Capítulo 3

Conto de Sr. Costa como (Seguir)

Parte da série Passio - O Livro do Amor

Reciclagem

Depois de um cochilo de mais ou menos quarenta minutos – tudo que eu consegui dormir, eram quase oito horas quando minha avó me acordou para eu me arrumar para irmos à cerimônia de cremação de meus pais, pois era o que eles diziam querer caso algo acontecesse.

Naquele dia eu tinha sido o único que “dormira” na casa de minha vó.

Eu me encontrei com toda minha família no local onde seriam cremado os corpos.

Gilberto estava lá... Com a namorada.

Aquela manhã tinha passado rápido. Mas não fora tão dolorosa quanto eu pensei que seria.

O caixão era totalmente fechado, o que impedia de todos verem os corpos, afinal, tinha sido um acidente de acordo com os socorristas, grave – eu, pelo menos, preferia lembrar dos meus pais como estavam ao sairmos de casa, minha mãe uma boneca, e meu pai um homem, com traços e alma de menino.

Juliana e Larissa também me deram um abraço:

- Mesmo tendo nossas diferenças, eu quero que você saiba que eu estou aqui para o que precisar, e que nós não vamos ser amigos, mas podemos ser civilizados e nos respeitarmos, como você disse – disse Juliana.

- É bom saber disso tudo – disse.

Alguns amigos dos meus pais estavam viajando, e mandou suas condolências a família, mas a maioria compareceu.

Depois da cerimônia reunimos a família e fomos todos para um restaurante ali perto almoçarmos.

Minha família apesar de grande, era unida. E todos se gostavam de verdade. A herança não era motivo de briga entre meus tios, porque todos tinham suas carreiras bem sucedidas e não eram ambiciosos, do tipo que quanto mais tinham mais queriam. Claro que existiam algumas diferenças e divergências de opiniões – assim como entre mim e Juliana – mas nada que causasse grandes danos a nossa união.

O ano tinha apenas começado, mas as circunstancias requeriam mudanças bruscas, e a primeira de todas seria a minha guarda.

Vovó, claro, queria muito que eu ficasse com ela, e eu não achei uma má ideia.

- Mas não tem dúvida nenhuma que agora esse menino fica estragado – disse Fernando.

- Eu nunca fui mimado. Por mais que a vovó tenha feito de tudo pra isso – disse.

- Não é culpa minha, meu filho. Diversão de vó é mimar o neto – disse minha vó, fazendo todos rirem.

- Principalmente o caçula – disse Mateus.

- Eu nunca tive um preterido. Amo todos você do mesmo tanto.

- A gente sabe, vó. Estamos só pegando no pé do Passus. E como se nós mesmos não mimássemos esse moleque – disse João.

- Mas tem uma coisa. Passus agora tem quinze anos, já está começando a sair mais, frequentar festinhas com os amigos, acho que essa movimentação toda não seria adequada para a senhora, mãe – disse tio Jonas.

- Eu disse para o Passus ir lá para casa. A gente estava conversando outro dia, e ele disse que quer fazer um bom colegial para se preparar para o vestibular. E lá na cidade tem as melhores escolas da região – disse João.

- E o dinheiro não seria problema, quando os bens dos meus pais forem liberados – disse.

- Eu vou ver se consigo agilizar as coisas lá no cartório – disse tio Cláudio.

- Nós ficaríamos muito felizes de ter você conosco – disse tia Marina

- Quer passar uns quinze dias conosco? Pra ver se você acha que consegue se adaptar – disse tio Jonas.

Eu concordei.

O próximo passo seria me mudar.

- Obrigado por terem vindo comigo – disse, parado em frente de casa, ao lado de João e Gilberto

- Você não precisa ter pressa de sair, viva esta última lembrança com calma – disse João.

- Está pronto? - perguntou Gilberto.

Eu concordei e abri o portão social. A primeira vista foi os chinelos que usamos fora de casa, os dos meus pais cada um de um lado dos meus.

Eu sabia que não iria aguentar por muito mais tempo, então resolvi não conter mais as lágrimas. Cada canto daquela varanda me trazia uma lembrança. Pior foi entrar em casa, o copo onde meu pai tinha tomado sua última dose de vodca estava na mesa de centro. Ao lado a lista de compras que minha tinha feito para o dia seguinte a ceia... Uma compra que nunca seria feita.

Decidi não me prender demais as lembranças, elas já estavam enraizadas em meu peito. As deixaria para serem recordadas em um momento feliz.

Subi para meu quarto e fiz minhas malas, duas grandes de roupas, duas mochilas de calçados e uma de bonés e óculos escuros.

Eu me sentei na cama e fiquei olhando o mural de fotos... Amigos, meus primos, fotos da família... Meu pais. Eu recolhi todas, e fiquei olhando para uma em que estávamos meus pais, Gilberto e eu.

“O Gilberto é só um amigo mesmo? É que... Você dois tem uma química”, lembrei do meu pai dizendo.

“O senhor não quer mesmo ter essa conversa”.

“Você sabe que não é o que nenhum pai quer para seu filho homem. Mas já que é assim, que pelo menos você não escolha um qualquer para namorar”.

“Eu só tenho quatorze anos. Acho que ainda é cedo para escolher alguém para amar”.

“Nós somos só amigos”.

Gilberto entrou no quarto e se sentou ao meu lado, pegando minha mão, olhando para a foto.

- Nessa viagem seu pai me fez prometer, que eu te faria feliz – disse ele.

- Depois que eu contei sobre mim para meus pais, eles começaram a me tratar como se eu fosse uma menina. Se eu tivesse um amigo homem meu pai fazia interrogatório – disse, rindo. - Sério, era estranho. Eu tive tanto medo que eles não aceitassem, mas foi a coisa mais natural pra eles. Natural como sempre deveria ser.

- Deixa eu cumprir a promessa que fiz ao seu pai – disse Gilberto, virando meu rosto para ele, e se aproximando lentamente, com cuidado, como se esperasse que eu me negasse a fazer aquilo, mas não me neguei.

Seus lábios eram mais quentes que o sol numa tarde de verão, mais doces que fruta fresca, calmos como uma chuva fraca e passageira. Ficamos por uns vinte segundos naquilo e no final sem abrir os olhos para olhar os dele, eu o abracei e deitei minha cabeça e seu ombro.

- Eu vou te ver no carnaval – disse ele.

- A gente não pode continuar com isso – disse, me levantando.

- A gente não pode é impedir isso de acontecer.

- A escolha é nossa.

- E eu escolho você.

- E eu não quero machucar minha amiga. E eu também não quero que você se sacrifique por mim.

- Mas e se eu estiver me sacrificando por mim mesmo?

- Você não vai parar, vai?

- Você me conhece. O que você acha?

- Eu te odeio por não te odiar.

- Eu te amo por você me odiar desse jeito.

- Com licença, casal. Vim ajudar com as malas – disse João, batendo à porta.

- Ele sabe sobre a gente?

- Só ele – disse.

- E agora quem vai fazer o papel de pai... irmão mais velho, sou eu. Se você fizer algum mal para o meu primo, é comigo que você vai ter que se ver.

- Sim, senhor. Capitão – disse Gilberto.

Nós levamos as malas para a caminhonete e voltamos para a casa da minha vó, para me despedir da minha família. Eu e meus primos combinamos de nos encontrar em Cabo Frio no carnaval. Eles tentaram arrumar desculpas, mas eu disse que aquele era o meu jeito de processar tudo.

De verdade eu nuca fui do tipo que me isolava do mundo, e dessa vez não foi diferente. Eram poucas as vezes que eu queria ficar sozinho.

Nós caímos na estrada antes do meio dia, e em nenhum trecho, com exceção do Rio de Janeiro, estava congestionado. Demoramos mais ou menos umas três horas.

- Você sempre disse que queria morar aqui, e aqui estamos – disse João.

- É. Mas eu nunca achei que seria assim. Mas apesar de tudo fico muito agradecido que vocês estejam me acolhendo – disse.

- Nós é que ficamos felizes de ter você aqui conosco – disse tio Jonas.

- É verdade. Seu tio e eu adorávamos quando você vinha pra cá. E agora quem sabe você não pões um pouco de juízo na cabeça desse seu primo – disse tia Marina, pegando na orelha de João.

- Ah, mãe. Eu tenho juízo – se defendeu João.

João me ajudou a levar minhas coisas para o quarto dele.

- Amanha nós podemos dar uma pesquisada nos colégios. Abriu um ano passado, lá no centro que parece ser muito bom – disse João.

- Pode ser. Vamos dar um mergulho? Eu estou precisando muito de um banho de mar.

Gilberto me ligou quando eu estava saindo.

- Eu devia ter te escutado, já estou morrendo de saudade – disse Gilberto.

- É melhor assim. Quanto menos tentação, melhor – disse, fazendo-o rir.

- Agora eu só vou poder te ver no máximo três vezes por ano.

- Gilberto, daqui a pouco eu te ligo.

- Aconteceu algo, bonequinho.

- Não. Minha tia está me chamando – menti.

- Então até mais.

Eu desliguei a ligação e comecei a procurar por entre os carros do estacionamento.

Eu jurava que tinha visto um vulto, um homem de capa branca para ser mais específico. Como se fosse um sacerdote católico.

Mas não achei nada, e cheguei a conclusão de que devia ser sono. Um sono tão pesado que eu vi especificamente com que se parecia o vulto. É, eu precisava relaxar.

Quando chegamos a praia, João foi comprar uma água de coco para mim, mas eu fui atrás. E um grupo de amigos dele se aproximou de nós.

- Fala, João. Beleza? - Cumprimentou um menino loiro, estilo surfista, de bermudão e descalço, com os chinelos na mão. Na verdade todos estavam do mesmo jeito, e as meninas, todas de camiseta por cima do biquíni.

- Fala, galera. Esse daqui é meu primo, Passus.

- Que nome irado, cara – disse um outro amigo dele.

- É a palavra em latim que deu origem a “paixão”, muito lindo – disse uma das meninas, a mais loira de todas.

- Foi minha mãe que escolheu – disse.

- Legal – disse a outra mais morena.

- Nome bonito pra combinar com você – disse uma ruiva.

- Vocês estão indo embora? - Perguntou João.

- As meninas estão com fome.

- Pode ir com eles. Depois eu encontro você lá. Só vou dar um mergulho. Eu te ligo pra saber onde você está.

- Vai lá. Você vai ficar bem?

- Eu não vou me matar afogado, se é isso que você quer saber – disse, até sorrindo. - É a última coisa com o que vocês precisam se preocupar agora, e tirar a vida a não é comigo. Se eu não estava naquele carro, é porque eu ainda tenho que ficar.

Ele me abraçou, enquanto os amigos dele olhavam para a gente sem entender muita coisa.

Eu fui para o mar, mergulhei, e fui o mais longe que eu conseguia, que não era muita coisa também. Eu era um pouco medroso e não gostava de abusar quando se tratava de natureza.

Depois de uns dez minutos na água eu voltei para o calçadão e liguei para meu primo para encontrá-lo.

- Não precisa ligar, eu te levo lá – disse um dos meninos que estavam entre os amigos de meu primo. - Thales, melhor amigo do seu primo.

- Eu te conheço de algum lugar.

- De um aplicativo de celular, eu nunca ia esquecer seu nome. Mas um babaca estava conversando comigo na hora em que eu ia falar com você e te excluiu, aí eu não consegui mais te achar.

- Agora a gente se achou.

Nós sorrimos um para o outro.

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