Capítulo 2
Parte da série Passio - O Livro do Amor
Aceitação
Então era assim que seria daqui pra frente. Mas como seria? Tinha algo para ser?
Eu nunca, de verdade, pensei em estar naquela situação. Acho que um filho nunca pensa... Quer dizer... Não quando se tem quinze anos... Não quando seus pais são vinte anos mais velhos que você.
- Você não pregou os olhos a noite inteira – disse João, sentando e me abraçando pelos ombros.
- Como você sabe? - Perguntei.
- Estava preocupado com você.
- Isso quer dizer que você também não dormiu.
- Eu dei umas cochiladas.
- Eu não sei o que vou fazer da minha vida, agora.
- Eu vou ser sincero com você. Eu também não saberia. Mas só para você saber, tem uma família inteira que vai estar do seu lado, e nunca vai te deixar de lado.
- Eu sei disso – disse, o abraçando.
Eu sequei o olho com o lençol.
- Eu nunca pensei em como reagiria quando perdesse alguém, ainda menos meus pais – disse.
- A gente nunca pensa, não pelo menos nas suas condições.
- A ficha caiu mais rápido do que eu pensava. Mas a pesar de tudo, eu não estou me sentindo em um abismo. Eu deveria me culpar por isso?
- Claro que não. Isso se chama aceitação. É claro que normalmente demora, acho que nos dois primeiros dias você vai sofrer menos.
- Ah, valeu. Super consolador.
- Desculpa, priminho. Eu...
- Tudo bem, eu só tentei fazer uma brincadeira. Deve fazer parte do processo.
- Um sorriso também ajuda no processo?
- Bastante.
- Eu não sou o Gilberto, mas...
- O Gilberto?
- Num momento como esse eu gostaria de estar com a pessoa que eu amo.
- Há quanto tempo você sabe?
- Desde que eu sou seu primo e te conheço melhor do que ninguém.
“Acho que é melhor a gente não fazer o churrasco”.
- A gente podia ver uns filmes, todo mundo junto. Tem bastante comida e bastante doce. Eu acho que é melhor fazer alguma coisa. Hoje não tem muito o que fazer, vamos deixar a burocracia toda com os adultos. Eu não quero crescer tão rápido. Por um dia pelo menos.
- Você não precisa crescer, pode ser meu irmãozinho mais novo. Tenho certeza que minha mãe ia adorar, e eu sempre quis ter um mesmo.
- Acho que a gente vai ter que conversar sobre esse negócio de irmão mais novo – disse João, sonolento, sentando e me abraçando também.
- Eu só espero que eu seja disputado em algo mais digno do que num jogo de pedra-papel-e-tesoura.
Nós fomos para a cozinha, o café já estava arrumado. Minha vó devia ter saído com meus tios para resolver alguma coisa.
Os meninos foram acordando aos poucos. E por último as meninas, quando já estávamos na piscina.
- Acabei de descobrir mais uma desvantagem de ser famoso nas redes sociais – disse, assim que meu celular apitou pela milésima vez naquela manhã, me alertando de uma notificação de alguma rede social.
- É por isso que as vezes é bom não ficar aceitando todo mundo que te adiciona – disse Juliana.
- Juliana! - disse Diego.
- Eu só adiciono quem eu realmente conheço e tenho contato. Mas as pessoas que me seguem também sabem do que acontece comigo e acabam se solidarizando. Eu só te peço uma coisa. Respeita pelo menos esse momento. Você não gosta de mim, e eu não gosto de você, não precisamos mais ser falsos e fingir que nos damos bem. Mas eu dispenso sua ironia, você não precisa gostar de mim, só me respeita. E eu prometo que vou tentar fazer o mesmo.
Ela ficou me olhando com cara de que sabia que estava errada e de arrependida, mas orgulhosa demais para se desculpar.
- Mas sobre as mensagens – disse Fernando depois de uns segundos de silêncio, em que todos estavam olhando de mim para Juliana e de novo para mim. - Pelo menos por uns três meses você vai ter que aguentar isso, e não digo só pela internet. As pessoas quando te encontrarem na rua, ou coisa assim, vão te desejar os pêsames, vão te olhar com pena, vão falar coisas com você sobre as quais você não vai querer ou vai estar cansado de ouvir – disse ele, sentado do meu lado na borda da piscina.
- E essa vai ser uma das coisas que eu mais vou odiar, e o pior de tudo é que eu sou tão transparente, que não vou conseguir esconder das pessoas que estarei odiando tudo isso.
- Apesar de ser o caçulinha você é o mais forte da galera. Vai tirar de letra.
- Mas essa é uma prova que eu não queria nunca ter que fazer.
- A gente sabe, primo. Mas a vida é assim, mais provas surpresas que na escola – disse Mateus, da churrasqueira.
- Pelo menos eu tenho vocês.
“Essa tensão toda está me tirando o sono, mas o que eu não estou dormindo é equivalente a minha fome”.
- Você quer um doce? - Perguntou Fernando.
- Pode deixar, eu pego – disse, me levantando e indo até a cozinha, que dava de saída para a área da churrasqueira e da piscina.
Quando eu abri a geladeira para pegar o pudim que eu tinha feito para a noite anterior, meu celular tocou.
- Gilberto?
- Eu fiquei pensando no que falar quando eu te ligasse.
- Prefiro que não diga nada.
- “Eu te amo” ajuda em alguma coisa?
- Muito – disse, começando a chorar.
- Bonequinho, não chora. Eu não suporto ouvir seu choro. Eu estou indo pra aí hoje a tarde, meu primo tem que trabalhar amanhã e eu vou pegar uma carona com ele.
- Não precisa. Eu não quero estragar seu passeio.
- Eu quero estar aí com você.
- A gente não pode esquecer que você está namorando minha amiga.
- Eu só quero te abraçar, poder te confortar.
- Eu não sei se isso me faria melhor, pra ser sincero.
- Você quer que eu fique com você?
- Eu sei que se eu pedir você fica, mas eu não sou esse tipo de pessoa. A Jaque merece ser feliz e você também.
- Mas eu seria feliz ao seu lado.
- Seus pais não suportariam a ideia. Você é neto de militar, se seu pai descobre que você largou a Jaque por minha causa, você vai estar frito, e eu mais ainda. É capaz dele querer te mandar pra algum colégio militar.
- Infelizmente ele é capaz de fazer isso mesmo... Tudo bem, acho que também é bom pra você ter esse espaço só seu. Mas eu só liguei mesmo para dizer que eu me importo.
- E você acha que eu tenho alguma dúvida disso? Obrigado por ligar. Ouvir sua voz me deixa um pouco mais alegrinho.
- É bom saber disso, a gente se fala a noite.
- Tudo bem. Até mais tarde – disse, desligando a ligação.
- Você leva mesmo essa coisa de amigo a sério – disse João, entrando na cozinha.
- Meus pais me ensinaram que o mais importante para o caráter de um homem é a cumplicidade. E a verdade também. Por mais que eu ame o Gilberto, ficar com ele seria mentir para minha amiga. E se eu mentir para ela, deixo de ser amigo dela, mentindo para mim mesmo.
- Você tem só quinze anos mesmo?
- Pode acreditar – disse, abrindo um sorriso, não muito largo, mas um sorriso.
- Acho que todo mundo está meio tenso com a Juliana – disse Diego, entrando na cozinha.
- Ela foi maldosa, mas eu não quero que vocês fiquem de lado nenhum. Não quero ser o motivo das pessoas se afastarem dela, principalmente vocês, que são primos dela.
- O Passus tem razão – disse João.
- Que seja... Eu só vim avisar que já saiu carne.
- Então façamos o seguinte, vocês dois vão lá beliscar, enquanto eu esquento o resto das comidas – disse.
- Tem certeza que quer ficar sozinho?
- Só um pouquinho. Eu não demoro.
Antes de saírem os dois me abraçaram pelo ombro e me deram um beijo na cabeça, como meu pai sempre fazia.
Eu tirei tudo da geladeira, menos as carnes. Os pratos quentes eu coloquei no fogão e acendi os bocais. Os frios eu deixei em cima da mesa e coloquei talhares para servir em cada um.
Depois de ter esquentado tudo chamei meus primos para me ajudarem com as coisas e remontamos a mesa perto da churrasqueira.
A imagem fresca de meus pais e eu sentados exatamente onde estavam agora Diego, Mateus e Juliana, ceiando na noite passada veio em minha mente.
Eu tentei não chorar, mas a cada garfada que eu dava. Uma lágrima lentamente escorria em meu rosto – eu estava tentando não chorar desesperadamente, não na frente dos meus primos, que me abraçariam, e tentariam me consolar, falando coisas que como disse Fernando, eu não queria ouvir.
- Quer tentar dormir um pouco? - Perguntou Fernando, se agachando na minha frente.
Eu balancei a cabeça negativamente.
- Eu vou me trocar, quero dar um mergulho. Não se preocupem, é sério. Eu vou ficar triste quando lembrar de alguma coisas, é normal. Eu sei que é normal porque estou com fome – disse, fazendo-os rirem.
Eu entrei, peguei uma sunga minha na cômoda no quarto dos netos, fui até o banheiro, me troquei e voltei para fora, saí da cozinha correndo e pulei bem no meio da piscina, que era um pouco funda, me segurei o máximo que pude no fundo e soltei meu corpo até a superfície.
Vovó não colocava cloro na piscina, mas tinha uma fragrância ali, algo bom, sempre tinha. Vovó gostava muito de óleos, essências, chás, ela amava as plantas e suas flores e frutos. Eu não sabia direito que cheiro era aquele, mas era algo leve e refrescante.
Por cinco segundos consegui sorrir, me lembrando de minha mãe cuidando das plantas na estufa que tínhamos lá em casa, de vez em quando preparando algum óleo ou coisa assim, que segundo ela tinha aprendido com vovó assim que começou a namorar meu pai e nunca mais parara... Até agora.
Eu inclinei minha cabeça para trás e submergi mais uma vez.
Depois de deixarmos duas carnes secarem porque não aguentávamos mais comer churrasco, fomos para dentro, nos trocamos, fomos a locadora que ficava no final da rua, cada um escolheu um filme para alugar, e voltamos para casa para assistir filmes e comer o resto dos doces, fora as caixas de bombom que a vovó tinha dado para cada um de nós.