3. Um Sentido Ao Incompreensível
Parte da série Depois da Tempestade
Me peguei novamente preso em meu mundo - chamado banheiro masculino - onde o oxigênio era uma maldita lâmina de barbear que roubei escondido do meu cabeleireiro, a água era vermelha e densa, e tudo o que era necessário para sobreviver era medo e sorte.
Medo por que os valentes não entram nesse mundo, escolhem os medrosos para descontar suas raivas e decepções. E sorte, por que só os escolhidos podiam sair de lá, só os que sabiam superar seus medos, ou que no mínimo, sabia enfrentá-los, sem medo de perder.
Eu não me encaixava em nenhum deles. Não era a primeira vez que eu me rendia à gilete, e não seria a última que eu a usaria para me machucar.
Lágrimas grossas e em abundância dançavam pelo meu rosto, nascendo em meus olhos, percorrendo minha face e morrendo em meus lábios.
Eu não sei por que estava chorando, mas sei por que não estava: não era por causa das dores causadas pelo corte, e pela primeira vez, não era por causa de Jhon.
Talvez fosse por minha própria causa, talvez não.
Saí da cabine, e me olhei no grande espelho que cobria toda a parede. As mangas da blusa estavam arregaçadas, e haviam cortes por toda a extensão do braço, desde o cotovelo até os pulsos.
Lavei os braços, sentindo o nem tão desagradável ardor dos cortes.
Minhas pernas tremiam, e eu sabia que era por que eu havia me mutilado pela segunda vez no mesmo dia, coisa que até então nunca aconteceu antes.
Saí do banheiro com os braços cobertos, e segundos depois, o sinal tocou anunciando o intervalo.
Uma grande aglomeração de alunos se formou na porta do banheiro.
Havia uma grande variedade de alunos, porém todos eles com o mesmo estereótipo: os homens eram fortes e bonitos, com roupas de marcas e tênis de grife, as meninas eram elegantes. Usavam Vans e All star, com calças coladas, mini saias, e a maioria com camisa regata, exibindo os belos seios num decote em V.
De todos esses alunos, só haviam três que não tinham o mesmo comportamento: eu, Karina e Jhon.
E por falar em Jhon...
Olhei ao redor, varrendo o pátio com o olhar atrás de Jhon. Nada.
Decidi ir à sala dos professores. Ainda precisava falar com o meu pai. Ele me explicaria detalhes sobre essa tal demissão.
Para chegar à sala da coordenação era preciso cruzar todo o pátio, e isso significava enfrentar as pessoas.
Enquanto estava a caminho, me peguei lembrando, em relapsos, a pequena parte da discussão entre Stela e Jhon em que eu estava presente.
(...)
"Ele é um ótimo aluno se quer saber" disse Stela, como se isso fosse argumento para usar contra Jhon, que também tinha uma das maiores médias da sala, e não era privilégio de ser o "filho da patroa". Ele realmente era inteligente.
"EU sou seu filho, não ele" gritou Jhon, o que me deixou confuso na hora, mas agora compreendi a expressão de linguagem.
"É uma pena não é?" Disse Stela, paralisando tanto Jhon quanto a mim. Ela percebeu o erro que cometeu ao usar a frase e tentou se corrigir "O que quero dizer é que estou cansada de abrir mão de coisas importantes para mim, por que meu filho mimado faz tudo errado".
Jhon continuava imóvel, sem reação. Todos os três sabíamos exatamente o que ela realmente queria ter dito.
"Ele é um bom aluno Jhon, não posso perdê-lo por sua causa" disse Stela, com sua habitual voz serena e doce.
Jhon cerrou os pulsos, jogando no chão tudo o que havia na mesa dela. Tomamos um grande susto nesse momento, e Jhon me fuzilou com os olhos.
Seus olhos lacrimejavam, e pela cor avermelhada, eu supunha que era de ódio que ele iria chorar. Me assustei e corri, deixando-o sozinho com a diretora.
(...)
Cheguei na sala da coordenação, mas me dirigi à sala ao lado, que marcava com uma plaquinha de madeira o aviso: "Sala de professores. Somente agente autorizado."
Bati na porta, e esperei que Marta, a professora de Inglês abrisse a porta.
- Hey baby, how are you? - Disse ela.
"Hey amor, como você está?"
- I'm fine, tank you. - Respondi.
"Estou bem, obrigado"
- Desculpa interromper, mas posso falar com o meu pai? - Perguntei.
Ela sorriu e olhou para dentro, fazendo um gesto para papai. Segundos depois, papai estava lá fora.
- Tudo bem Thiago? - Perguntou.
Olhei para Marta, que entendeu o recado e entrou, fechando a porta.
- Pai... Por que não me contou que estava se demitindo? - Fui direto, sem tempo para conversa furada.
Papai não ficou surpreso, apenas conformado. Seu rosto mostrava uma expressão de quem já esperava que eu descobrisse.
- Eu ia contar...
- Quando? - o interrompi - Depois que eu recebesse a notificação que perdi a bolsa por que meu pai não é mais funcionário da escola?
- Eu falei com a Stela. Podia não parecer, mas eu sofria contigo. Por isso decidi sair. Não queria ver você sofrendo.
A declaração me deixou abalado, mas não foi só isso, houve algo além, diferente. Tinha alguma coisa errada. "Ele é um bom aluno Jhon, não posso perdê-lo por sua causa".
- Ah droga! - Pensei em voz alta, e deixei meu pai ali.
Entrei na sala ao lado sem bater.
Jhon estava sentado no canto da sala, sem expressão facial alguma, sem nenhum sentimento exposto.
- Não vou ficar na escola! - Falei, antes que Stela perguntasse o que eu estava fazendo ali.
Jhon me olhou confuso, e eu soube que pensava exatamente o mesmo que eu: "O que esse idiota pensa que está fazendo?" Soltei um sorriso involuntário para Jhon, e me voltei para Stela.
- Não vou deixar você cometer essa injustiça senhora diretora. Se você expulsar seu filho, pode assinar os papéis para a minha expulsão também.