18. Hora de voltar, menino Arthur

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série Proibido

Parece que haviam se passado anos desde que Gustavo deixou escapar aquela frase, quase entre dentes, mas eu sei que não fazem nem trinta segundos que estávamos ouvindo apenas o motor do carro acima do silêncio da noite. Eu tento pensar em algo a dizer, em algo inteligente a dizer, mas tudo o que eu sinto é meu estômago se revirar e os primeiros sinais do meu porre surgirem de dentro da minha garganta, passando pela minha boca e saindo para o tapete do carro.

- ah droga. – eu falo, antes de abaixar minha cabeça e vomitar em cima dos meus pés. A vergonha parece criar vida própria e me dar dois tapas na cara, enquanto Gustavo não diz nada e não faz nada a não ser dirigir mais devagar e me olhar preocupado. Quando meu fígado parece ter pena de mim e me dar uma trégua, eu sinto meu estômago e toda a minha barriga doer.

- você quer um lenço? – Gustavo pergunta, o tom calmo e cauteloso, mas sem conseguir esconder o riso que está se afrouxando por trás de sua tentativa de seriedade.

- não, obrigado. – eu disparo, a cara de poucos amigos, enquanto limpo a boca com a manga da minha camiseta. – e desculpa sujar o tapete caro do seu carro caro. Eu pago a lavagem.

- então você vai começar...

- não, não vou. Mas eu ainda estou me perguntando como você sabia onde eu estava.

- eu te segui. – ele dá de ombros, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.

- me seguiu. – repito, tentando imaginar o motivo pra ele ter feito isso. Porém, sem sorte. Quando minha expressão lhe dá um sinal de que eu não entendia nada, ele decide explicar:

- é, eu sinto que preciso estar de olho em você, já que se deixa levar por pessoas tão visivelmente traiçoeiras.

- o Henrique não é traiçoeiro. Ele só bebeu um pouco mais e...

- e pensou que poderia te agarrar a força? Quanta ingenuidade, Arthur.

- eu não sou ingênuo, Gustavo. Na verdade, eu sei muito bem me cuidar sozinho. Não preciso que ninguém me siga ou me leve pra casa. Até mesmo porque você não é a figura perfeita de um príncipe a cavalo.

- um príncipe também não fica se embebedando ou vomitando por aí. – ele responde rápido o bastante para me pegar de surpresa e então me olha, deixando eu ver o quanto ele está se divertindo.

- tá bom agora chega, me deixa sair do carro.

- o que?

- para o carro. Eu vou embora de taxi.

- taxi? Que taxi Arthur? Já é tarde, estamos longe de qualquer ponto de taxi.

- não tem problema, eu me viro.

- para de ser criança.

- Gustavo, para a droga do carro!

Ele continua a olhar pra frente, como se o que eu falava não tivesse a menor importância, então eu sinto um acesso de fúria fazer meu corpo todo queimar, sentindo raiva por tudo o que ele estava me fazendo sentir desde que colocou os pés na mercearia ontem, então eu tento abrir a porta do carro e vejo-o tentar me impedir, colocando seu braço no meu e me impedindo de tentar sair enquanto o carro estava em movimento, então sinto um solavanco e o carro diminui bruscamente até parar.

- você tá maluco!? Que droga! – Gustavo grita, me olhando com raiva. – você quer ir embora sem mim? Então vai. – seus olhos estão quase saindo de suas órbitas, me mostrando o quão irritado eu o deixei.

Eu o olho surpreso e não vejo nenhum resquício de brincadeira em sua frase, então me limito a apenas abrir a porta do carro e sair para a noite, pisar nos cascalhos do acostamento e bater a porta com força, sentindo meu corpo praticamente tremer de raiva. O que esse cretino pensa que é, pra vir até aqui atrás de mim e me tirar ainda mais do sério? Por que ele não volta pra São Paulo de uma vez? Ou melhor, por que ele não ficou lá, ao invés de se dar ao trabalho de vir aqui pra merda nenhuma?

Eu caminho e o vejo chegar até meu lado, a janela do carona aberta e seus olhos divertidos com toda a situação.

- o que você tá fazendo? – eu o olho, fazendo uma careta de desaprovação.

- nada, apenas dirigindo. – ele sorri, então eu apresso o passo, vendo-o diminuir ainda mais a velocidade e ficar pra trás, quase parando. Ele está achando isso engraçado? Eu sou algum tipo de piada pra ele? Pois bem, a sorte dele é que eu não estou muito bem nem para me abaixar e procurar alguma pedra grande o bastante pra estragar seu para-brisas, pois se eu fizer algum movimento brusco eu provavelmente irei abraçar o chão, então decido apenas bufar e andar até algum ponto de taxi perto.

Mas esse perto acaba se tornando cada vez mais longe e eu começo a ficar cansado, mesmo que não tenha andado nem duas quadras. Gustavo ainda está andando a 1km/h áreas de mim, mas agora eu escuto o carro acelerar e logo ele está do meu lado novamente.

- seu cansaço já superou seu orgulho?

- ainda não. – eu rosno, impaciente. Cretino, sarcástico, obsessivo... Qual outro adjetivo vou aderir à ele até o final dessa noite?

- pelos meus cálculos, o caminho até a sua casa e longo e eu não acho que tenha um ponto de taxi perto o suficiente. Então se você quiser aceitar minha humilde carona...

Eu o olho e sinto que eu não tenho outra alternativa. Paro de andar e fecho os olhos com força, tentando desesperadamente não entrar naquele carro e o estapear inteiro, já que pelo visto sua carona é meu único jeito de ir para casa. Ouço-o parar e abro os olhos novamente, então caminho mais dois passos até a porta e entro, com o meu orgulho amassado e engolido a seco.

- você...

- nem uma palavra, Gustavo, ou eu furo os pneus do seu carro e te deixo só de cueca no meio da rua. Entendeu?

- você quem manda. – ele levanta as mãos de leve, fingindo rendição.

Olho pra fora e então torço para que o caminho de casa seja o mais curto o possível.

_

Assim que o Audi estaciona na frente de casa, sinto um alívio enorme. Eu o olho e tiro o cinto de segurança, o qual eu fui obrigado a colocar na hora que entrei novamente no carro, então me atrevo a encara-lo, como forma de despedida.

- são e salvo. – ele brinca, voltando ao seu antigo e familiar senso de humor.

- é, parece que sim. – soo irônico, enquanto abro a porta do carro, mas sentindo que parte de mim não me deixa sair.

- bom, de nada.

- obrigado. – eu paro e quase sorrio para ele, mas me contenho e apenas o olho com gratidão.

- se cuida, Arthur.

- pode deixar. Você também.

Me ponho de pé na calçada e fecho a porta do carona, me viro e ando até o portão. Antes de sacar a chave do meu bolso, me arrisco a olhar pra trás e então o vejo me encarando, o rosto indecifrável, porém nítido, mesmo a uma distância razoável e com as luzes de dentro do carro apagadas. Me viro novamente e encaro as grades brancas do portão, antes de olhar pra baixo e tatear pelo chaveiro. Pego a chave maior e giro o miolo do portão, enquanto ouço o motor do carro ligar e Gustavo ir embora.

Assim que entro na sala, me encosto na porta e fico parado por alguns segundos fitando o vazio e pensando no que aconteceu hoje.

"Henrique é um cretino que eu pensava ser alguém especial, ainda mais por nossa amizade de longa data. Gustavo é alguém especial que parecia ser cretino até ontem, mas que agora parece estar sendo alguém especial novamente. " – eu sacudo a cabeça, sorrindo por estar tendo pensamentos sem nexo típicos de alguém que bebeu além do que devia. Decido enfim simplesmente ir pra minha cama e deixar pra pensar nisso de manhã; já que vou ter que aturar uma dor de cabeça por causa da ressaca, uma dor de cabeça por causa dos meus problemas não vai ser assim tão ruim.

__

Assim que eu abro meus olhos, sinto minha cabeça dar seu primeiro latejo. Ponho minha mão instintivamente e faço uma careta, então os pensamentos da noite anterior se acendem na minha mente. Me ajeito na cama de modo que eu fique encostado na cabeceira, então fico alguns segundos parado, olhando pro nada e avaliando tudo. Henrique, Gustavo, esse escape pra Presidente Prudente... Eu só queria me afastar de tudo o que pudesse me trazer dor de cabeça e cá estou, acordando depois de uma das noites mais estranhas da minha vida. Volto para a realidade e pego meu celular no criado mudo, o relógio marca 9:29. Há três chamadas não atendidas de Henrique, então eu me pergunto se ele não está com vergonha o suficiente para nem tentar falar comigo, depois de fazer o que ele fez. Por outro lado, a pessoa que eu queria que tivesse tentado me ligar não o fez; mesmo sabendo que Gustavo não tentaria uma aproximação, eu torcia para que houvesse algum sinal dele. Mas do jeito que eu o conheço, ainda mais depois de dizer aquela frase antes de eu gorfar em seu carro, seu orgulho não o deixaria me ligar.

"Deixe estar, Arthur." – eu penso, tentando simplificar as coisas para eu não ter mais motivos para chateações.

A claridade que entra pela janela parece fazer meus olhos e minha cabeça doerem ainda mais por causa da ressaca, então decido ir até o banheiro tirar um pouco essa cara de bêbado e esse gosto de vomito misturado com álcool da minha boca.

Quando chego em frente ao espelho, me assusto com meu cabelo bagunçado e com a minha cara amassada. Fazia tempo que eu não acordava tão desengonçado desse jeito, o que me faz quase achar graça da minha cômica decadência.

O gosto da pasta passando nos meus dentes alivia instantaneamente a agonia que eu sentira quando acordei, me dando um hálito um pouco melhor de se sentir. Depois, trato de entrar debaixo da água quente e acolhedora, perdendo a noção do tempo enquanto sinto minha pele e meu cabelo se molharem.

Depois de vestido, decido andar um pouco pelo bairro. Aos feriados, a mercearia fica aberta pela parte da manhã, então meus pais tinham muito o que fazer agora. Eu, por estar com um pouco de vergonha das minhas atitudes ultimamente, acabo ficando um pouco sem jeito de ir até lá e dar bom dia pra eles, sendo que eu acabei chegando em casa muito tarde e cambaleando pelo corredor. Por sorte, eu fui um bêbado moderadamente barulhento e logo me deitei na cama, sem ter derrubado ou quebrado nada no meio do caminho.

O bairro está calmo e quase sem pessoas nas ruas. Algumas pessoas atravessam até a outra calçada com sacolas, saindo da mercearia. Ando com as mãos nos bolsos em direção à pracinha da outra rua, cumprimentando alguns vizinhos no meio do caminho.

Chegando lá, fico feliz por não ter nenhuma criança aproveitando sua manhã no meu lugar de refúgio. Me sento em um dos balanços e fico olhando meus pés brincarem com os cascalhos, sentindo o vento mover levemente os outros balanços, provocando um barulho nas correntes. Ouço alguns passos na grama e olho adiante, então sinto minha cara se fechar automaticamente.

- ei.

Não respondo. Será que se eu sair daqui agora, será muito rude? Porque se a resposta for sim, eu o farei agora mesmo.

- eu tentei te ligar, mas... – ele se interrompe, me analisando, o olhar de arrependimento quase convencível. – eu sei que eu fui um idiota ontem, Arthur, mas eu já estava há dias querendo te dizer que eu estava afim de você, só que eu não tinha coragem...

- você não precisava dizer, Henrique. Isso estava um tanto obvio. Mas eu te disse o que havia acontecido entre eu e Gustavo e que eu não queria nada com ninguém.

- é eu sei, eu... Me desculpa, eu fui um idiota, eu estava bêbado e acabei fazendo besteira. – ele diz com calma, logo depois de sentar no balanço ao lado do meu.

- eu também estava bêbado Henrique, mas sabia exatamente o que estava acontecendo lá. Bebemos a mesma quantidade de álcool e eu sei que você não é fraco pra bebida, então eu não acho que você possa culpar seu porre.

Um silêncio se instala entre nós, então eu apenas fico olhando pra frente, encarando o escorregador vazio e com a tinta descascada, tentando diminuir um pouco minha raiva por ele.

- eu sinto muito por ter agido daquele jeito. Não queria estragar nossa amizade.

- tudo bem, Henrique. Eu não vou deixar de considerar a nossa amizade por causa do que aconteceu. Mas eu acho melhor a gente parar de sair e de se ver.

Olho para ele e vejo-o apenas concordar com a cabeça, a cabeça pra frente, sem nenhum contato visual comigo. Engulo em seco ao ver no que toda essa situação acabou virando e sinto por ver nossa amizade ser enfraquecida por uma atitude estúpida.

- a gente pode tentar começar do zero depois, fingir que isso não aconteceu.

Ele arrisca uma olhada e lá está aqueles olhos esperançosos e arrependidos novamente.

- eu vou voltar pra São Paulo ainda essa semana.

- vai? – ele pergunta rápido, o tom decepcionado.

- vou. Acho que Prudente não foi uma ideia tão boa assim.

- quer dizer que vir pra cá não valeu a pena?

- não, claro que valeu. Eu gostei de rever meus pais, rever você, mas meu lugar não é mais aqui.

Ele me olha, então é possível ver ele me fitando com um quase sorriso nos lábios, através da minha visão periférica.

- nunca foi, menino Arthur. Seu destino era voar pra longe, eu sabia mesmo quando nem tínhamos chegado na metade do ensino médio.

- é, pois é. – eu respondo, no modo automático. Na verdade, é engraçado pensar que meu plano de me afastar e organizar a bagunça que estava na minha vida acabou falhando desastrosamente. Por isso, acho que não há mais motivos para eu continuar em Prudente.

- bom, eu acho que eu vou indo nessa então. Meus pais te mandaram um abraço e pediram desculpas por não estarem em casa ontem. Eu até ia tentar te convencer a te levar lá almoçar, mas eu digo pra eles que talvez numa próxima.

- é, numa próxima. – eu sorrio, tentando ser um pouco menos ríspido, mas a situação em si não é das melhores. – manda um abraço pra eles.

Ele apenas consente e gira em seus calcanhares, andando lentamente até a calçada. Eu o observo e me sinto um pouco mal por estarmos nessa situação, mas acho que o melhor agora é nos afastarmos e deixar que numa próxima vez que eu volte pra Prudente, possamos retomar nossa amizade sem nenhum ressentimento. Pelo menos, é isso que eu espero.

Meu celular vibra no meu bolso e eu penso que talvez seja minha mãe para perguntar onde eu estou, ou quem sabe Gustavo, mesmo que a segunda opção seja um pouco improvável. Porém, para minha surpresa, é o número de Samuel que aparece na tela.

- quem é vivo sempre aparece. – eu caçoo, um pouco ressentido.

- ah para de fazer a dramática que você também nem me procurou! Prudente tá assim tão boa que esqueceu de tudo aqui em Sampa?

- bom, na verdade não muito. Mas a que eu devo a honra da sua ligação?

- pra te dar uma notícia.

- que noticia? Boa ou ruim?  – por favor, que não seja ruim.

- depende. Tem uma boa e uma ruim.

- ah Deus, me fala a ruim primeiro. – eu solto, nervoso.

- bom, a notícia ruim é que você não vai ver a minha beleza estonteante o dia todo em casa a partir de semana que vem. Porque, rufem os tambores – ouço o barulho de batidas no outro lado da linha, provavelmente ele batendo suas mãos na mesa ou algo parecido – a notícia boa é que eu consegui a vaga no Hospital das Clinicas.

- você tá brincando?! Samuel, que notícia maravilhosa! – eu quase grito, pensando no quão feliz ele deve estar agora. Essa vaga era o sonho de Samuca. Caramba, ele conseguiu!

- pois é! Eu queria que você tivesse aqui pra gente comemorar.

- bom, não precisa chorar, porque eu também tenho boas notícias. Eu volto pra São Paulo essa semana.

Ouço ele ficar eufórico do outro lado e já começar a planejar nossas saídas para comemorar seu novo emprego, enquanto eu sinto a expectativa crescer em mim. Presidente Prudente pode até não ter sido tão ruim, mas eu acho que já está mais do que na hora de voltar para a minha vida caótica na selva de pedra.

- barzinho na Oscar freire e depois Yacht, na sexta, pra matar as saudades? – ele indica, me trazendo de volta ao aqui e agora.

- demorou!

__

O taxi estaciona em frente ao prédio, então eu olho pra fora da janela e solto um sorriso, feliz por estar em casa novamente. Após uma viagem cansativa e demorada, finalmente estou de volta a São Paulo, de braços abertos para a correria, para o trânsito caótico, para os prédios cinzas e para toda minha vida que, apesar de estressante, é algo que eu não poderia mudar nem se eu quisesse. Agradeço o taxista e saio para a calçada, pegando minhas coisas no banco de trás e fazendo meu caminho até o portão. O clima quente que fazia em Presidente Prudente fez eu me desacostumar com a instabilidade no tempo aqui em São Paulo. Agora, por exemplo, não são nem 14h e o céu está nublado, anunciando chuva a caminho. Ando um tanto desengonçado com minha sacola de viagem em uma mão e minha mochila nas costas, subindo a rampa que me separa da entrada do condomínio até o hall do prédio. No meio do caminho, olho para a garagem coberta e não vejo o carro de Samuel, o que me faz estranhar. Saco o celular e ligo para ele, enquanto passo pela porta de entrada do prédio. Após dois toques, ele atende.

- e aí, ridículo. Já chegou em casa?

- já, e não vi seu carro na garagem. Onde você tá?

- eu tive que vir no hospital acertar algumas coisas. Mas logo eu estou em casa.

- não estava preparado pra me ver depois de todo esse tempo, eu entendo...

- vai cagar, Arthur. – ele brinca, fazendo eu rir. – ah, e não se assusta com a bagunça da casa, eu quase não parei essa semana, fiquei mais na casa do Diego do que aí.

- na casa do Diego? Daqui a pouco eu acho que vamos ter casamento, então.

- se tudo der certo, finalmente vou ter uma desculpa perfeita pra comprar um terno da Armani e de quebra ter uma lua de mel em Nova York!

- quem te viu, quem te vê. – eu oscilo o tom de voz, por causa da subida difícil devido às bagagens. – agora eu tenho que desligar, vou usar minhas duas mãos pra levar as minhas coisas, ou eu não aguento chegar até lá em cima. Vem logo pra casa, to com saudade de você!

- eu também, fujão. Daqui a pouco eu to aí. Tchau!

- tchau!

Chego no meu andar com minha testa suando. Fazia tempo que eu não sabia o que era fazer exercício físico, ainda mais subindo vários lances de escada com peso nas mãos e nas costas.

Ao entrar na sala, largo as coisas no chão, aliviado por livrar minhas mãos, mas assim que eu dou uma olhada geral na sala, percebo que ele foi modesto demais ao dizer que a casa estava "bagunçada".

- caramba Samuel, como você é porco! – eu reclamo, achando que a sala mais parece um campo de guerra do que uma sala em si; o cobertor de Samuca esparramado no sofá e pendendo para o chão, um copo sujo em cima da mesa de centro, farelo de comida em cima do tapete...

Chegando na cozinha, mais bagunça; a pia abarrotada de louça suja, a toalha de mesa manchada de suco, o fogão com uma crosta de gordura. Em resumo, o meu curto caminho da porta da frente até aqui parecia um rastro de um furacão. O terrível furacão Samuel. Começo a me perguntar se ele ao menos se preocupou em limpar a casa alguma hora nessas quase duas semanas que eu estive fora.

Decido então que, não só por vontade, mas também por extrema necessidade, eu preciso dar um jeito nesse caos todo, antes que a sujeira me engula.

Começo pela louça, que eu julgava ser a parte mais fácil, mas nem com soda cáustica a camada de sujeira poderia ser tirada com facilidade. Parecia que aquelas coisas estavam ali há uns bons anos.

"Acho que alguém vai ficar encarregado da limpeza da casa o resto dessa semana, pra aprender a não ser relaxado."

Depois de cuidar da louça, limpo o fogão e recolho a bagunça da sala. Só de fazer isso eu já me sinto exausto, ainda mais por ter tanta coisa ainda pra fazer. Por fim, recolho as roupas sujas no quarto de Samuel e no meu, juntando com as da viagem e coloco pra lavar. Enquanto isso, varro o chão e separo as toalhas de banho e de mesa e os cobertores pra levar até a lavanderia da quadra de baixo. Feito isso, penso que finalmente vou poder descansar e esperar Samuel chegar para lhe dar uns rapas. Quando eu volto pra casa, são quase 17h e eu sinto meu estômago roncar. Abro a geladeira e me espanto ao ver que ela está praticamente vazia, apenas com uma garrafa d'agua, alguns ovos e um pote com alface. Vou até os armários e também estão depenados. Samuel não foi nem ao mercado fazer despesa? Cara, ele precisa apanhar! Ao pensar nisso, escuto a porta da frente se abrir e então se fechar. Logo Samuel aparece na cozinha e me olha, sorridente.

- um bom filho à casa torna.

- Samuca! – eu caminho em sua direção, a saudade falando mais alto do que a raiva por sua bagunça. – eu senti sua falta, bundão.

- achei que teria que arrumar outro colega de apartamento. Quase um mês fora.

- não exagera, foram só duas semanas. Duas semanas que foram o suficiente pra deixar essa casa de ponta cabeça, por sinal.

- não estava tão ruim assim.

- não estava tão ruim assim? Samuel, parecia que você tinha soltado uma dezena de búfalos aqui dentro, quando eu cheguei! A casa tava no chão.

- pois é, você sabe que eu não sei me virar sem você. – ele faz beicinho, me olhando de forma dramática.

- e cadê a comida dessa casa? O que você comeu enquanto eu estava fora?

- miojo, ovo frito...

- me dá a chave do carro, eu vou no mercado agora! Se eu demorasse um dia a mais você ficaria com anemia.

- que superprotetor. – ele sorri, zombando de mim. – quer que eu vá com você?

- não, vai descansar. Eu vou e você cuida da máquina de lavar, tá abarrotada de roupa.

- sim senhor! – ele coloca a mão na testa, similar ao gesto que os militares fazem, então eu reviro os olhos e pego a chave em cima da mesa e desço até o carro.

No meio do caminho, vejo o trânsito lento do horário de pico e estranhamente eu me sinto feliz em estar parado no engarrafamento. Eu havia sentido falta do caos dessa cidade. Quando volto a pisar no acelerador, depois de um bom tempo, ouço o carro fazer um barulho estranho. Presto bem atenção pra tentar identificar o que é, mas não consigo. Porém, como é um barulho muito baixo e aparentemente inofensivo, acabo achando que é uma folga no amortecedor ou até um pneu precisando de uma calibrada, o que seria fácil de fazer, depois de fazer as compras. Em poucos minutos eu já estou estacionando no subsolo do hipermercado, feliz por achar uma vaga logo na primeira volta. Vou passando pelos corredores e pegando coisas o suficiente pra quase encher o carrinho, já que a casa estava em situação de emergência. Arroz, feijão, enlatados, produtos de limpeza... Estava me sentindo uma dona de casa, pensando que da próxima vez que precisar deixar Samuel sozinho por mais de dois dias, terei que deixar a casa abastecida antes e contratar uma diarista pra manter a casa arrumada.

Acabo me distraindo ao fazer a despesa e demoro um pouco a mais, escolhendo algumas coisas pra fazer um jantar para mim e Samuel. Quando entro no corredor das bebidas, para escolher um bom vinho ou uma vodka de sabor pra acompanhar nosso brócolis com atum de mais tarde, acabo esbarrando o carrinho em outra pessoa. Em modo instintivo, acabo freando bruscamente e já começo a pedir desculpas, antes mesmo de ver qual tinha sido a minha vítima. Quando eu olho, meu coração salta em uma batida.

- Gustavo?

- ei, barbeiro. – ele me olha surpreso, segurando uma cesta com carnes, temperos, leite e um pacote de bolacha integral. – já voltou de Prudente? Cedo.

- pois é. Você também.

- eu acabei vindo no outro dia de manhã, depois da... – ele para, me fazendo corar e parecendo se divertir com isso. – a propósito, eu acabei de levar meu carro pra lavagem. De novo.

Eu me limito a apenas sorrir, sentindo minhas bochechas arderem. Tem como ele ser mais debochado?

- às ordens, sempre que precisar. – eu rebato, entrando na brincadeira. Ele me encara por uns instantes, os olhos quentes e acolhedores, como se quisessem falar por si só. Eu acabo fazendo o mesmo, antes de voltar a mim e desviar o olhar, um tanto sem jeito.

- eu vou indo nessa, então.

- tá legal. A gente se vê.

Concordo com a cabeça e sigo na direção contrária à dele, sentido meu corpo todo ficar tenso e mole por vê-lo. Acabo pegando uma vodka de maçã verde e decido ir logo pra casa. Indo em direção ao caixa, faço uma careta ao ver que ha uma fila mediana, o que acaba balançando meu humor. Enquanto eu espero, olho para o lado e vejo Gustavo na outra fila, me olhando. Quando ele percebe que eu o vejo, ele acena, quase conseguindo ser simpático, então eu sorrio e aceno com a cabeça, então volto a olhar pra frente. O que está acontecendo com a gente? Uma hora estamos brigando dentro de seu carro, outra hora esbarramos no supermercado e agimos como se nada tivesse acontecido?

Depois de passar as compras, coloco tudo dentro do carrinho e sigo para o estacionamento. Já com as compras dentro do carro, giro a ignição mas o carro não responde. Ah, beleza. Tento novamente, mas continuo sem resposta. Pelo visto, aquele barulhinho inofensivo era mais sério do que eu pensava. E logo eu, que entendo de carros, fui ficar na mão, por bobeira. Resolvo sair e conferir se é algo que eu possa consertar. Abro o capô, mas tudo parece estar em ordem, porém, a julgar por estar escuro e eu estar um pouco sem paciência para bancar o mecânico, penso que talvez eu não vá conseguir achar o defeito da droga do carro agora. Justo quando estou quase pegando meu celular para ligar para um táxi, ouço um barulho de alarme tocar a duas vagas ao lado. Olho para a direção do barulho e vejo o Audi preto e reluzente parado no espaço entre mim e a vaga que agora está vazia, então penso que minha noite poderia estar um pouco menos catastrófica.

- precisando de ajuda? – ele pergunta, como se o capô do carro levantado já não lhe respondesse.

- não, valeu.

Abaixo o capô e tento misericordiosamente ligar o carro mais uma vez, mas sem sucesso.

- tem certeza? – sua voz atravessa meu ouvido e me faz sentir raiva, mesmo que talvez ele esteja com a melhor das intenções.

- tenho, eu só... Samuel como sempre sendo super cuidadoso com as coisas dele.

- quer uma carona?

- não, obrigado.

"Esse lance de caronas não funcionam muito bem entre nós dois, Gustavo." – eu complemento, em pensamento.

- deixa de ser cabeça dura. E dessa vez, você tá sóbrio, então acho que não vamos ter problemas.

Eu me viro pra ele e lhe dou um sorriso sarcástico, quase mostrando minha língua pra ele, se isso não fosse infantil demais.

Eu começo a pensar em alguma maneira de sair daquela situação e ir embora logo, mas não vejo outra alternativa, se não chamar um táxi ou aceitar a carona de Gustavo.

- então, o que me diz?

- tá. – eu desisto, derrotado. Abro a porta e saio pra fora, indo em direção ao porta malas e pegando uma boa quantidade de sacolas. Gustavo abre o porta malas do Audi e me imita, me ajudando a pegar o que faltava. Depois disso, travo o carro de Samuel com o alarme e entro no famigerado A6, sentando no banco do carona e esperando Gustavo se juntar a mim.

Assim que o carro sobe a rampa e entra na avenida, percebo que a noite já havia chegado. O céu, que ainda está em tons de laranja, agora mostra algumas estrelas em meio aos prédios, sendo minha única distração para evitar de prestar atenção no perfume tão tentador de Gustavo, que está tão perto e tão bonito, com a camisa cinza escuro que ele tanto gosta e com seu cabelo quase bagunçado, depois de mais um dia de trabalho na agência. Eu o conheço o suficiente pra saber que hoje havia sido um pouco estressante e que ele estava louco pra ir pra casa, relaxar e fazer um jantar rápido pra depois procurar algo pra fazer. Eu sei porque era isso que costumávamos fazer, especialmente nas sextas-feiras cansativas de meio de mês.

- tá pensativo. – ele me arranca dos meus pensamentos, fazendo eu o olhar e vê-lo me olhando de volta, com uma das mãos no volante e a outra encostada na janela.

- a viagem foi cansativa.

- então você voltou hoje.

- é, na verdade eu cheguei no começo da tarde.

- pensei que você ficaria mais tempo lá.

- é, eu também. Mas acabei sentindo falta de tudo. Quis voltar pra minha rotina.

- eu fico feliz que você esteja de volta. – sua frase paira no ar e me faz pensar sobre isso. Será que realmente fica? Sinceramente isso não deveria fazer a mínima diferença pra mim, mas faz.

- eu também.

Já na metade do caminho, não consigo deixar de comparar nosso último encontro com o de agora. Parece que nesse exato momento estamos retomando as rédeas da vida, deixando nossos atritos de lado e sendo apenas... Bons amigos? Não sei, mas me parece que estamos em tempos de paz.

- a Leona vai apresentar sua nova coleção na semana que vem e ficou me perguntando de você o tempo inteiro desde o aniversário do Diego.

- você não disse que...

- não. – ele me olha e pressiona a mandíbula, parecendo estar mais tenso, me olhando e refletindo através de alguma lembrança dolorosa.

- bom, eu acho que seria rude da minha parte não ir. Estou com saudade deles, dos seus pais, da Leona, e eu não perderia um evento importante dela, lembro de ela ter tocado no assunto um pouco antes da festa.

- legal.

Chegamos no apartamento e então Gustavo me ajuda a subir com as sacolas. Ao abrir a porta da sala, vejo Samuel vindo da cozinha me encontrar.

- Arthur do céu, a quantidade de roupas que... Gustavo, oi! Que surpresa. – ele olha para Gustavo e então para mim, não conseguindo esconder sua cara de quem não está entendendo nada.

- o carro estragou e o Gustavo estava lá no supermercado, então eu aceitei uma carona.

- hum. – ele balança a cabeça, fingindo que havia entendido, mas eu sabia que seria bombardeando de perguntas assim que Gustavo fosse embora.

- bom, agora eu preciso ir.

- tudo bem. Eu levo você lá embaixo.

- legal. E foi bom te ver, Samuel! Estava com saudades.

- eu digo o mesmo, Gus. Se cuida!

Já no lado de fora do hall, vejo Gustavo parar ao lado do carro e se virar para me dar tchau. À luz da noite acabou o favorecendo ainda mais, com seus olhos castanhos brilhando e os contornos finos dos seus lábios me deixando levemente distraídos. Concentra, Arthur!

- bom, então é isso.

- obrigado pela carona. De novo.

- é sempre um prazer. – ele brinca, com um fundo de verdade. – eu te ligo pra combinar sobre a festa da Leona.

- Ok, eu fico esperando, então. Se cuida, Gustavo.

- você também, Arthur.

Então, de forma inesperada, ele se aproxima de mim e me planta um beijo na bochecha, parecendo tenso ao fazer isso, mas não tão tenso quanto eu ao sentir seus lábios encostando em minha pele. Sem dizer mais nada, ele entra no carro, liga o motor e avança em direção ao portão, me deixando extasiado e com um vestígio de um sorriso, pensando que talvez as coisas entre nós estejam prestes a melhorar, enfim.

Comentários

Há 5 comentários.

Por Luã em 2017-05-28 23:04:23
Oi gente! Acabei de postar capitulo novo, agora as coisas entre o nosso casal parece estar um pouco mais resolvidas! Quero agradecer MUITO o carinho de vocês, os comentários, o envolvimento de vcs com a história, vocês são demais, sério! Um grande beijo, me contem o que acharam do capitulo novo hein <3
Por Diva em 2017-05-24 05:20:58
Eu já nem sei que eu quero kkkk enfim que a história siga um rumo e me surpreenda
Por Deco mineiro em 2017-05-23 22:00:51
Tô acompanhando e torcendo pelos dois. Volte a postar logo, amigo!
Por Dannnn em 2017-05-23 21:15:58
Gente do céu, estou em transe com essa série.. por favor não demora mais pra postar os novos capítulos, é uma tortura ficar esperando.. bjs
Por edward em 2017-05-23 17:36:39
Nossa ...Senti o clima ! Espero que tudo se acerte entre os dois