CAPÍTULO 2 - UM NOVO COMEÇO.

Conto de PauloAmaral como (Seguir)

Parte da série Nas Sombras

Quando o ônibus chegou no terminal rodoviário era por volta do meio dia, o sol cruzava o horizonte, imponente, trazendo consigo a luz que banhava tudo o que eu via. Florestas densas ao fundo de uma cidade pequena, pouco mais de três mil habitantes, era o que dizia a placa de entrada. Muitas montanhas se faziam presentes ao fundo, trazendo um ar pitoresco e ao mesmo tempo sufocante para a pequena cidade. Desci da lotação e me dirigi a fila para pegar as malas no bagageiro exterior do ônibus. Não era muita coisa, apenas duas malas de viagem cheias de roupas e alguns poucos pertences das quais eu contava com uma escova e pasta de dentes, um desodorante e um porta-retratos da minha família. O resto era apenas roupas, não queria trazer nada daquela antiga vida que me trouxe tanto sofrimento. Poucos segundos depois de retirar as duas malas sinto um arrepio que reverbera por todo o meu corpo ao ouvir a voz extremamente grave e aveludada de Rafael.

—Quer ajuda com as malas? – Ele estava atrás de mim, tão perto que eu pude sentir sua respiração quente na minha nuca. Me afastei de tal contato estranhando a proximidade, mal nos conhecíamos, não é como se tivéssemos toda aquela intimidade.

—Não, obrigado. Eu dou conta. – Embora eu quisesse muito que ele me ajudasse só para prolongar o tempo que ficaríamos juntos, eu ainda sentia a estranha necessidade de conhecer mais a fundo a sua pessoa.

—Vamos lá, eu me ofereço. – E pegou as malas antes mesmo que eu pudesse protestar contra. Ele levou as malas para perto de um banco onde eu mesmo indiquei e nos sentamos lá. Voltamos a conversar e nos conhecermos melhor, dessa vez ele me contou coisas mais triviais como tiques e “simpatias” nas quais ele acreditava. Ficamos conversando por horas e mais horas até uma BMW preta parar em frente ao terminal. De lá desceu um cara de uns trinta e poucos anos vestindo um uniforme escuro de chofer, ele desceu abriu a porta de trás do lustroso carro e olhar na nossa direção. Rafael se levantou e eu soube que era chegada a temida hora. Me levantei a fim de me despedir dele.

—Bom, é isso. – Ele começou. —Chegou a minha hora, eu tenho que ir. – Embora tenha sentido uma pontada de tristeza no coração em saber que ele teria de partir seria muito estranho se eu o pedisse para ficar por mais tempo. Decidi apenas por fim naquilo estendendo a mão enquanto ele num gesto mais ousado veio direto com os braços abertos me envolvendo. Num misto de confusão entre mãos apertadas e troncos colados nos despedimos. —Gostei de conversar com você. – Ele disse. —A cidade é pequena talvez nos encontremos outra vez. Você tem celular?

—Sim. – Balbuciei entorpecido pelo desapontamento

—O.k. Me passe seu número.

Passei o meu número a ele que anotou avidamente e depois de uma rápida ligação para confirmar e outro abraço desengonçado ele me dá um solene “tchau” com um aceno de mão.

—Tchau, Rafael. Tchau. – Eu digo mesmo sabendo que ele provavelmente já está longe demais para ouvir. O carro arrancou pela estreita rua e sumiu de vista segundos depois. E lá se foi mais alguém na minha vida. Durante o pouco tempo que permaneci com Rafael acabei gostando dele, da sua companhia, era agradável conversar com alguém que não me lançava um olhar de pena a cada segundo como se eu fosse um pobre coitado ou um cachorro de rua, eu havia contado minha história, a história da morte de mus pais na realidade, a ele e tudo que eu recebi foi o mais sincero “Sinto muito” das últimas semanas, ele não reforçou as condolências ou insistiu no assunto. Ele simplesmente me confortou e me fez esquecer, mesmo que por algumas horas, o doloroso evento.

Fiquei mais algum tempo sentado no banco até meus tios aparecerem para me buscar, poderiam ter se passado minutos ou horas mas não fez diferença alguma. Meu tio levou as malas para o carro enquanto minha tia me abraçava e chorava mais uma enxurrada de palavras de conforto que mal sabia ela, só pioravam minha situação. Meu tio veio depois de acomodar minha bagagem no porta malas e me deu um rápido abraço e despejou em mim um “Sinto muito mesmo, mas pode contar comigo. Sério, pra qualquer coisa mesmo.” O que não foi melhor do que se ele tivesse dito “Oh seus familiares morreram, não é? Coitadinho de você! Mas não se preocupe, sempre que quiser lembrar da morte miserável deles ou da vida que eles poderiam ter vivido se não estivessem, bem, mortos, pode vir me procurar!” mas eu agradecia pela ingenuidade deles de tentar me ajudar, era melhor do que nada. E agradecia mais ainda por eles terem me aceitado na casa deles quando todos os outros recusaram ter sob seus tetos um órfão de dezesseis anos angustiado. Nessa parte eu agradecia a qualquer forma divina por ter colocado eles na minha vida.

Depois de entrar no Lexus prata de meu tio seguimos pela mesma rua estreita que meu recém amigo, Rafael, havia seguido tempos antes. Olhei através das janelas escuras e contemplei o crepúsculo quente de cores que iam do amarelo canário ao purpura, se misturando com o preto da noite que em breve cairia. A rua estreita cercada de barrancos logo em frente se abriu em uma majestosa estrada de duas vias cercada de pinheiros, eucaliptos e mais uma enorme gama de outras espécies de arvores que eu nunca saberia dizer o que eram. Sabia apenas que eram altas o suficiente para encobrir a luz do sol poente, deixando apenas alguns filetes solitários baterem no para-brisa. Não pude deixar de notar como a paisagem era bonita e enganadora. Olhando para ela você poderia imaginar todos os tipos de animais vivendo ali dentro, de esquilos a cervos, de morcegos a águias ou até mesmo pandas. Era surreal a sensação que ela passava. Era mágica.

Demoramos alguns minutos na estrada até adentrar pelas ruas cheias de casas em ambos os lados. Era um bairro residencial como qualquer outro, com casas e seus gramados bem aparados e verdes, decorações de jardim, casas com janelas convidativas e carros na garagem. No mesmo instante que contemplei aquilo me senti melhor, soube que dali para a frente eu poderia reconstruir uma nova vida longe dos horrores do meu passado. Definitivamente iria ser diferente dessa vez. Meu tio continuou seguindo pelas ruas de pavimento já gasto, um buraco ou outro fazia o carro saltar de vez em quando mas nada incomodante. Nós seguimos pelas ruas e eu pude observar as várias casas enfileiradas com seus jardins e casas de cachorro. A casa dos meus tios não ficava exatamente ali como pude ver, ficava no fim da rua, onde três casas mais requintadas se mostravam gloriosas. Uma do lado da outra, uma à esquerda, outra à direita e uma no centro. E foi na frente dessa que ele parou.

Quando desci do carro senti sob as solas de meu tênis o calor do asfalto que passara o dia debaixo do sol escaldante, ouvi as crianças que brincavam ao longe sem hora para voltar para casa, senti o cheiro dos jantares sendo preparados. Era tudo tão maravilhoso, tão normal, que me senti grato mais uma vez de ter aquela segunda chance. Uma chance de parar de me culpar e viver minha vida pacatamente, como todos ali. Não que eu achasse bom a morte da minha família, mas certas coisas são para serem esquecidas, deixadas para trás como poeira ao vento.

Meu tio mais uma vez se encarregou de levar as malas para dentro de casa, que por sinal era uma bela casa. Não era mais o apartamento que eu me lembro de visitar aos sete anos de idade, agora, depois de um jardim enorme guardado por um portão pesado muros altos cobertos de hera, havia uma parede de vidro e no centro desta uma porta alta de madeira branca. Adentrei por ali com a minha tia que agora havia insistido para carregar as malas enquanto meu tio tinha dito sair para um compromisso qualquer em algum lugar. Caminhamos pelo luxuoso hall com piso de mármore claro e seguimos para a sala onde ela deixou as malas e estendeu os braços.

—Bem-vindo ao nosso Império querido, sinta se a vontade. – Ela disse “Império” com um entusiasmo enorme e vendo que eu não respondi recolheu seus braços e tornou a falar. —Você lembra do seu priminho Edward? Bem, ele cresceu e não é mais tão “priminho” assim. Você lembra dele? Vocês brincavam juntos quando vocês iam nos visitam na antiga cidade... – Mesmo não lembrando do tal Edward, pelo menos não muito, resolvi mentir. Mentir sempre foi mais fácil para mim do que dizer a verdade. A verdade era como ácido à minha garganta: Corroía. Ela passou mais algum tempo falando e me mandou subir para conhecer meu quarto enquanto ela saia para ir ao cabelereiro, ou chaveiro, não entendi muito bem. “Segunda porta à direita, e não se preocupe, Ed em breve estará de volta. Beijinho.” Ela dissera. Depois beijou minha bochecha e saiu mas não antes de voltar e mencionar que tínhamos três empregadas caso precisasse e mais um chofer “de reserva”. Eu disse que iria chama-los caso houvesse algo mas apenas levei minhas malas pela escada e fui em busca do quarto. Era enorme. Cama de casal com dois criados mudos e abajures, varanda com vista para o horizonte salpicando de montanhas, duas portas menores que descobri se tratarem do banheiro e closet. As molduras dos quadros, móveis, cortinas da porta da varanda, tapete que ficava sob a cama e detalhes menores em preto e o resto branco. E seguia o mesmo padrão no closet, com suas prateleiras e portas de correr pretas, e no banheiro, com bancadas, vaso, e o chuveiro que ficava em cima de uma banheira. Tudo preto num fundo branco. Sóbrio. Elegante. Perfeito. Desfiz minhas malas e distribui tudo no closet que já tinha alguns casacos, tênis e outras coisas que julguei serem presentes e fui para a varanda respirar um pouco.

A essa altura o sol já havia caído totalmente, as corujas piavam na mata próxima e as montanhas eram apenas silhuetas na imensidão escura. Olhei para aquilo e imaginei minha vida antiga e como pude chegar aqui. Foi muita dor, mas agora eu parecia ser recompensado. Não pude deixar de pensar neles, meus pais e meus irmãos, e onde estavam. Num lugar melhor? No céu? Ou apenas embaixo da terra fria e úmida onde foram enterrados? Era doloroso pensar naquilo, senti a culpa me remoer novamente e algumas lágrimas caírem mas eu pensei “Não. Agora chega. Eu estou vivo e devo agradecer por isso, sem tristeza mais. Daqui pra frente, só alegrias” e só deu tempo de secar as minhas poucas lágrimas até o telefone vibrar no meu bolso. Era uma mensagem de Rafael, meu recente amigo. Abri e me senti confuso ao ler:

Eu disse que a gente podia se reencontrar

a cidade é muito pequena!

(Olhe para o lado)

E quando eu virei, na sacada ao lado, lá estava ele olhando para mim e rindo. Mais confusão.

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Obrigado Fagner, obrigado mesmo. Realmente muitas coisas ainda serão descobertas, e espero que você esteja aqui para acompanhar :)

Comentários

Há 2 comentários.

Por jpli em 2015-03-29 12:07:44
Meus deu curtiiiiiiii
Por Fagner em 2015-03-29 08:02:20
Ah sim. Com certeza eu estarei aqui... Rsrs. Só com sua bela escrita, você já me ganhou...😊 Enfim, vejo que a vida do nosso protagonista, mudará totalmente. Um misto de saudade e nova esperança, tomou conta desse capítulo, e eu diria que foi estupendamente perfeito. Esse tal Rafael me surpreende cada vez mais, um belo homem (creio eu), educado e mais uma vez se mostra pronto para ajudar. Eu poderia dizer que torço para esse casal, mas nem sei se eles realmente formaram um casal. Então prefiro que você nos surpreenda com mais emoções, (coisa que em apenas dois capítulos, você fez muito bem), e eu adoro isso. Espero que a vida de Enzo, seja melhor daqui pra frente, e alguma coisa me diz que será. Também espero que essa amizade com Rafael, traga momentos bons. E eu tenho certeza que trará. Bom, senhor Paulo Amaral. Saiba que estarei aqui sempre, pois sua série já é mais que especial pra mim. Como eu disse."Só com a sua bela escrita, você já me ganhou".. Um abraço para você lindo..