Nicolas! Ali não era meu lugar!

Abocanhei o último pedaço de pão, engoli o resto do leite num gole, e me levantei da mesa agradecendo pelo café e pedindo licença.

Fui pro quarto, que eu nem mesmo podia chamar de meu. Abri a janela e encarei o quintal da casa, tinha muitos vasos de flores, orquídeas, e uma árvore bem ao fundo coberta de flores brancas, eu não sabia o nome, mas era linda!

Encarei a cama do Vinícius, estava bem bagunçada, voltei minha atenção pra minha cama e decidi arrumá-la. Me distraí enquanto esticava o lençol e ajeitava o travesseiro na cabeceira. Mas percebi o Vinícius entrando devagar e se sentando na cama dele enquanto eu arrumava a minha. Me senti incomodado, porque ele não estava organizando nada, ele estava apenas me olhando. Fiquei nervoso, não de raiva, mas de ansiedade, vergonha, timidez.

Terminei de arrumar a cama e peguei a roupa que eu tinha usado no dia anterior.

Felipe: Onde posso colocar? - Perguntei mostrando a ele a roupa usada.

Vinícius: No fundo da casa tem a lavanderia, lá tem um cesto preto, pode por toda a roupa suja lá. - Me respondeu sem tirar os olhos dos meus.

Sai do quarto com um pouco de pressa, até hoje tenho dificuldade de descrever a sensação que eu tinha quando ele estava por perto!

Achei a lavanderia sem dificuldade, a Izaura estava lá colocando roupas na máquina, para lavar.

Izaura: Roupa suja?

Felipe: Sim... - Falei esticando o braço e entregando a roupa pra ela.

Izaura: Ok, já vou por pra lavar...

Felipe: Obrigado...

Apesar de já ter feito o que eu tinha que fazer ali, eu não me mexi, continuei parado ali, como uma árvore.

Izaura: O que achou do Vinícius? - Ela disse quase sussurrando - Ele é bonzinho, né? Acho que vocês não terão problemas entre si...

Felipe: É, acho que não... - Falei pensativo.

Izaura: Dê uma chance pra ele. Ele só quer ganhar sua amizade. Você vai ver que boa pessoa ele é!

Fiz que sim com a cabeça, agradeci outra vez, e dessa vez consegui me mover e sair dali. O único lugar que eu tinha pra ir era o quarto, entrei e vi o Vinícius arrumando a própria cama, com um pouco de dificuldade pra estender o lençol.

Vinícius: Não faço isso com frequência... - Ele disse sem jeito.

Felipe: Não tem segredo! - Falei me aproximando e pegando o lençol - É só questão de prática. Eu arrumo minha cama todo dia, faz um bom tempo...

Vinicius: Sabe fazer até de olhos fechados, então! - Ele riu.

Felipe: Não exagera, também... - Falei ajeitando seu lençol e me afastando.

Vinicius: Obrigado! - Me disse sorrindo.

Felipe: Não por isso!

Parei na janela e fiquei encarando aquela árvore de flores brancas. Pus as mãos nos bolsos da bermuda e viajei por um instante.

Vinícius: Bonita, né? - Ele parou do meu lado.

Felipe: É...

Vinicius: Tem de várias cores! A minha mãe gosta da branca. Faz muito tempo que plantamos. Só que... - Ele parou de falar.

Felipe: O que?

Vinicius: Na verdade essa árvore costuma ficar muito grande com o tempo! Então talvez um dia a gente precise dar um jeito nela.

Felipe: Por que?

Vinicius: Vai ser um problemão se uma árvore imensa cair no meio de um temporal. Pode cair em cima da nossa casa, ou da casa de um vizinho... Pode matar alguém. Meu pai disse isso quando plantamos.

Felipe: Seu pai que plantou?

Vinicius: Nós plantamos juntos! Quando eu era criança! - Ele sorriu - Lembro que ele apareceu com a arvorezinha num saco preto, feliz da vida porque tinha conseguido uma muda da árvore que minha mãe tanto gostava! Eu ajudei a cavar o buraco e todos os dias meu pai regava a árvore quando chegava do serviço. Ele disse que um dia ela daria tantas flores, que não teria espaço pras folhas verdes. É uma pena ele não ter visto nem mesmo uma flor dela... - Ele parou de falar, percebi que sua voz estremeceu e perdeu o controle do volume no final da frase.

Olhei pra ele, ele estava chorando de verdade. Digo, não chorando como eu chorei, mas seus olhos estavam cheios de lágrimas e uma até escorreu. Me emocionei com ele.

Felipe: Ele deixou pra você... - Ele fez que sim com a cabeça.

Vinicius: Desculpa... - Ele disse enxugando as lágrimas.

Felipe: Não tem nada pra desculpar...

Duvidei de que aquele choro fosse só um modo de se aproximar de mim, ele não era tão insensível a ponto de usar o pai dele como um meio de me fazer "abaixar a guarda". E pra ser sincero, foi nesse momento que eu comecei a me sentir mais próximo dele.

Vinicius: Bom... - Ele disse tentando mudar de assunto - Você quer desfazer as malas? Pode usar meu guarda roupas...

Felipe: Ah, não, imagina, não vou tomar seu espaço!

Vinicius: O que que tem? O guarda roupas é bem grande, eu ocupo metade, e você a outra metade. Deve caber!

Não soube o que responder, ele ficou me olhando, e enfim ele tomou a frente e disse: Então vamos! Você não vai ficar aqui usando essas malas de guarda roupas!

Na verdade eu não queria desfazer as malas, eu ainda tinha fé de que voltaria pra minha cidade logo! O mais breve possível! Mas o Vinicius abriu o guarda roupas e tirou vários cabides de uma vez, e levou-os para a outra metade do guarda roupas, que seria a metade dele. Depois ele esvaziou as gavetas, que seriam as minhas, e arrumou um lugar nas gavetas dele.

Vinicius: Pode ir colocando suas roupas! Fica a vontade, o quarto também é seu, agora.

Felipe: Obrigado... - Falei sorrindo, mas por dentro eu estava chateado, e acabei não vendo outra saída, a não ser desfazer as malas. Se eu tivesse que sair correndo, apressado, pra minha cidade, eu iria sem as roupas mesmo.

Fui pegando as malas, uma a uma, colocando em cima da cama, abrindo e colocando as roupas do meu lado do guarda roupas. O Vinicius parecia animado, ele me lembrava o Nicolas em uma coisa: sorrir o tempo todo, esbanjar uma sensação boa e animada. Mas seu cabelo não era liso, era bem grosso, e eu preferia o cabelo liso do Nicolas!

Quando fechei o zíper da última mala, agora vazia, ele disse: Pronto! Está estabelecido...

Olhei pras malas vazias e senti um aperto no peito, não senti isso enquanto desfazia as malas, talvez porque o Vinícius tenha passado o tempo todo falando e tentando ser engraçado. Mas agora eu estava vendo que essa "visita" não seria algo breve.

Era pra valer!

Comentários

Há 1 comentários.

Por Elizalva.c.s em 2017-03-26 16:05:42
Pobre Felipe e tão cruel ter um amor interrompido por pessoas invencíveis.😘😘😘😘😘