CAPÍTULO 1 - UM ASSENTO ESPECIAL

Conto de PauloAmaral como (Seguir)

Parte da série Nas Sombras

"Muitas coisas na vida parecem improváveis. Muitas vezes você vai ouvir histórias e dizer que são mentiras, vai dizer que aquilo é impossível, mas não é. Improvável talvez, mas impossível nunca, e eu digo isso porque sei o quanto a vida pode nos surpreender, sei o quanto a vida pode nos dar histórias improváveis. Eu vivi isso."

Quando cheguei na rodoviária a única coisa quente no ambiente eram as lágrimas nos meus olhos e talvez as poucas lanchonetes espalhadas por um canto e outro. Nuvens cinzas dançavam no céu acima da cabeça das pessoas mas elas pareciam não se importar, bem, eu me importava. Aquela tarde escura e fria de novembro só parecia entrar em conformidade com os outros fatores para me corroer mais ainda por dentro e por fora também pois pelo modo como as pessoas me encaravam, minha aparência devia estar horrível.

Após comprar as passagens para minha cidade destino fui até umas das lanchonetes empoeiradas e rezei mentalmente para que os alimentos tivessem sido preparados dentro da última década e para minha sorte eram, ou pelo menos foi o que a atendente disse dos lanches expostos na estufa de vidro. Sentei em um banquinho de bar que parecia não ser limpo havia anos pois no centro de uma grossa camada de poeira estava a marca dos traseiros que vez ou outra faziam companhia àquele velho pedaço de couro vermelho. Me sentei ali, deixando a minha contribuição no histórico daquele assento que um dia talvez viesse a ser conhecido como “O Assento dos Traseiros”, e pedi nada mais que um café expresso e um queijo quente, igual ao que os meus pais faziam para mim antes dos acontecimentos pouco felizes que os levaram dessa para uma, talvez, melhor.

Mordi o tal lanche e me arrependi no mesmo instante. O troço tinha gosto de insetos, não que eu já tivesse provado um, mas tinha! Decidi deixar aquilo parcialmente mordido ali no balcão e tentar a sorte com o café que por sinal foi menos pior porém não melhor, ainda bem eu acho. Enquanto empurrava o café esôfago abaixo uma figura deslizou no banco ao lado, que não era tão legal pois não tinha um histórico de bumbuns, e pediu um café expresso como o meu, olhei de soslaio e vi se tratar de um rapaz, talvez mais velho, talvez mais novo que eu mas eu nunca saberia dizer ao certo. Virei um pouco mais a cabeça e vi que ele também me encarava de lado, senti meu rosto queimar e desviei no mesmo momento rezando para ele não ter notado.

Não sei o que aconteceu, um sentimento estranho começou a crescer dentro de mim, eu queria olhar mais para ele, eu queria ser notado por ele. Olhei mais algumas incontáveis vezes e em todas elas ele estava a me encarar, eu queria simplesmente virar e contar toda a minha vida para ele e construir uma grande amizade. Eu queria que ele virasse para mim e fizesse o mesmo, mas nada aconteceu. Nada por longos minutos, pelo menos mais do que eu pude contar, meu desejo de conhecer aquele estranho me assustou de tal forma que seria impossível explicar com palavras. Era um desejo literalmente abrasante, senti minhas veias inflamarem e meu sangue correr mais rápido. Mas tudo que eu fiz foi nada, talvez a única ação digna de minha coragem fosse pedir mais incontáveis xícaras de café só para retardar a minha separação do lado daquele ser. Não sei se foi bem impressão minha mas ele também pediu um café atrás do outro, mas deve ter sido impressão, é impossível ele pedir vários cafés para ficar ao meu lado, eu pensei. Ninguém seria doido (lê-se burro) o suficiente para isso, ninguém se não eu.

Após mais ou menos meia hora, quando eu já estava mais que enjoado de tanto café, a minha lotação foi chamada, me senti triste por ter de deixar o meu desconhecido mas tive que ir. Paguei os cafés e descobri que foram dezesseis xícaras em trinta minutos! Cheguei a ficar preocupado sobre tanta cafeína no organismo.

Entrei no ônibus depois de guardar as minhas duas malas no bagageiro de fora, procurei minha poltrona e sentei no lado da janela, gostava de olhar pela janela e ver o mundo passar enquanto eu continuava no mesmo lugar. Fiquei ali esperando os outros passageiros subirem para depois partirmos para uma vida nova. Eu já estava fazendo promessas mentalmente de como me reestruturar; eu não ia chorar, ia ser impassível, eu não ia ser digno de pena. Continuei nesses pensamentos de auto encorajamento até uma voz me tirar do transe, era uma voz doce, calma, mas também grave e profunda. Virei-me para encarar o dono da incrível melodia e me deparei com o mesmo homem da lanchonete, porém dessa vez eu pude vê-lo melhor: Alto, moreno e incríveis órbitas claras, iam do verde ao azul mas eu nunca saberia ao certo. Eram incríveis. Ele apontou para a poltrona do meu lado e perguntou algo, mas eu estava ocupado demais o admirando, devo ter passado tempo de mais o olhando sem responder, pelo menos tempo o suficiente para ele recolher o dedo e fazer uma expressão de dúvida, o que foi o estopim para mim acordar.

—Desculpe, o que disse? – Tentei ser o mais educado possível depois de uma gafe daquelas. Para minha sorte ele não me olhou feio ou saiu gritando horrores pelo ônibus, ele apenas sorriu e repetiu educadamente a sua pergunta, o que me surpreendeu de diversas maneiras.

—Eu apenas perguntei se havia alguém para sentar nesse lugar. – Ele repetiu aquilo com a voz mais aveludada que eu já ouvi, era uma voz marcante, máscula, sensual. —É que os outros lugares estão ocupados e... bem, tem alguém ou não?

Contive a minha necessidade repentina de sorrir de liberei o local para ele que apenas me olhou agradecido e me sorriu enquanto guardava uma mochila preta no bagageiro. Após concluir a tarefa ele se sentou ao meu lado, me encarou novamente e expôs a fileira de dentes brancos e retilíneos que faziam moradia sob aqueles lábios cheios e rosados.

—Prazer, Rafael. – Prazer. Que engraçado. Ao som da leve pronuncia daquela palavra milhões de imagens de dor e êxtase me vieram a mente; gritos, gemidos, lágrimas e sorrisos. Tudo se misturava de uma forma caótica dentro da minha mente, mas eu não podia deixar ele sem resposta. Tentei me lembrar de como falar novamente e expeli algumas palavras que devem ter saído meio estranhas julgando pelo som da risadinha que ele deu ao me ouvir.

—Prazer Rafael. Sou Enzo.

—Legal. Enzo é um ótimo nome. – Essas foram suas únicas palavras durante horas sentado ao meu lado. Eu também não tentei puxar assunto, nunca fui bom nisso, apenas virei para a janela e fiquei encarando as paisagens borradas que passavam pela janela. Iam de cidades se afastando a campos cheios de vacas pastando e a cidades de novo. Não sei bem em quanto tempo aconteceu mas dado momento eu acabei adormecendo com a cabeça encostada na janela, sentir o leve tremor das estradas me acalmava um pouco.

Acordei com um enjoo horrível, sentia meus intestinos revirarem e meu estomago se contrair. Olhei para os lados desesperadamente e a única coisa que vi foi Rafael me encarando assustado enquanto eu raciocinava num milissegundo que ele era legal de mais para isso, me voltei de novo para a janela e a abri descontroladamente. A lufada de vento frio e veloz atingiu meu rosto enquanto eu encaixava a cabeça na janela e abria a boca. Foi apenas o tempo de concluir a ação. O vento levou uma linha irregular de vômito marrom pintando o asfalto, me esvaziei completamente. Agora eu sabia o que muito café somado à uma viagem de um dia causava. Depois de ter expulsado tudo do meu estômago e me certificar de que nada mais viria sentei normalmente no meu assento e coloquei o rosto entre as mãos para respirar um pouco. Quase tinha me esquecido de Rafael quando a sua voz se manifestou novamente.

—Tá tudo bem? – Ele perguntou casualmente embora eu tenha notado a solidariedade na voz dele.

—Tá, tá sim. Eu só me senti meio enjoado e bem... você viu. – Me senti desnorteado por alguns instantes. —Tem banheiro nesse troço? – Ele olhou pelo corredor e me indicou que devia haver um no fundo do coletivo julgando pela cabine.

—Você tá bem mesmo? Porque eu posso ir com você se quiser. – Ele se ofereceu gentilmente, era um bom rapaz pelo que eu estava vendo.

—Não. Mas se eu demorar muito dê um jeito de chamar alguém, tudo bem? Eu não quero morrer num banheiro de ônibus. – Brinquei com aquilo que fez ele esboçar um sorriso novamente. Eu adoraria conhece-lo melhor senão estivesse com o prazo de algumas horas até a cidade destino.

O banheiro era apertado e tinha nada mais que uma pia suspensa e suja e um vaso cujo o fundo dava no asfalto que passava ligeiramente sob meus pés. Depois de algumas voltas na torneira a água velha desceu com um rangido pelo encanamento enferrujado. Joguei água no meu rosto e lavei a boca para tirar qualquer vestígio do café recém regurgitado da minha boca. Sequei parcialmente o rosto com papel toalha e me sentei na boca do vaso quando minha vista começou a embaçar de novo. Não demorou muito e ouvi batidas leves na porta, seguidos de um sussurro abafado.

—Menino, você tá legal?

Reconheci a voz do meu recém conhecido Rafael. Eu dissera para ele vir se eu demorasse mas não fazia nem dez minutos desde que eu havia entrado ali. Achei cômica a cena dele atrás da porta prestando preocupação grátis à um “meio desconhecido”.

—Estou. Já saio, espera só um minuto. – Tentei respirar fundo para poder sair da li de dentro sem demostrar um estado péssimo. Abri a porta e me deparei com uma cara de preocupação que me aqueceu de uma maneira estranha. Ignorei o calor que só crescia dentro de mim e tentei agir como uma pessoa normal.

—Nossa, que susto! Eu achei que você tivesse falado sério quanto morrer dentro do banheiro. – Ele soltou uma risada calma e baixa, a primeira que ouvi desde que nos falamos pela primeira vez horas atrás.

Voltei para meu assento acompanhado de Rafael e começamos a conversar e nos conhecer cada vez mais, ele era agradável e tinha uma linha de raciocínio muito semelhante a minha, era como se o cérebro de um tivesse sido clonado e plugado na cabeça do outro. Ele me falou sobre seus hobbies, manias, gostos, passatempos, perspectivas para o futuro e mais um monte de coisas. Acabei descobrindo que ele tinha dezenove anos (embora se eu fosse julgar diria pelo menos vinte e três), ele era solteiro recente e morava em um apartamento fora do país mas que após uma decepção amorosa resolveu voltar para morar com o pai, a mãe havia morrido durante o seu parto e ele nunca a conhecera de fato. Não tinha filhos mas tinha um cachorro que ele tratava como um, queria se formar em arquitetura e com o tempo talvez se mudar de novo para fora, porém para um país diferente. O cara falava cinco idiomas, seis com o seu idioma materno! Era um gênio. Me confessou ter alguns problemas comuns mas nada sério ou que lhe causasse danos de alguma forma. Também me fez muitas perguntas sobre diversos assuntos, como idade, naturalidade e coisas relacionadas. Mas uma pergunta me surpreendeu de uma maneira que eu não esperava.

—Mas e então, qual a sua história? – eu fiquei sem palavras, eu já havia contado tudo pra ele desde a idade ao meu antigo endereço.

—Como assim?

—Como assim o que? Sua história, de vida. – Fiquei um tempo o encarando tentando decifrar o que ele dizia, pois para mim parecia uma das cinco línguas estrangeiras dele. Ele percebeu isso, ou apenas ficou constrangido pelo tempo demasiado que o olhei. —Vamos, o que te trouxe aqui? Para onde vai? É isso que eu quero saber. – Passei mais um tempo formulando a resposta, agora havia entendido, só não queria responder.

—Bem, eu morava na capital com meus pais e era bem feliz lá com eles. Éramos uma família normal, um pai, uma mãe, uma irmã e um irmão. Meu pai era bancário e minha mãe gastrônoma. Eu e meus irmãos estudávamos no colégio da cidade, tínhamos um cachorro e uma ótima vida. É só isso. – Sorri gentilmente, a outra parte era dolorosa demais para mim ainda.

—Não, não é só isso. – Ele me acusou olhando nos meus olhos. —Tem mais história ai, me conte.

—Como você pode saber? É apenas isso, eu já falei!

—Vamos lá. – Ele insistiu. —Me fale. Do que tem medo? Pode se abrir comigo, nem nos conhecemos. Seja lá o que for que você me contar eu vou guardar comigo e levar para sempre, eu juro.

—Tudo bem. Tem mais sim. Mas é uma parte dolorosa da minha vida não quero deixar isso muito exposto, sei lá. – Novamente ele se calou e esperou pela minha continuação. —Faz poucos dias, eu voltava da escola e vi muita gente correndo ambulâncias, viaturas e o corpo de bombeiros. Corri também e me deparei com... bem, a minha casa havia sofrido um incêndio e o que restou foram os... – A bile me subiu pela garganta, por um momento achei que fosse vomitar de novo, era desconfortável falar daquilo pela primeira desde o ocorrido e ainda por cima com um desconhecido completo. —O que restou foram os corpos carbonizados da minha família. – Eu expeli a frase de uma vez com a voz já embargada, era inevitável que algumas lagrimas riscassem meu rosto. —Agora vou morar com meus tios e ver no que dá. – Eu estive sendo forte esse tempo todo e não iria perder a máscara agora, na frente de um estranho. Sequei os olhos rapidamente e sorri. O melhor sorriso da humanidade eu espero. Ele não disse nada. Nem um sinto muito foi dito ou qualquer forma de expressar pena, na verdade eu não sei se eu fiquei agradecido ou não. Depois do que pareceram duas eternidades seguidas ele disse algo, não algo produtivo ou significativo. Ele disse “Entendo”. Simples, seco e baixo. E de alguma forma foi a palavra mais reconfortante que eu ouvi desde a tragédia.

Nada mais foi dito. Ele virou para frente e encarou o nada e eu apenas encostei minha cabeça na janela tremulante do ônibus e observei a paisagem com pastos onde uma tímida luz no horizonte ousava denunciar o nascer de um novo dia. Imaginei quantas pessoas não estavam para acordar e dar início a mais um novo dia de suas vidas, pessoas animadas e outras desesperadas por terem que ir para seus empregos, estudantes se queixando por acordar cedo. Quantas pessoas esperando para um recomeço estavam acordando agora? Era como um oceano, milhões de peixes vivendo juntos mas independentes uns dos outros. E eu, era apenas mais um peixe vivendo independente em busca de um novo recomeço. De preferência feliz desta vez.

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É ISSO, ESPERO QUE TENHAM GOSTADO E SE PUDEREM COMENTEM PARA EU SABER COMO ESTOU ME SAINDO >< OBRIGADO

Comentários

Há 1 comentários.

Por Fagner em 2015-03-26 08:47:49
Hey Paulo Amaral, muito prazer , meu nome é Fagner. Primeiramente, queria te parabenizar por escrever tão bem. Sua escrita me fez com que eu lesse e entendesse perfeitamente. Eu não sou corretor ortográfico , mas não vi um erro sequer em seu texto. Agora vamos a história. Aparentemente a vida de Enzo foi um tanto complicada, o garoto perde a família em um incêndio e vai morar com os tios. Tudo bem, isso sim é uma verdadeira tragédia. Enzo parece ser um rapaz culto e mede bem as palavras antes de se pronunciar. Sei que este é o primeiro capítulo e os personagens ainda não mostraram suas respectivas características, mas eu vejo que o Enzo é um garoto forte, mas não sabe usar essa tal força, outra coisa, ele tambem aparenta ser muito ingênuo, ainda mais se tratando de pessoas que ele não conhece. Vejo que essa nova jornada, mostrará a ele, o que realmente são as responsabilidades e também, qual a sensação de descobrir amar alguém e saber que isso é recíproco. Rafael por outro lado, ja se mostrou ser prestativo, e tem muita conversa . Ele não é aquele tipo de pessoa que se diz, "Nossa que cara chato.", aparenta ser bem mais convidativo, e isso é bom. Rapaz educado, preocupado e que gosta de ajudar. A perspectiva que tive deste primeiro capítulo, foi de que virá uma grande história pela frente, cheia de altos e baixos... Como o nome da série/conto, mesmo diz, "Nas sombras", vejo que no meio destas"sombras", haverá muita história para ser contada. Enfim, senhor Paulo Amaral. Saiba que estarei aqui esperando o próximo capítulo. E desde ja agradeço, pois é o primeiro capítulo, mas é algo que já vemos como uma bela história. Como dizem "A primeira impressão, é a que conta.", no seu caso,contou muito, pois eu tive uma ótima impressão de tudo isso... Um abraço.