O Principe e Eu (Parte 5: Medo)

Conto de riick como (Seguir)

Cinco

Medo

Na manhã que se seguiu acordei com os latejos de minha própria cabeça. Abri os olhos devagar e em seguida os fechei. A claridade machucava minha vista, piorando as dores que só poderiam ser comparadas a alguém enfiando uma faca através de meu crânio, repetidas vezes. Levantei tomando o maior cuidado para não fazer nenhum movimento brusco que pudesse piorar meu desconforto. Com muito custo me sentei no colchão e abri os olhos com calma, correndo direção ao banheiro de imediato e me jogando sobre o vaso onde eu despejaria todo o conteúdo que eu havia ingerido na noite anterior. A visão daquela mistura de comida semi-digerida com os ácidos estomacais não ajudou em meu mal estar e eu vomitei mais uma vez. E mais uma, até que não havia mais nada para sair de meus interiores. Puxei a alavanca da descarga que fez desaparecer aquela visão nojenta, me dando uma brecha para recuperar meu folego e acalmar meu estomago dolorido. Quando enfim tive forças para me levantar, foi com muita lentidão e respirando fundo. Aos poucos voltei até o quarto e me sentei novamente na cama, repousando minha cabeça no travesseiro e caindo no sono.

Acordei de novo, sem saber quantas horas haviam se passado. Minha cabeça estava um pouco melhor, a dor já não tão terrível. Meu estômago ainda reclamava, a faca agora era enfiada diversas vezes através da minha barriga. Olhei pelo quarto e encarei uma cama vazia. Thomas não estava ali e também não estava mais cedo, me recordei.

Tentei me lembrar da noite passada mas tudo estava em volto de uma névoa, exceto por aquele singular momento. O beijo. O toque e o peso do príncipe sobre mim. Aquilo estava marcado em minha consciência a ferro e fogo. Olhei para nossas camas e estavam distantes, cada uma em seu respectivo canto, mas eu não me lembrava de tê-las separado. Teria sido Thomas? Ou teria aquele momento tão vívido em minha memória apenas um sonho induzido pela vodka que eu ingerira na noite anterior? De repente me vi duvidando de mim mesmo. Algo que há segundos pareciam tão certo agora me soava alienígena. O pior era que a única pessoa que poderia me confirmar à veracidade daqueles fatos era Thomas, e eu jamais teria a coragem de aborda-lo sobre aquele assunto. Olhei para minhas mãos, estavam suando. Balancei a cabeça como se para espantar aqueles pensamentos e me arrependi quando um latejo fez minha visão ficar turva, tamanha a dor que senti. Me acalmei e me levantei, indo até meu armário. Busquei roupas limpas e as deixei na cama, decidindo tomar um banho antes de me trocar.

Deixei a água quente descer por meu corpo, desatando os nós nos músculos de minhas costas e esperando que fosse capaz de desatar o nó que se fazia em minha mente e em meu coração. Fiquei um bom tempo me molhando, até que meus dedos enrugassem, e sai. Enrolei-me na toalha e desejei que Thomas estivesse lá, com seu sorriso branco em seu maxilar forte. Mas ele não estava. Apenas o frio do quarto vazio e seu leito desarrumado. Aquele detalhe me estranhou, a cama do príncipe nunca estivera desfeita até aquele dia, com o cobertor e os lençóis emaranhados como se alguém tivesse dormido um sono agitado na noite anterior. Decidi que aquilo não significava nada e voltei minha atenção a minhas roupas, vestindo cada uma com cuidado para não ter que me abaixar muito, já que aquilo atiçava minhas dores. Suspirei com alívio quando terminei a torturante tarefa e senti meu estomago se agitando, dessa vez de fome. Um pouco de comida me faria bem. Olhei as horas, porcaria, pensei, estava no meio da tarde e naquela hora não haveria nada para se comer no refeitório. Tive uma ideia e sai do quarto, em busca da cozinha da escola.

Não fora difícil descobrir as direções até o local, que se situava logo abaixo da cafeteria, por uma passagem que levava até o porão. Um costume muito comum na Inglaterra, datando dos períodos medievais até a aristocracia atual onde se acreditava que os empregados deveriam morar e jantar abaixo de seus senhores, criando um laço de respeito e submissão nos vassalos.

Entrei por uma porta lateral que me levaria até a cozinha, descendo por uma escada. Um aroma delicioso de comida me atingiu como um soco, atinando mais ainda meu estomago a medida que eu descia. Era possível ouvir os sons típicos de panela batendo, massa sendo sovada e carne frita. Havia muitos passos, gente andando para lá e para cá no que eu imaginei serem os ajudantes em busca de ingredientes na despensa e que os trazia de volta a cozinha para serem preparados para o jantar daquela noite em Griffin. Quando cheguei de fato na cozinha, vi que estava certo, mas não estava preparado para as dúzias de olhos que iriam se virar em minha direção no momento em que me viram. Havia tantas mulheres quantos homens, todos ocupados, sejam carregando um prato ou cuidado de uma panela. Mas todos, absolutamente todos, pararam o que estavam fazendo e me encararam, com uma expressão completamente chocada. Uma garota veio até mim, puxando-me pelo braço e me levando até um canto.

“Ei, o que você está fazendo aqui?”, ela me perguntou enquanto eu ainda olhava apreensivo para o restante dos encarregados da cozinha que naquela altura já voltaram a seus afazeres, como se nada tivesse acontecido.

“E-eu... Eu estou com fome e... pensei em pegar alguma coisa daqui. Se não se importa.”, falei, olhando para a menina direito.

Era uma jovem bonita de longos cabelos encaracolados, cor de fogo, presos em um coque e parcialmente escondidos por uma faixa que cobria sua cabeça e que ela devia usar para evitar que algum fio caísse na comida. Sobre seus olhos cor de mel a garota possuía algumas sardas. Era muito branca e isso contrastava com sua boca bem rosada que tinha o formato de um coração. Ela me olhava confusa até que, sem razão, abafou uma risada.

“Pelo seu bafo de álcool, o jovem mestre deve estar com uma baita ressaca. Deixa que eu pego alguma coisa para o senhor.”, ela falou e o jeito que ela me tratara, tão servil, me deixou desconfortável. Para mim não era comum ser tratado como mestre de alguém. Corei ao perceber que ela sentira meu hálito e xinguei mentalmente por ter me esquecido de escovar meus dentes. Mantive minha calma, tentando agir como se não fosse algo importante.

“Meu nome é John. John Smith, mas pode me chamar de John.”, falei, para por fim as formalidades.

“Meu nome é Holly McDonald, mas pode me chamar de Holly.”, ela me respondeu sem me olhar enquanto buscava uma cesta de plástico e colocava algumas coisas dentro: pão, algumas frutas, manteiga, pudim e biscoitos. “Aqui está senhor John, depois de comer isso acho que o senhor deve se sentir melhor.”, e lá estava o “senhor” de novo. Suspirei mas não tentei corrigi-la daquela vez, não havia motivo e eu, honestamente, não me sentia apto a fazê-lo naquele momento.

“Obrigado Holly.”, foi tudo que eu disse, pegando a cesta de sua mão e saindo da cozinha.

Subi as escadas sem olhar para trás, sentindo os olhares dos cozinheiros em minhas costas. Segui em direção ao meu dormitório e assim que cheguei fui devorando um pedaço de pão e algumas frutas. Holly não tinha me dado uma colher então fiz meu melhor para comer o pudim e terminei mastigando alguns biscoitos enquanto assistia televisão. Ela estava certa, eu estava mesmo me sentindo melhor. A comida sanara minha fome que por sua vez suavizaram os latejos em minha cabeça. Pela primeira vez naquele dia eu consegui pensar direito, com minha mente indo diretamente até Thomas e onde ele estaria e o que devia estar fazendo, já que ele não havia voltado durante todo o tempo que eu permanecera no dormitório. Talvez por instinto resolvi ir até a biblioteca, imaginando encontra-lo lá.

E lá estava ele. Em uma cabine separada e um pouco isolada vi sua cabeleira loira enterrada em um livro. Não no sentido de alguém que esteja “enterrado” no ponto de estar concentrado na leitura, mas sim no sentido literal, de que Thomas estava realmente com a cara enfiada em um volume qualquer sobre jardinagem. Abri a porta da cabine e o chacoalhei com sutileza pelo ombro, chamando seu nome, sem sucesso.

“Thomas!”, falei, dessa vez dando um empurrão forte que finalmente o acordou. Ele levantou a cabeça com cuidado, massageando as próprias têmporas e abrindo apenas um dos olhos, me observando.

“John?”, ele falou meio desorientado. “Onde estou?”, e olhou em volta, provavelmente reconhecendo a biblioteca. “Como eu vim parar aqui?”, perguntou por fim, sentando-se ereto na cadeira.

“Eu não sei, mas parece que você tirou uma boa soneca enquanto esteve aqui.”, falei, apontando para uma quantidade considerável de baba que havia se acumulado em uma das páginas. Fechei o livro com cuidado, aquilo não pareceria bom aos olhos da velha enrugada e mal encarada que cuidava da biblioteca. “Vem Tom, é melhor você deitar na cama e comer alguma coisa.”

Thomas me olhou de uma maneira engraçada, como se me visse pela primeira vez. Desviei o olhar, mas acabei por encara-lo de volta.

“O que?”, perguntei por fim, com medo de que houvesse alguma coisa em meu rosto.

“É a primeira vez que você me chama de Tom.”, o príncipe falou sério.

“E dai? Aposto que um monte de gente te chama de Tom.”, eu respondi, corando e desviando o olhar outra vez.

“É onde você está errado. Quase ninguém me chama por esse apelido, pelo menos não chamavam há muito tempo.”, e então ele sorriu, tentando se levantar e quase caindo. Instantaneamente o segurei, passando seu braço em volta de meu pescoço, ajudando-o a se apoiar.

“Obrigado”, Thomas falou e eu respondi acenando com a cabeça.

Deixamos a cabine e passamos pela biblioteca atraindo muita atenção enquanto andávamos. Diversos alunos nos pararam, perguntando se o príncipe precisava de ajuda, se se sentia bem ou se precisava que alguém fosse chamado. A maioria parecia ansiosa por uma resposta positiva, com a perspectiva de carregar o príncipe e dispensar o “ninguém” que o carregava, vulgo eu. Mas Thomas esmagava todos aqueles sonhos ao negar todo o auxilio, dizendo que estava bem comigo e que iria voltar ao seu dormitório. Quando chegamos até o quarto de número 106 havia uma verdadeira multidão nos seguindo, perguntando se o príncipe realmente não precisava de ajuda. Levara uns bons dez minutos até que todos saíssem do quarto, deixando o príncipe livre para finalmente descansar.

“Pensei que eles nunca iam embora”, ele falou, encostando-se na parede adjacente a seu colchão.

Peguei a cesta que Holly havia me dado mais cedo e entreguei a ele, para que comesse o que eu havia deixado intocado. Thomas se recusou, dizendo que estava muito cansado para comer e disse que eu teria que alimenta-lo. Ignorei a brincadeira que, de supetão, e me trouxe de volta a toda a razão que me fizera ir busca-lo, para inicio de conversa. A noite passada, o momento. Se era sonho ou realidade. Até agora tudo indicava a um sonho. Exceto pela óbvia ressaca do príncipe nada mais em sua conduta indicava que algo havia trespassado entre nós. Talvez eu houvesse mesmo imaginando aquilo tudo, levado pelo álcool e o desejo, além da proximidade em que eu me encontrava com ele naquela noite. Senti-me triste, desapontado ao perceber que tudo aquilo não passava de uma ilusão. Ao mesmo tempo, não me senti surpreso. Por que haveria de alguém como Thomas ter sentimentos por mim. E mesmo se tivesse, por que iria arriscar sua posição? Os riscos de que algum dos outros meninos entrasse no quarto novamente era imenso e se alguém tivesse visto aquela cena, caso tivesse acontecido, causaria um verdadeiro escândalo não só no colégio, mas em todo o país, ou melhor, em todo o mundo. Convenci-me que as coisas seriam melhor assim e voltei à realidade, observando Thomas comer alguns biscoitos e morder um pedaço de maçã em seguida. Não demorou muito para que ele limpasse a cesta de todo o lanche, até que se deitou na cama, caindo rapidamente no sono. Imitei-o e deitei minha cabeça no travesseiro.

Quando abri os olhos o sol já havia se posto e Thomas continuava dormindo. Acordei com um peso em meu coração, incerto de minha vida e meus sentimentos. Perdido, por assim se dizer. Levantei-me, sentindo-me sufocado e resolvi sair do quarto. Andei pelos corredores quase vazios do colégio. A brisa gelada tocava minha bochecha e enchia meus olhos de água, apesar de eu não ter certeza se era mesmo o vento que causava minhas lágrimas. Encostei-me ao parapeito de uma janela e respirei fundo, me controlado. Olhei para o céu e suspirei, colocando minha cabeça em ordem. O vento soprou outra vez, trazendo um aroma de comida até meu nariz e segui até a cozinha mais uma vez naquele dia. Quando cheguei o lugar estava praticamente deserto, exceto por uma chaleira, alguns biscoitos recém-assados e Holly, sentada em uma cadeira bebericando de uma xícara, perdida em pensamentos.

“Desculpe incomoda-la.”, falei ao entrar, tirando a garota do transe em que ela se encontrava.

“Senhor John, desculpe, eu não o ouvira chegar. Deseja mais alguma coisa? Mais comida?”, ela falou enquanto se colocava em pé.

“Eu gostaria que você parasse de me chamar de “senhor”, eu não sou nenhum senhor.”.

“Que besteira, desculpe eu dizer.”, ela falou, apesar de não soar muito apologética. “Todos aqui são senhores, como o senhor, senhor John. Mas se realmente deseja irei chama-lo apenas por John. Mas não sei o quão felizes ficarão seus pais se souberem que está tratando pelo primeiro nome uma cozinheira.”, Holly falou, sentando-se novamente e me oferecendo uma cadeira.

“Não creio que irão se importar.”, eu respondi, sentando-me enquanto ela colocava uma xícara a minha frente e me servia um pouco de chá preto.

Contei a Holly sobre minha vida. Como eu não era parte de nenhuma elite e que estava ali por uma mistura de sorte e dedicação. Ela ouviu atentamente, admirada por minha capacidade e minhas conquistas apesar de minha modéstia social. A garota também contou um pouco de si para mim. Sobre como veio de uma família rural na Irlanda e mudou-se para Londres querendo se tornar uma chefe de restaurante renomada. De como as coisas não foram tão fáceis e que a realidade era dura e muito mas difícil do que ela imaginava e acabou como assistente de cozinha em Griffin, onde estava juntando dinheiro para poder fazer sua faculdade em Gastronomia.

Fiquei admirado com a perseverança de Holly. Ela era nova, tinha acabado de completar dezenove anos mas podia-se ver que era uma garota trabalhadeira, com muitos sonhos e que mantinha sua positividade e esperança. Havia um certo brilho em seus olhos, que deviam vir de sua obstinação. Inspirei-me nela, preenchido por um sentimento e solidariedade e companheirismo. E decidi me abrir com ela, ao menos em parte.

“Holly, eu tenho esse problema. Digo... meu amigo tem. Ele gosta dessa, hum, garota. Mas ele não é nada popular, ou bonito, ou interessante. E a garota, ela, é muito popular e bonita, todos adoram ela. Outro dia ele achou que eles haviam tido algo especial, mas agora não tem certeza porque a garota não disse nada e ele tem medo de perguntar. O que você acha que meu amigo deveria fazer?”, quando terminei de falar Holly me olhava com um sorriso malicioso. Era óbvio que ela sabia que eu estava mentindo mas continuou o jogo.

“Eu diria que esse seu amigo deveria desencanar dessa garota e procurar alguém menos complicada. Se ela teve alguma coisa com ele, e agora fingiu que nada aconteceu, é porque ela é uma verdadeira vaca.”, não fora a resposta que eu esperava, de maneira alguma. Mas sorri mesmo assim. Agradeci pelo conselho e terminei meu chá. Continuamos a conversar por mais alguns minutos. Holly era uma companhia muito agradável. Quando o sino bateu alertando que já era meia-noite, me levantei, agradeci a ruiva por tudo e me dirigi de volta a meu dormitório.

Durante o caminho pensei no que ela me dissera e cheguei à conclusão que não estava tão errada. Verdade ou ilusão, aqueles sentimentos que eu tinha por Thomas não levariam a nada e quanto antes eu me livrasse deles, melhor. Quando cheguei ao quarto olhei para o príncipe, uma última vez. Troquei meu pijama e me deitei na cama, disposto a acordar no dia seguinte curado.

Comentários

Há 0 comentários.