Prólogo
“Vem João! Vai começar a chover!” – grita minha mãe para eu entrar, da porta de casa, enquanto eu estou correndo pelas poças de água formadas da chuva que havia parado hoje à tarde. É tão raro chover aqui, que quando acontece eu apenas quero ficar aqui, na rua de terra, me sujando e jogando futebol com os meninos. Agora está trovejando, a bola está indo de la pra cá na lama e o meu time está ganhando.
- João!
- espera aí, mãe!
- vem logo pra dentro menino!
Agora minha mãe está na frente de casa, me olhando com a expressão dura. Os primeiros pingos começam a cair, fazendo todos nós comemorarmos. A chuva caindo em meu corpo me faz ficar eufórico.
Olho pra trás e vejo minha mãe correndo em minha direção, então começo a correr dela. Meus amigos estão todos rindo da gente, e embora eu saiba que eu estou encrencado, eu estou feliz. Feliz pela chuva, feliz pelo fim temporário da seca e do calor insuportável. Agora eu estou fazendo a volta na rua e correndo em direção de casa. Entro com meus pés sujos de lama e faço um rastro de sujeira até o banheiro, fazendo minha mãe me xingar por uns 10 minutos, sem parar.
- da próxima vez eu vou te deixar do lado de fora! – grita ela enquanto eu ligo a torneira e me limpo como posso, já que a água ainda não é suficiente para tomar banho no chuveiro. Escuto o barulho das bacias de metal na cozinha, logo presumo que minha mãe está recolhendo todas as vasilhas que pode pra captar a água da chuva. O caminhão pipa vem uma vez na semana, mas nossa alegria não dura nem três dias. É pouca água pra tantas coisas a fazer. Saio do banheiro e vejo minha mãe na pia, preparando uma massa de pão. Ela ainda me olha torto por mais cedo, mas agora não fala nada. Vou até a geladeira e pego uma banana, pra aliviar a fome enquanto o jantar não fica pronto. Logo meu pai cruza pela porta, fazendo minha mãe abrir um sorriso largo.
- como foi no trabalho? – diz ela após receber um beijo breve de meu pai.
- foi bom, mas a obra ainda tá lenta. Não estamos fazendo muita coisa, ainda mais agora com essa chuva.
- deixa chover, Benedito. Chuva é bom.
- eu falei com o Patricio. Tá tudo certo pra mês que vem.
- eu não sei se isso ainda é uma boa ideia. – minha mãe altera sua feição, aparentando estar tensa.
- Suzana, isso é pro bem de nós três. Eu quero dar um futuro bom pro João. Lembra do Pascoal? Ele tá lá nos Estados Unidos há três anos, ganhando mais que a gente, trabalhando pouco.
- mas ele foi diferente.
- a única diferença é que a gente não tem o bendito visto, Suzana. Mas muita gente vive assim lá. Aqui não dá mais pra viver, você sabe disso. Não temos condições nenhuma de viver com dignidade aqui. Lá pelo menos temos uma chance.
Minha mãe o olha por alguns instantes, o olhar indecifrável. Eu escuto eles falando dessa tal viagem faz tempo. Eu não sei o que vai acontecer, mas só sei que vamos embora pra longe. Eu também não sei se isso é uma boa ideia, mas meu pai sempre teve a cabeça boa, ele não colocaria a gente em confusão.
Enquanto minha mãe termina de fazer o pão e começa a preparar o jantar, eu começo a fazer meu dever de casa.
Logo o jantar fica pronto, a gente se reúne pra comer e então eu vou para o meu quarto, olhando para o céu pelas frestas da parede de madeira, agora sem estrelas devido à chuva que já cessou. Não sei bem como que vai ser quando a gente se mudar, mas espero que dê tudo certo.
A semana passa normalmente, e a medida que apenas nossas roupas são arrumadas em sacolas de viagem e objetos como álbuns de fotos e pertences importantes são embalados com cuidado em uma única caixa, vejo que estamos levando apenas o estritamente necessário. Praticamente tudo o que é nosso irá ficar aqui. Levaremos muito pouco. A única coisa minha que eu lembro de ter pego logo foi o meu livro do pequeno príncipe, algo valioso demais que eu ganhei dos meus pais há alguns natais. Está quase tudo pronto para irmos embora e eu acho que ainda não me dei conta disso de verdade. É uma mudança tão drástica, indo buscar uma jogada de sorte em um lugar totalmente diferente. Pode tudo dar muito certo ou muito errado, e eu não sei quais são as possibilidades para cada um dos casos.
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- Joao, acorda. Vai se trocar. – a voz serena de minha mãe faz eu abrir os olhos e me virar na cama, me espreguiçando e sentando na beira da cama, ainda sonolento. Observo todas as nossas coisas prontas perto da porta, então eu me dou conta de que chegou a hora. Rapidamente eu lavo meu rosto, troco de roupa e como um pão com manteiga para forrar o estômago, pois uma das únicas coisas que eu tenho certeza é que essa viagem será longa.
Seguimos até o ponto no centro da cidade, em uma rua de chão batido, formando poças de lama por causa da chuva da noite anterior, onde o ônibus já está estacionado, com dois homens se encarregando das bagagens das pessoas. Eu fico parado ao lado da minha mãe enquanto meu pai conversa com um dos homens e lhe alcança nossas coisas. Não demora muito até que todos começam a subir no ônibus, tomando seus lugares e indo rumo à rodovia.
Estou sentado olhando pela janela para a paisagem predominantemente verde da rodovia, que se ilumina a medida que o sol nasce no horizonte. O ranger de algo que eu não sei o que é, provavelmente pelo fato do ônibus não ser muito conservado, faz eu ficar preocupado. Minha mãe está dormindo ao meu lado, enquanto meu pai está sentado sozinho do outro lado do corredor. Puxo meu livro do pequeno príncipe da minha mochila, encostada no chão, bem na minha frente. Essa é a minha única distração quando a paisagem metamórfica passa diante dos meus olhos, me fazendo perder a noção de tempo e espaço.
“Se alguém ama uma flor da qual só exista um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para fazê-lo feliz quando as comtempla. ele pensa "Minha flor está lá, em algum lugar..." Mas se o carneiro come a flor, é, para ele, como se todas as estrelas se repentinamente se apagassem! E isto não tem importância?”
Não sei ao certo quanto tempo se passa, mas eu vi o dia nascer e se por aí menos três ou quatro vezes pela janela, e depois de tanto parar em postos à beira da estrada, finalmente parece que chegamos a um destino certo. A noite está estrelada e a lua minguante segue tímida lá em cima, sendo uma das únicas coisas a nos guiar de fora do ônibus até a beira da água, onde uma balsa nos espera para o que eu acho ser mais um pouco do longo trajeto até nosso destino. Vejo um dos homens que vem nos guiando desde o início conversando com outro homem na entrada da embarcação e lhe alcançando um pacote pardo pequeno. Os olhares dos meus pais se cruzam e eu pesco no ar que o que estamos fazendo não está certo. Estamos fazendo uma travessia ilegal por água? Bem, por ser de noite, já não é algo muito comum. O medo começa a surgir em meu estômago, me fazendo envolver minhas mãos forte ao redor do meu corpo. Lentamente começamos a subir a bordo e nos acomodar em um canto. O vento vindo da água e frio, e eu me aninho em minha mãe, segurando forte o cobertor ao meu redor e fazendo o colo dela de travesseiro. Pouco antes de pegar no sono, fico observando ao redor. Todos estão tão quietos, tão distantes. Todas essas pessoas buscando algo incerto, querendo algo melhor. O barulho da água adiante quase consegue cobrir o ruído das mentes barulhentas de todos nós. Mentes barulhentas e ansiosas para que tudo isso acabe bem. Sinto meus olhos pesarem e sinto que finalmente posso pegar no sono, pois estranhamente me sinto seguro, mesmo com todas as incertezas.
Após mais uma meia dúzia de horas, chegamos em terra firme novamente. De volta em outro ônibus, fazemos outro longo caminho. Parece que nunca chegamos a algum lugar certo, isso me deixa angustiado. Será que meus pais têm certeza do que estão fazendo? Eu espero que sim.
Sinto uma mão me sacudindo, me tirando de um sono pesado. É meu pai, me olhando sorridente enquanto minha mãe está de pé pegando nossas coisas.
- chegamos?
- chegamos. Mas ainda não estamos lá. Falta pouco. – ele brinca com seu polegar e seu indicador fechados em meu nariz.
Depois de mais 4 dias na estrada, finalmente estamos em nosso destino. Bem, ou quase isso. As pessoas com faces cansadas começam a se levantar de seus bancos e pegar suas bagagens nos compartimentos precários acima das poltronas e seguir para a porta de saída. Sigo meus pais logo atrás, ficando como um dos últimos a sair, e então vejo um homem de estatura baixa, bigode acentuado e com um sotaque espanhol um tango engraçado conversando com todos que se põem em volta dele, dando orientações a outro homem que estava junto no ônibus, que por sua vez traduz e explica em nossa língua para o restante das pessoas. De repente, eu sinto medo. Um medo muito forte, fazendo eu apertar forte a mão da minha mãe, e mesmo eu já achando que 10 anos já não seja mais uma idade apropriada para ficar tendo atitudes mimadas, eu apenas sinto que não consigo evitar isso agora.
- tá tudo bem? – minha mãe me olha preocupada, seus olhos grandes demais para seu rosto pardo me fitam preocupados, enquanto eu apenas concordo com a cabeça em sinal de positivo.
O clima árido, seco e extremadamente quente já faz gotas de suor pingarem em meu rosto, o que me causa estranheza, já que eu sou acostumado com clima assim, mas parece que aqui é um pouco pior.
Pegamos outro ônibus, não tão grande e ainda mais precário do que o outro, e seguimos mais um tempo por uma paisagem desértica, sem parecer que teria um destino em si, pois tudo o que se podia ver pela frente e pelos lados era terra seca, algumas gramas esparramadas aleatoriamente, o vapor do calor no horizonte e o céu extremamente azul acima de nós. Ao mesmo tempo em que era tão bonito, era preocupante. É pra cá que vamos vir? Não me parece com o lugar que meu pai falava em casa.
O ônibus começa a diminuir de velocidade quando se aproxima de um prédio velho avulso na estrada deserta. Todos voltam a descer e se juntam perto do homem de sotaque engraçado e do tradutor, que nos fala para nos separarmos em pequenos grupos. Feito isso, vamos até o prédio e pegamos uma outra mochila com suprimentos, como água e bolachas de água e sal para a viagem. Seguimos o resto do caminho a pé por dentro do deserto rumo ao que me parecer ser um completo nada. Quanto mais andamos, mais parece que estamos indo a lugar nenhum. Mas a confiança dos guias nos faz ficar esperançosos. Mas não posso deixar de me perguntas quantas travessias iguais a essa foram feitas, e quantas delas deram certo. O suor e o cansaço já é visível no rosto de todos, mas sei que não estamos nem perto de chegar na fronteira. Vejo uma cobra passando mais à frente, rastejando traiçoeira perto de uma vegetação seca, fazendo eu engolir em seco. O sol torna tudo tão mais cansativo, eu não paro de tomar água, mesmo sabendo que não temos muita.
Andamos pelo que me parecem horas, até que os guias da travessia começam a falar que estamos nos aproximando da fronteira. Vejo vários sorriso se estampando nos rostos das pessoas. Estamos tão perto.
Então, mais que de repente, o ar de esperança e de desejo pelo novo se transforma em tensão palpável quando eu vejo a aflição estampada no rosto de todos. Sigo o olhar de todos e vejo um grupo de pessoas vindo em nossa direção, e tudo o que eu penso é que estamos em sério perigo. O plano deu errado? Quem são?
- é a polícia! Corram! – um dos homens responsáveis pela nossa travessia parece ter perdido o controle da situação. Minha mãe me pega pelo braço e então nós corremos. Corremos pela areia quente do deserto, enquanto eu sinto minha respiração ficar descontrolada e uma vontade imensa de chorar me atenta dentro do peito. Vamos morrer? Não, não podemos! Estamos tão perto!
- Joao, corre mais rápido, meu filho! – minha mãe está suando e com a expressão ainda mais assustada. Foram tão poucas as vezes em que eu vi ela assim. Isso só me faz ficar com ainda mais medo do que pode acontecer em seguida.
- pra onde estamos indo?
- não sei! Mas não podemos parar de correr!
- e o pai? – olho para trás e vejo que nós perdemos dele no meio da poeira do deserto.
- ele está logo atrás da gente, filho. – vejo que nessa parte, minha mãe está chorando. O que aconteceu com ele? Por que ele não está com a gente?
- pai? – minha voz sai fraca, falha, angustiada. O que está acontecendo?
Mais adiante, outro grupo de três homens nos cerca. Minha mãe freia seus passos bruscamente, fazendo eu perder o equilíbrio e cair de joelhos no chão quente. Seu rosto mostrava que era nossa rendição. O fim da linha, talvez.
- Joao, quando eu disser, corre o mais rápido que você puder para o outro lado, tá legal? – ela me fala baixinho, sem nem olhar para mim para não levantar suspeitas.
- mas e você?
- faz o que eu to mandando, eu vou logo atrás de você.
- eu não quero ir sem você.
- confia em mim?
Eu hesito em falar. Eu quero confiar, mas eu não sei se vamos conseguir. Por fim, apenas concordo com a cabeça, engolindo em seco.
- eu te amo, João.
- eu também, mãe.
- corre!
Quando ela fala isso e larga minha mão, eu simplesmente não consigo mover meus pes do lugar. Mas a necessidade de sobrevivência fala mais alto e eu corro, como ela me pediu. Corro o mais rápido que posso, sem olhar pra trás. E espero, com todas as minhas forças, que ela esteja logo atrás de mim, correndo tão rápido como eu, e que a gente encontre meu pai logo adiante. Quando tudo parece estar quieto o suficiente, eu olho para trás, mas não vejo ninguém. Meus passos vão diminuindo até eu parar por completo e meus olhos começam a percorrer em volta, procurando alguém. Mas eu estou sozinho. O choro sobe pela minha garganta, até que eu caio por terra e desabo em lágrimas.
- mãe? Pai? Alguém!? – eu grito com todas as forças, em vão.
Pela primeira vez, eu me sinto totalmente sozinho e sem rumo, e a sensação é a pior que eu já senti na vida, como se eu estivesse sem meu chão, como se eu não sentisse mais nada, em uma espécie de anestesia mortal que me tirou todos os sentidos e que me deixou na beira de um completo nada. O pior é que eu nem sei mais para onde correr, para quem correr. Eu estou totalmente sem rumo, e sozinho.