01X06 - Esquecido

Conto de Cesar Neto como (Seguir)

Parte da série Lendas de Amor e Sangue

[1976]

A família Celestino estava sentada na grande mesa de mármore para mais um jantar de sábado.

O pai da família, mais conhecido como Dr. Evandro chefiava as plantações de soja de todo aquele território. O homem já tinha seus 58 anos de idade e se encontrava na ponta da mesa de onde observava muito bem seu único filho e herdeiro de todas as suas terras.

Ferdinando, um garoto no auge dos seus 19 anos, temia o olhar do pai. O menino tinha os cabelos castanhos penteados para o lado, era magricela e tinha pequenos fios de barbas nascendo em seu queixo. Diferente do pai que sempre fora um homem forte e robusto até mesmo com sua idade avançada.

- Você mudará para São Paulo no próximo Domingo. - Dr. Evandro disse enquanto mastigava uma suculenta coxa de frango.

- Pai, eu... - o garoto tentou intervir.

- EU DISSE - a voz de Dr. Evandro se levantou - que você irá para São Paulo nesse domingo. Por acaso você está surdo?

Ferdinando revirou os olhos e deixou o prato intocável em cima da mesa e se dirigiu para o seu quarto. A casa em que eles moravam era a sede da fazenda, fora construída pelo seu pai há mais de vinte anos para iniciar uma bela vida da família Celestino, mas tudo acabara dando errado.

E Ferdinando era o motivo de tudo aquilo.

Sempre ouvira histórias de que no dia em que ele nasceu, uma grande tempestade atingiu o interior. As plantações foram completamente destruídas pela chuva, casas levadas pelo vento e o pior de tudo: no meio do parto, sua mãe teve um sangramento e era impossível chamar um médico. Ela acabou morrendo sem ao menos carregar o filho no colo.

Seu pai se tornara o homem mais amargo e fechado de toda região. Criou o filho com mãos de aço, isolando ele do restante do mundo. Ferdinando sempre teve aulas particulares em casa, aprendeu serviços braçais com alguns criados e teve a companhia de sua babá Tereza que sempre fora uma segunda mãe para o menino.

Ferdinando provara que não havia puxado o pai em nenhum aspecto. Não era inteligente igual ao Dr.Evandro, não possuía a mesma força que o seu progenitor e muito menos a coragem que ele jurava que deveria ter. O menino sempre gostava da simplicidade, da justiça e do amor. Isso deixava Dr. Evandro cada dia mais decepcionado com seu único filho.

O estopim da decepção veio uma semana atrás. Dr.Evandro retornava de uma reunião com alguns fazendeiros que plantava café e queriam fazer um acordo de terras. O homem chegou em casa mais cedo e exausto e quando entro pelas portas de sua fazenda, sentiu que algo estava errado. O filho de Benedito, seu sitiante de maior confiança, não estava o esperando na porteira como de costume. Sabia que o menino de nome Francisco não puxara nada da honestidade do seu pai, assim como Ferdinando não puxara nem um traço dele mesmo.

A procura de encontrar os dois meninos aprontando. Dr.Evandro abriu a porta da casa devagar e o que ele viu, fez o coração do homem congelar.

Seu filho estava beijando Francisco na boca.

Ferdinando percebeu a presença do pai e tentou disfarçar. Encarou o pai por alguns instantes, mas sabia que ele não poderia dizer nada para amenizar as coisas. Apenas se despediu de Francisco e encarou os olhares de reprovação do pai.

No dia seguinte, recebeu a notícia que teria que se mudar para São Paulo.

Ferdinando sentiu seu estômago se embrulhar e arrependeu-se de não ter jantado. Em menos de dois dias ele teria que se mudar para a capital e jamais iria rever seu único amigo que tentava ajuda-lo naquela vida.

Sua amizade com Francisco começou tarde. Os dois se conheceram com 18 anos e apesar de sempre terem vividos relativamente perto, jamais tiveram contato até atingir a idade dos 18. Aquilo para Ferdinando tinha sido como encarar um mundo novo e ele deixou-se perder pelo garoto de traços rústicos, musculosos, e poucos cabelos preenchendo o topo do seu rosto quadrado.

Em uma manhã, Ferdinando saiu para galopar em seu cavalo e ir até a cidade vizinha ver um pouco das novidades que a pequena cidade começava a trazer. Por morar sempre em sítio, as vezes se deixava levar pelas luzes, discos, música e tudo que seu pai sempre proibira na casa. E foi naquela manhã, retornando da cidade, que ele encontrou Francisco.

O amor nasceu mais rápido que a amizade. A partir desse dia ambos não se desgrudaram mais. O primeiro beijo deles, aconteceu em um pôr do sol onde ambos estavam empinando pipa. Por descuido, a linha do pipa de Ferdinando estourou e acabou indo parar na grande mata fechada que tinha perto da fazenda, ambos os garotos foram procurar. E quando finalmente acharam, um beijo de felicidade acabou acontecendo.

A primeira transa acontecera em um rio. Os garotos começaram a criar o costume de ir nadar nos riachos que tinham ao redor da fazenda e numa dessas acabaram desafiando-se a nadarem pelados. Sem nenhuma roupa no corpo, Ferdinando e Francisco pularam na água gelada. Porém quando ambos se tocaram em baixo da água, uma chama de desejo surgiu. A virgindade dos meninos escorreu com o percurso do riacho que continuava a seguir.

Ferdinando lembrou-se daquilo tudo com uma lágrima de tristeza brotando em seu rosto. Decidiu que iria fugir a procura de Francisco naquela mesma noite. Iria propor a fuga para seu amante e ambos viveriam suas vidas em qualquer outro lugar menos ali, aos olhos do seu pai.

Pela primeira vez Ferdinando sentiu coragem e escapou pela janela do seu quarto.

Percorreu um longo caminho até chegar na casa de seu Benedito. Atravessou a pequena porteira de madeira e escutou os latidos dos cachorros. Viu uma lamparina iluminar a porta e percebeu que aquele era Seu Benedito:

- Boa noite Seu Benedito! - Ferdinando gritou - O seu filho está em casa?

- Entra aqui menino - Seu Benedito gritou de volta - ele já está para chegar.

Ferdinando entrou na casa do Seu Benedito, ou simplesmente Dito, e sentou no pequeno banquinho de madeira.

- Ele saiu para tratar de uns assuntos na cidade - o senhor Dito disse descansando a sua pança na cadeira - já já ele há de voltar.

- Precisava conversar com ele sobre os cavalos - mentiu Ferdinando - o senhor se importa se eu espera-lo por aqui.

- Claro! Desde que você não me negue um bom conversê - falou Dito - fiquei sabendo que o patrãozinho está indo para a cidade grande...

- Meu pai quer me mandar para lá por causa dos estudos - o menino mentiu mais uma vez - mas eu não quero ir sabe senhor Dito?

- Sei muito bem e eu também sou contra a essa sua ida - disse o velho - seu pai deve ter titica de galinha na cabeça para mandar seu único filho e herdeiro para a cidade grande a fim de aprender alguma coisa. Olhe em volta! Tudo que você precisa aprender está aqui.

- Concordo - Ferdinando adorava conversar com Seu Dito - mas tenta convencer meu pai disso. Escutei várias pessoas dizendo que ele tem uma rocha no lugar do coração.

- Oxê menino - Dito se assustou - não fale assim de seu pai.

- Mas porque? - indagou o menino - é o que ele é de verdade.

- Por acaso sua babá nunca lhe contou a lenda do homem de coração de pedra?

- Nunca gostei dessas lendas - reclamou Ferdinando - elas não passam de besteiras.

- Pois você que pense. Chegue mais perto aqui para você escutar melhor essa história.

"Existia uma mulher no antigo vale do Jucá que tinha tamanha beleza que nenhum homem resistia aos seus encantos. Todos eram apaixonados pela mulher. Porém, nem sempre mandamos no coração meu filho e essa mulher se apaixonou perdidamente pelo único homem que não via beleza em seu sorriso e olhos da cor do céu. Desesperada ela fez de tudo para conquistar o cavalheiro, mas este escolheu renunciar qualquer tipo de paixão para o descontentamento da mulher.

Um tempo depois todo esse amor não correspondido acabou se transformando em ódio e rancor. Cansada de ser humilhada pelo homem que tinha o coração de pedra, a mulher tentou mata-lo com um punhal. Todos do vilarejo escutaram seus gritos de ódio e dizem que até hoje é possível escuta-los."

- Até hoje? - perguntou Ferdinando sorrindo.

- Até hoje! - confirmou Seu Benedito - A mulher morreu com tanto ódio que até hoje as pessoas conseguem ouvir seus gritos e dizem que os que se aproximam do local do assassinato acabam recebendo vários anos de azar.

- Tudo isso é besteira - Ferdinando disse se levantando - e pelo jeito, Chico não vai aparecer por aqui tão cedo. Diga a ele quando chegar, que eu estou o procurando urgentemente.

- Pode deixar patrãozinho - se despediu o velho - mande um abraço para seu pai.

Ferdinando acabou retornando para sua casa decepcionado. Avistou de longe a grande casa construída a base de tijolo e madeira. Sempre gostara de morar lá e pensar em se mudar causava uma sensação de tristeza no garoto.

Abriu a porta da casa e se deparou com o silêncio comum que existia a essa hora. Aos tropeços, Ferdinando subiu os degraus que levava até o seu quarto. Abriu a porta de madeira e ao olhar para sua cama, o seu corpo se estremeceu todo.

Sua babá, Tereza, tinha 50 anos e cuidava de Ferdinando desde criança. A mulher sempre falara da filha que morava com os avós. Ferdinando só havia visto a garota em duas ocasiões: em uma festa de aniversário e em uma novena de natal.

E agora ele via a menina pela terceira vez. Completamente nua em sua cama.

- Selma? - Ferdinando chamou seu nome - o que você está fazendo?

A garota de cabelos loiros não respondeu. O quarto só estava iluminado pela luz do luar e Ferdinando pode enxergar pela primeira vez seu pai sentado ao lado da janela.

- Eu vou dizer apenas uma vez - o Dr. Evandro disse com uma voz calma e rígida - tire suas roupas e deite-se com essa garota!

Ferdinando observou seu pai levantar e ligar uma lamparina . As chamas fizeram com que o quarto se iluminasse mais ainda e Ferdinando desejou ser cego ao ver o que estava jogado no chão de seu próprio quarto.

Francisco não tinha ido até a cidade. Francisco estava sendo torturado pelo seu pai.

- A única coisa que eu quero de você é um herdeiro - o pai disse com a voz calma - só por hoje! Selma vai ser a minha nora, eu só preciso disso! E depois você está livre para ser a aberração que quiser longe de mim.

- E se eu recusar? - perguntou Ferdinando que se arrependeu logo em seguida.

- Você jamais vai ver esse garoto com vida!

Ferdinando olhava para o corpo ensaguentado no chão. O amor da sua vida havia levado várias chicotadas nas costas, os dedos do seu pé haviam sido arrancados e por algum lugar que Ferdinando não sabia dizer qual, muito sangue estava vazando.

- Se é isso que o senhor deseja... - Ferdinando olhou nos olhos do pai e assentiu. Não iria deixar aquele velho idiota vencer.

Completamente desconfortável, o garoto tirou todas as suas roupas. Aproximou-se da garota e percebeu que ela estava mais assustada do que ele. Podia ter certeza que o pai havia ameaçado ela também. Aquilo fez Ferdinando criar um pouco de compaixão pela Selma e então ele a beijou.

Selma foi relaxando e puxou Ferdinando para debaixo dos cobertores. Dr. Evandro assistia toda a cena com a expressão neutra enquanto o filho procurava a fenda da garota.

- Eu... eu... eu não consigo pai! - Ferdinando desabou a chorar e se afastou da menina - eu não consigo.

Dr. Evandro perdeu a paciência. O murro que ele deu na cara do filho foi o bastante para estralar todos os dedos da sua mão.

- VOCÊ TIROU TUDO DE MIM! - gritou Dr. Evandro - SUA MÃE MORREU POR SUA CAUSA. VOCÊ NÃO ME DEU NADA! VOCÊ É UMA ABERRAÇÃO FRACA! UM VEADO NOJENTO! EU QUERO QUE VOCÊ MORRA!

E pela primeira vez na vida. Ferdinando tomou coragem.

Pular em cima de seu pai e derruba-lo na cama foi fácil. O difícil foi sufoca-lo até a morte com o travesseiro de penas enquanto Dr. Evandro gritava as mais terríveis palavras de ódio para o filho. Mesmo após a morte, o fazendeiro ainda expressava a ira pelo corpo inteiro.

Choro. Silêncio. Choro. Ferdinando já não sabia mais o que fazer.

- Fer... - escutou Francisco o chamando no chão - me... me ajuda...

Ferdinando agachou-se e beijou a boca de seu verdadeiro amor.

- O que ele fez com você? - perguntou Ferdinando desesperado.

- Ele... ele me disse para vir até aqui em casa - Francisco disse com algumas dificuldades - ele iria arranjar meu casamento com a Selma.

Aquilo fez o peito de Ferdinando ficar sem ar. Ele sempre pensou que Francisco o amava, mas pelo que tinha ouvido, aquilo não era nada de mais para o amigo. As lágrimas encheram os olhos de Ferdinando que, sem saber o que fazer, decidiu ajudar o amigo.

Lembrou-se de Selminha e percebeu que a menina de 18 anos não estava mais na cama. Passou os olhos por volta de seu quarto e quando encontrou a menina, já era tarde demais.

Selma acertou a lamparina na cabeça de Ferdinando fazendo ele cair ao lado de seu amado.

A visão de Ferdinando desfocou por alguns instantes e quando ele voltou a si mesmo, percebeu que as chamas da lamparina começaram a se espalhar pelo quarto. Procurou Selma mais uma vez e viu ela caminhando lentamente até a saída do quarto.

Olhou para a garota pela última vez e viu a chave de seu quarto na mão dela. Não demorou muito para entender que ela iria o trancar para dentro. As chamas já haviam tomado conta de metade do seu quarto e em menos de segundos, uma parede de fogo surgiu entre Ferdinando e Selma.

Encarou Selma pela última vez e viu que seus olhos estavam brancos e neutros.

Da mesma forma que o seu pai o olhava quando Ferdinando fazia algo errado.

A fumaça fez o garoto se perder no quarto. O calor o fez suar. O fogo fez sua pele arder. Por um instante Ferdinando pensou que estava queimando no inferno pelos seus pecados. Então, o último membro da família Celestino deu o seu último suspiro.

E aquilo fez ele sentir-se no paraíso.

...

[Joana]

- TIA ANA ROSA! - gritei desesperada - TIA ANA ROSA!

A porta do quarto dos meus tios abriu com uma pancada. O quarto do casal possuía apenas uma cama, um criado-mudo e um grande guarda-roupa. Na noite, as paredes brancas ajudavam a iluminar um pouco o quarto com a fraca luz que entrava da rua.

Minha tia Ana Rosa acordou confusa, mas aos poucos foi percebendo o desespero em minha voz e logo tratou de perguntar:

- O que está havendo Joana? O que aconteceu?

- Eu preciso da sua ajuda! - falei, puxando ela do quarto um pouco mais calma.

Por sorte meu tio Berto tinha um sono muito profundo ainda mais com a crise alcoólica que ele desenvolveu nesses últimos dias. Assim eu pude puxar a minha tia para uma conversa particular.

- Você está me assustando Joana! - ela falou irritada pegando um copo de água - desembucha logo menina!

Tentei respirar e me acalmar por um instante. Tudo tinha acontecido rápido demais. Eu já tinha conseguido muitas respostas e me sentia cada vez mais perto de encontrar meu primo Caio. Eu só precisava que minha tia me ajudasse com uma coisa...

- Eu sei onde Caio está! - falei sem rodeios.

Aquilo pareceu não surpreender a mulher de 39 anos que estava na minha frente. Com calma, ela apenas prendeu os seus cabelos castanhos atrás da cabeça e bebeu lentamente a água que estava em seu copo.

- E você avisou a polícia? - ela perguntou com certo medo em sua voz.

- Ainda não - respondi - não confio muito neles para falar a verdade.

- E como você vai fazer para ir encontra-lo? - Tia Ana Rosa ficava mais tensa a cada pergunta.

- Eu vou dar um jeito, eu só preciso de um único favor seu!

Tia Ana Rosa me olhou com um certo desdém. No fundo eu sempre soube que ela não me amava, apenas me aturava por amor ao seu marido. Seus olhos mostraram o mesmo desprezo de quando eu fiz 12 anos e minha primeira menstruação chegou. Eu me recordo de ter ficado desesperada, chorei por várias horas sem saber o que fazer. Senti vergonha de passar por aquilo, mas mais humilhante ainda foi quando eu tive que contar a tia Ana Rosa o que havia acontecido. Ela não queria me ajudar nem naquela época e muito menos agora.

- Não quero me meter em... - minha tia recuou um pouco.

- Se a Carla aparecer por aqui - fui mais rápida antes de ela poder negar - diga que eu fui embora hoje a noite, fale que eu não estava mais suportando tudo isso e voltei para a faculdade. Invente qualquer coisa, só não a deixe saber que eu ainda estou pelas redondezas.

- Não gosto de mentiras... - ela falou secamente - mas farei isso... É melhor você aparecer aqui com meu filho, caso contrário, eu mesmo irei te denunciar para a polícia.

- Muito obrigada tia! - abracei-a, ela relaxou e me apertou fortemente - eu prometo que vou acha-lo.

Sai de casa e vi que já se passavam da meia-noite. Caminhei até a esquina da rua 7 quando uma voz me chama á uns 100 metros. O garoto, de nome Silvinho, me aguardava no campo de futebol da Vila Celestino.

- Vamos? - ele falou com receio em sua voz - Temos que ser rápidos antes que a polícia comece a nos procurar.

Sem nem responder, caminhei em direção a grande mata que limitava o fim da Vila Celestino.

Caminhamos por vinte minutos em meio a grande floresta. Cada um carregava uma lanterna que Sílvio havia pegado em sua casa enquanto eu falava com minha tia. As árvores eram de grande diversidade e ela ficava cada vez mais densa enquanto nos aprofundávamos nela. Sílvio nos guiava por meio de uma trilha que ele conhecia. De acordo com ele, alguns garotos entravam nessa mata para aprontar os mais diferentes tipos de brincadeira.

- Eu só cheguei a vir até aqui! - Sílvio falou parando e olhando para os lados - Naquela direção fica uma pequena cachoeira onde a garotada gosta de se refrescar.

Olhei para o chão e vi que a trilha quase sumia a partir dali. Aquela área seria desconhecida para nós dois.

- Mas e a cabana? - perguntei impaciente.

- Um amigo meu disse que ela fica há uns 15 minutos daqui. Seguindo na direção oposta da estrada.

Lembrei-me de quando eu havia sido sequestrada pelo meu pai verdadeiro até a floresta. O caminho que eu tinha feito para fugir havia sido completamente diferente. Eu sai quebrando galhos e árvores e mal sabia da existência de uma trilha. Porém, lembro do meu pai falando que iria me levar até a cabana, não deveria ser tão longe assim.

- Você está ouvindo isso? - Sílvio me perguntou assustado.

Minha percepção sonora aumentou no mesmo instante. Sirenes. Do meio daquela mata fechada era possível escutar os carros de polícia fazendo o maior escândalo. Eles já deveriam ter encontrado os corpos mortos na casa de Dona Denise. A pequena Vila Celestino estava em pânico novamente.

- Vamos logo! - quis gritar, mas apenas sussurrei ao garoto.

Caminhos por cerca de meia hora completamente perdidos no meio da floresta. Comecei a ficar preocupada no risco em que estávamos nos colocando. A pequena lanterna em minha mão lançava um jato de luz amarelo que iluminava a extensa folhagem que cobria as nossas cabeças e escondia o céu nublado.

Senti um arrepio percorrer meu corpo quando o som fez várias aves acordarem de seu sono e voarem dos galhos das árvores.

Alguém estava atrás de nós.

- CORRA! - gritei a Silvio e saí cortando através dos galhos na maior velocidade que eu conseguia alcançar.

Eu já havia sentido aquela sensação antes, alguém estava nos observando e iria nos atacar o mais rápido possível. Corri sem direção e sem rumo no meio da escuridão da floresta. Escutei os passos apressados de Sílvio atrás dos meus e senti um alívio por ter mais alguém ali comigo.

Corremos juntos e caímos juntos em um grande desfiladeiro.

Tentei me levantar, mas estava atordoada de mais. Levantei meio preocupada sentindo o gosto de terra que entrou pela minha boca enquanto eu rolava barranco abaixo. Tateei o chão e achei a lanterna para poder me encontrar naquele lugar.

Mais uma vez a mesma sensação. Alguém estava atrás de mim e se aproximava cada vez mais perto. Virei a mão e acertei o peito do meu perseguidor com a base de metal da lanterna.

Sílvio soltou um gemido abafado de dor:

- O que você está fazendo?

Respirei aliviada enquanto batia a sujeira da minha cara.

- Foi um tombo feio - Sílvio falou preocupado - do que estávamos correndo?

- Tem algo aqui perto - falei em tom baixo - eu meio que senti.

- Agora você é um tipo de vidente? - Sílvio falou meio estressado e assustado.

Não muito longe de nós, fazendo os pelos do meu braço arrepiar, uma voz chamou a nossa atenção:

- O que estão procurando?!

Dirigi a lanterna em direção da voz rouca e feminina, mas não foi de muita utilidade já que a pessoa carregava uma lamparina em sua mão.

Ao longe eu vi a pequena cabana de madeira. Ela era minúscula e estava completamente cheia de musgos e tinha um aspecto podre. Enxerguei também o rosto da pequena senhora que segurava a lamparina e tentei não me apiedar dela. A mulher tinha uma aparência macabra, com uns 60 anos na aparência, seus cabelos grisalhos e bagunçados, sua pele grudada em seus frágeis ossos. Ela aparentava a cara da morte.

Tentei não me perguntar o que ela estava fazendo naquela cabana porque pelo jeito ela estava lá a muito tempo. Por isso optei pela opção mais rápida possível.

- Meu irmão! - gritei - Ele se chama Caio! Por acaso a senhora não o viu?

Silêncio. A pequena senhora nos fitava com um olhar neutro de quem está estudando as palavras antes de dize-las. Porém ela nem precisou encontra-las. Atrás de si, dentro da cabana, uma voz gritou:

- JOANA!

Reconheci a voz do meu irmão e sai correndo em direção a pequena estrutura de madeira. A velha senhora não tentou me impedir quando eu passei pela pequena porta e entrei cabana a dentro.

Lá dentro não havia nada.

- ONDE ELE ESTÁ?! - gritei o mais alto que eu conseguia. - ME DIZ ONDE ELE ESTÁ!

A mesma sensação de estar sendo perseguida ressurgiu em mim. Só que dessa vez era multiplicada por dez.

- Joana! - uma voz gritou - mãos para cima!

Ao meu redor pude observar seis lanternas apontadas para mim. Seis policias. A voz era de Carla.

"Ela colocou um rastreador em mim", pensei com vontade de socar a cara da minha amiga de infância.

Pela voz, pude perceber que os dois detetives, Siqueira e Rodrigues, também estavam lá. Junto com eles, mais três guardas apontavam armas em minha direção.

Porém eles não sabiam de Sílvio. E o garoto fez a melhor coisa que ele poderia ter feito. Correr.

- Peguem quem estiver fugindo! Vão atrás dele! - Detetive Siqueira gritou a ordem.

As luzes correram na direção do som de galhos quebrando e logo os outros policiais desapareceram.

- Quem esta aí com você? - Detetive Rodrigues perguntou.

A velha senhora não se deu o trabalho de responder, apenas soltou a lamparina no chão e sumiu na escuridão.

Pensei em tentar ir atrás dela, mas fui surpreendida pela presença de Carla ao meu lado, me imobilizando totalmente. Seus braços se entrelaçaram nos meus na tentativa de me algemar, mas por impulso eu consegui me libertar e dar alguns passos para trás.

- O que você está fazendo? - perguntei com agoniada - pensei que éramos amigas.

- Você é uma assassina! - ela apontou o dedo indicador em minha direção - Sabíamos desde o começo, você matou seu primo, seu pai e muitos outros moradores da Vila Celestino só porque desde criança você era maltratada por eles! A vila Celestino inteira tinha nojo de você e agora você quis se vingar!

- Do que diabos você está falando? - perguntei sem entender.

- Nos diga quem é o seu parceiro, o que correu pela floresta! - Detetive Rodrigues se intrometeu.

- E a senhora também! - Siqueira acrescentou - Quem é ela?

Eu não tinha paciência para aquela palhaçada toda, meu sangue pulsava de ódio.

- Você esse tempo todo pensou que eu era a sua amiga de verdade? - Carla falou sussurrando enquanto se aproximava de mim - Você sempre se fez de vítima Joana, mas eu sabia desde o começo que você era a culpada disso tudo!

- Carla, por favor - supliquei - confie em mim.

- Confiar em você? - Dessa vez ela falou gritando - Eu confiei em você boa parte da minha vida e não ganhei nada em troca! Você me enganou esse tempo todo e agora vai voltar para a cadeia. Você e seus cumplicies!

Algo estava errado. Aquela não era a Carla que eu conhecia. Só havia um motivo óbvio para ela estar fazendo aquilo tudo.

Carla estava tentando me defender.

- Prenda ela logo de uma vez - Detetive Siqueira deu a ordem.

Abracei Carla como eu geralmente fazia quando éramos pequenas. Um abraço quente e reconfortante da minha melhor amiga.

- Eles estão querendo te incriminar a qualquer custo - ela soprou em meu ouvido - esse caso não vai mais para frente e eles precisam incriminar alguém. Eles me obrigaram a colocar um rastreador em você... Você tem que fugir para o mais longe que puder, eu não vou conseguir proteger você...

- Do que você está falando? - perguntei desesperada.

- Eles querem te matar - ela falou com voz chorosa - Eles querem tacar a culpa em você, mas antes você tem que estar morta.

A situação passou rápido pela minha cabeça. Dois detetives armados queriam me matar o mais rápido possível, eles só não fizeram aquilo mais rápido porque a senhora estava de testemunho. Eu tinha certeza que depois que Carla me soltasse, uma bala de revolver seria alojada em meu crânio. Pensei em todas as alternativas de fuga, mas nada vinha a minha cabeça.

E então eu beijei Carla.

O beijo não durou mais que dez segundos. Carla foi pega de surpresa, mas não se deixou intimidar. Nossas línguas se entrelaçavam e naqueles dez segundos eu confirmei meu pensamento. Eu ainda não tinha certeza se aquela escolha tinha sido a melhor, mas ela era minha única chance real. Abri os olhos e me preparei para o combate, sabia que Carla não estava preparada ara aquilo, por isso eu tirei o revólver do seu coldre e me armei para o ataque.

Detetive Rodrigues estava com os olhos brancos e se aproximava a passos lentos de nós duas.

Destravei a arma rapidamente e mirei no Detetive Siqueira. Ele estava distraído olhando o que havia acontecido com seu parceiro.

Tão distraído que nem me viu disparando oito tiros contra ele.

A versão possuída do Detetive Rodrigues parecia não saber utilizar o revólver que estava em sua mão, mas o desejo de nos matar era o mesmo. Carla estava muito assustada para lidar com ele e por isso eu mesma tive que tomar frente da situação. Sem muita enrolação eu peguei a ama e dei um único tiro na cabeça dele para acabar de uma vez com aquela história.

- Você está bem? - me aproximei de Carla que estava atordoada.

- O que era aquilo? - ela perguntou.

- Eles queriam me matar, tive que me proteger... - falei me justificando - ah... você está falando dos olhos brancos?

Quando eu ia explicar tudo o que estava acontecendo, passos se aproximavam cada vez mais rápido.

- Precisamos ir! - falei - Os outros policias irão chegar a qualquer momento.

- Não! - ela respondeu criando firmeza pela primeira vez - você tem que ir sozinha, eu fico aqui e explico tudo o que aconteceu.

"Para onde eu fugiria?", pensei em quanto os passos chegavam cada vez mais perto.

- Menina Joana... - uma voz me chamou saindo da pequena cabana.

Olhei para traz e a senhora havia retornado. Dessa vez ela usava uma blusa de lã pelo frio que fazia lá fora. Sua voz era cansada, mas mostrava uma força que eu jamais havia visto. Sem mais delongas ela me encarou com seu rosto neutro e ordenou.

- Me siga...

...

[Murilo]

Em cima da varanda do meu quarto eu conseguia ver grande parte da rua 4. As crianças não brincavam mais de nada, nem de esconde-esconde, nem de pega-pega. O céu azulado até parecia mais estranho já que nenhuma pipa enfeitava a imensidão lá em cima.

Aquele não parecia mais um dia de morte.

O enterro de Leandro aconteceu as 5 e meia da tarde. A família estava devastada, em menos de uma semana eles perderam dois filhos, ambos assassinados e em ambos os casos o culpado continuava solto. Assim como a família, eu também nutria um desejo de justiça dentro de mim, mas como eu iria lutar contra tudo aquilo? Eu vi a Vila Celestino inteira querendo nos matar! Minha cabeça estava completamente pilhada e pela primeira vez na vida eu tive que tomar um calmante.

O remédio me fez lembrar do meu pai. O quanto ele era fraco. Dona Denise tinha razão: eu talvez fosse fraco igualzinho a ele. Não pude defender a pessoa que eu mais amava naquele fim de mundo. Igual ao meu pai que não suportou o peso nem da própria vida.

O velório do meu pai tinha sido a experiência mais horrível de toda a minha vida. Eu conseguia olhar para as pessoas em minha volta e perceber no olhar de todas elas, ninguém conseguia acreditar que meu pai fosse capaz de tirar a sua própria vida, ainda mais com um tiro de revólver na cabeça. Mal sabia eu que velórios se tornariam comuns na minha rotina.

E aquele era mais um dia de velório: Dona Denise havia sido encontrada morta dentro de sua casa. Assassinada.

- A gente mal conhecia a mulher - praguejei com minha mãe - porque você quer que eu vá?

- Eu também não conhecia seu amiguinho e fui até lá - Dona Léia gritou - Seria pedir de mais um pouco de respeito para você?

E foi assim que eu acabai correndo para o meu quarto e batendo a porta com a maior raiva de todas. Debrucei sobre a varanda e fiquei olhando para o céu tentando entender o que a vida estava fazendo comigo. Pensei em fazer igual ao meu pai, suicídio. Se eu me jogasse daquela varanda a minha morte era quase certa e tudo estaria resolvido.

Mas eu deveria lutar. Ou pelo menos tentar ajudar a entender o que estava acontecendo nessa maldita vila.

Sentei em frente ao meu computador e comecei a pesquisar sobre casos de possessão coletiva. Muitas reportagens eram confusas e aleatórias, poucas coisas me chamavam atenção, até que eu cheguei em um site com uma foto antiga de 1984. A foto mostrava dois homens acorrentados, semi-nus e com uma característica reconhecida por mim: olhos brancos e brilhantes.

O artigo tinha um trecho que me fez quase cair da cadeira.

"O ser humano possui dentro de si uma energia interna que cresce com ele. Algumas religiões chamam isso de alma, outras de espíritos... Quando morremos essa energia ainda continua a interferir no mundo de alguma forma. A ira é um dos estágios mais destruidores da alma e por tanto a energia interna do ser humano pode afetar negativamente a relação na terra.

Quando uma pessoa morre com raiva, essa é a energia deixada na terra e acaba se manifestando como uma espécie de maldição.

Maldição é uma forma de lembrarmos da ira de alguém.

Para jamais essa imagem ser esquecida."

Se aquilo fosse real, a vila Celestino estaria de alguma forma sendo afetada por uma maldição. Meu coração começou a pulsar mais rápido enquanto eu continuava a ler. As palavras passavam tão rápido que eu mal consegui criar sentido no que eu estava lendo.

"Existem muitas formas de se quebrar uma maldição. Religiosos tentam conversar com o espírito do causador da desgraça para que ele possa ser perdoado e fazer sua ira cessar. Outras pessoas expurgam o mal do lugar através de rituais de limpeza. O sacrífico também é uma forma de se anular uma maldição. O momento em que morremos nos diz muito mais do que o momento em que nascemos e isso está cheio de significados..."

- Viado! - meu irmão me arrancou da frente do computador - você não mexeu nas minhas coisas não né?

Danilo parecia preocupado, como se estivesse algo escondido naquele computador dele.

- Não vi porra nenhuma! - gritei - e tira essas mãos de mim!

A raiva que eu tive do meu irmão era tanta que se eu morresse naquela hora, eu tinha certeza que mil maldições iriam surgir. Descontei toda a ira através de um soco na cara dele. Escutei seu gemido e me preparei para o que seria uma briga feia.

- O que está acontecendo aqui? - minha mãe apareceu no quarto desesperada.

Foi eu virar em direção da minha mãe que meu irmão me pegou de surpresa. Seus socos eram descontrolados e acertavam todo o meu corpo. Minha mãe gritou para que nos afastássemos, mas a briga duraria um tempo bem maior.

- SUMAM DAQUI! - meu irmão gritou - EU NÃO QUERO VER A CARA DE VOCÊS POR UM SÉCULO!

Chorando, eu sai do quarto seguido pela minha mãe.

- Você pode me explicar o que está acontecendo nessa casa?

- EU ODEIO TODOS VOCÊS! -gritei comigo mesmo. - COMO VOCÊ PODE OLHAR PARA O LADO E FINGIR QUE NADA ESTÁ ACONTECENDO?

Silêncio. Minha mãe se assustou com meus gritos.

- Seu marido se matou. Seu filho foi quase assassinado. Estamos morando nessa rua faz menos de uma semana e mais de sete pessoas já foram assassinadas... E você continua agindo como se isso fosse normal?

Sofia, minha irmãzinha, acordou do seu cochilo a apareceu na cozinha com uma cara de sono e confusão.

- Vai lá para cima com o Danilo, Sofi! - minha mãe falou na sua voz normal.

Enquanto a pequena subia as escadas. Minha mãe me observava dos pés a cabeça.

- Você é igualzinho ao seu pai - ela respirou fundo - tanto na aparência, quanto nas atitudes. O mesmo modo de falar, a mesma postura, você é a cópia viva dele. Sempre cobrando de todos e de todas. Eu acho que eu nunca te contei essa história antes... Um dia seu pai brigou com um colega de trabalho, um motivo estúpido, creio eu. Ele chegou em casa irritado, nessa época eu estava grávida da Sofi. Foi uma noite longa e difícil. Seu pai não parava de reclamar da vida, de como as coisas eram difíceis, de como ele já não aguentava mais. E naquela noite eu só perguntei "Porque você está tão irritado?". Ele não sabia responder e aquilo o deixou mais irritado ainda. Naquela noite ele descontou a raiva em mim, me acertou com dois murros em baixo do queixo.

A voz de minha mãe parecia cada vez mais distante. Busquei me afastar dela enquanto ela continuava sua história.

- Eu tenho certeza que você se lembra do seu pai como um homem sério, trabalhador, honesto... Mas sempre que algo dava errado ele destruía tudo e descontava sua raiva na própria esposa. Ele nunca me amou. Aquilo ficou claro para mim mesma. Tudo era o maldito colega de trabalho dele. Nada mais era sobre a nossa família. E então eu pedi o divórcio, sabe o que eu ganhei com isso? Seu pai colocou uma faca em minha garganta e me ordenou a ser a esposinha dele para fingirmos ser uma família feliz.

Pensei em milhões de respostas para dar a minha mãe, mas nada passava pela minha cabeça. Eu jamais imaginaria que meu pai fosse capaz daquelas coisas. Respirei fundo e falei mantendo a conversa no tom baixo de voz.

- Eu não sou fraco igual ao meu pai.

- Não meu amor - minha mãe falou se aproximando - seu pai não era um homem fraco, ele era forte até demais. Infelizmente eu tive que acabar com aquela força dele, estourei os seus miolos para ele jamais fazer mal a qualquer pessoa de nossa família.

Ouvir aquilo me fez recuar o mais distante possível de minha mãe.

- Não fique com medo meu filho - sua voz vacilou e ela começou a chorar - eu só estou te contando isso, pois eu quero que você saiba que eu jamais vou deixar alguém nos ferir. Seu pai foi um péssimo homem, eu não quero que você acabe como ele.

"Minha mãe era uma assassina", isso era a única coisa que ecoava em minha mente. "Ela matou meu pai e fez parecer um suicídio". Tentei pensar que tudo aquilo era mentira, mas quanto mais eu negava mais na minha mente tudo parecia fazer sentido.

Eu não sei se foi por amor, por identificação ou seja lá o porque... eu apenas corri até a minha mãe e a abracei enquanto ela chorava em meus ombros. Seu choro era de desespero, pela primeira vez eu vi aquela mulher demonstrando fraqueza na minha frente.

- Eu... eu sinto muito - falei enquanto ela chorava baixinho.

De repente o choro de Dona Léia foi desaparecendo aos poucos. O silêncio foi instaurado mais uma vez naquela cozinha. Senti um frio na minha nuca, pois eu conhecia aquela sensação.

A maldição tinha sido invocada novamente.

Tentei alertar minha mãe, mas aquilo pareceu inútil. Dona Léia me empurrou com força contra a pia. Senti minhas costas estralarem quando choquei-me com o mármore. Pratos, copos e talheres que estava na escorredeira caíram no chão. Minha mãe se aproximou de mim a passos lentos, com olhos sem expressão alguma, e começou a me estrangular com as próprias mãos.

Queria gritar, mas o silêncio em que aquilo estava acontecendo era quase inquebrável. Minhas mãos seguravam nas de minha mãe até que eu resolvi lutar pela minha própria vida. "Isso não é ela,isso não é ela..." minha mente berrava para mim mesmo. Quase nem vi minhas mãos pegando uma faca de serra no chão e se preparando para atacar minha própria mãe.

Antes que eu pudesse fazer isso, algo atingiu a cabeça de Dona Léia.

- Levanta! - Sílvinho apareceu atrás dela me dando a mão - temos que fugir daqui.

Sem entender muita coisa. Olhei para o corpo de minha mãe e percebi que ela estava desmaiada no chão. Provavelmente não iria se lembrar de nada ao acordar.

- Você está louco - perguntei ao menino que eu tinha a maior antipatia daquela vila - O que você está fazendo?

- Salvando sua vida - ele falou pegando uma faca grande da gaveta - você tava transando ou beijando outro cara agora mesmo né? Cadê ele?

- Do que você está falando? - perguntei.

- Eu entendo o que aconteceu com você e com o Leandro - ele falou impaciente - aconteceu a mesma coisa comigo... Cadê o cara que você estava beijando, já mataram ele?

"Beijo... Relações homossexuais... isso despertava a maldição".

Mas eu não havia beijado ninguém. O espírito talvez estivesse com raiva de mim e queria me matar, mas eu não tinha feito nada para invoca-lo naquele dia.

O silêncio foi quebrado. Gritos vieram do andar de cima. Olhei para Sílvio e ambos corremos escadas a cima. A porta do meu quarto estava trancada, lá dentro eu escutava os gritos de desespero do meu irmão.

- DANILO! DANILO ABRA A PORTA! - gritei desesperado.

Sílvio me pôs de lado e começou a dar chutes na porta. O som das pancadas se misturavam com o som dos gritos do meu irmão. Quando finalmente a porta foi arrombada, o som parecia ter voltado ao normal. Procurei o meu irmão, mas não o encontrei em lugar algum. Passei pela porta do quarto e meus olhos procuraram em todas as direções aquele garoto.

A porta que levava a varanda estava escancarada. Imaginei o que havia acontecido, mas meus olhos queriam ter certeza daquilo tudo. Caminhei até a janela e olhei rapidamente para baixo. O corpo do meu irmão estava estendido no chão com uma expressão sem vida, em baixo de si, uma poça de sangue escorria por todas as direções.

- CUIDADO! - Sílvio gritou desesperado.

Senti um impacto me jogando contra o chão fazendo-me cair de boca no piso do quarto. Minha visão saiu do foco por um breve instante, mas quando consegui enxergar novamente, os pelos do meu corpo inteiro se arrepiaram de medo.

Minha pequena irmã Sophia, com seu rostinho de boneca e seus cachos loiros soltos na altura dos ombros parecia um anjinho. Mas seus olhos brancos como leite denunciavam o mau que existia dentro dela. Por um segundo eu pensei que ela me atacaria de novo e tentaria me tacar da varanda, igual fizera com meu irmão mais velho. Porém, ela apenas deu meia volta e saiu correndo rapidamente pelo corredor.

- Você está bem? – Sílvio perguntou me ajudando a se recuperar do susto.

- SOPHIA! – gritei desesperado pela minha irmã.

- Ela deve ter ido para a mata – o garoto falou enquanto eu saia pela porta atrás de minha irmã sem ao menos escuta-lo direito – ESCUTA! SE VOCÊ QUER ENCONTRAR SUA IRMÃ COM VIDA É MELHOR SE CONTROLAR.

Olhei para Sílvio e lembrei-me das suas brincadeiras infantis que ele fazia até semana passada. Eu me perguntei se era possível alguém mudar tão de repente de uma semana para outra.

Descontrolado, fui até a varanda novamente onde vi um pequeno vulto atravessando a rua de número 4. Tive quase certeza de que era o corpo possuído de Sophia. Meus olhos olharam para baixo onde vi mais uma vez o corpo do Danilo estirado no chão. A poça de sangue estava bem maior e agora eu tinha certeza que a essa altura ele não teria mais salvação.

- Porque? – perguntei a Sílvio tentando me acalmar – O que está acontecendo?

Sílvio olhou ao redor do quarto tentando responder a minha pergunta. Seus olhos foram até o computador e lá ele encontrou a resposta:

- Veja isso! – ele virou a tela do monitor.

A fraca luz da webcam atingiu meu rosto, do outro lado vi meu rosto sendo gravado. Foquei meus olhos no nome do site e li em letras grandes.

“CHAT GAY COM WEBCAM”.

Limpei o suor que escorria pela minha testa. Mais um segredo que a família escondia de mim. Meu irmão era um enrustido homofóbico. Por um instante tive pena dele, porém a preocupação com minha irmã me fez voltar ao mundo real.

- Como você sabia que isso ia acontecer? – perguntei a Sílvio.

Ele começou a vasculhar meu quarto procurando desde comida até os canivetes do meu irmão.

- Eu sabia que você tinha passado por isso também – ele continuou furtando nossas coisas – depois dos ataques ao Leandro e tal... Cheguei na hora certa para salvar sua vida engomadinho.

Tentei ignorar o fato de que ele estava agindo estranhamente, mas era notável que ele deveria ter passado por poucas e boas também.

- E agora? O que faremos?

Ele me olhou torto como se medisse o tamanho do meu caixão.

- Tem uma mulher da rua 7, seu nome é Joana – Sílvio falou sem paciência – ela também está procurando seu irmão desaparecido há meses...

- E o que eu tenho haver com isso?

Sílvio me olhou novamente, dessa vez ele até já via as flores do meu velório.

- Vocês procurarão seus irmãos... Juntos.

Comentários

Há 4 comentários.

Por Lextop em 2020-03-22 20:35:49
Este autor possui alguma rede social ?
Por fran em 2018-12-03 15:38:16
Saudades CesarNeto .....
Por ®red® em 2016-09-13 14:18:57
Aleluia!! tu voltou. amo as series e tava achando que foi a ultima postagem sua, ate fiquei triste. Maaaaas, VC ta aqui que bom. to aguardando o próximo. bjo
Por edward em 2016-09-09 16:15:49
Essa série tá me intrigando cada vez mais, minha mente tá muito confusaa, no entanto confesso que amoooo a série e aguardo o fim do mistério bjs