14. Relações tóxicas

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série Proibido

Já fazem três dias que Gustavo e eu não nos falamos mais. Eu evito ao máximo chegar perto dele, seja para deixar algum documento em sua mesa ou passar pelo corredor na hora do intervalo. Preciso admitir que isso dói muito, pois Gustavo foi o primeiro homem que eu gostei de verdade. Foi tudo tão rápido, estávamos tão bem, dando indícios de que nosso namoro era forte, apesar de recente, mas aí chegou a festa de Diego, a confusão com aquela mulher e então as verdades sobre Gustavo foram jogadas para mim de uma só vez. Eu pensei que seria nesse ponto em que nos fortaleceríamos, mas eu me enganei; foi justo aí que enfraquecemos e Gustavo preferiu se afastar ao deixar eu entrar completamente em sua vida. Agora eu estou sentado na minha mesa, tendo que aturar uma segunda-feira chuvosa enquanto organizo alguns contratos habitacionais que serão assinados pelos clientes mais tarde em uma reunião. Mais ao fundo, alguns colegas meus seguem falando entusiasmados de como os valores da bolsa estão se estabilizando aos poucos, depois de toda a bagunça e a confusão na economia nos últimos meses, o que para nós é algo fantástico. Eu sinceramente não consigo me animar nem com isso. Penso apenas em minha cama e no pote enorme de brigadeiro que eu deixei na geladeira e que eu espero que ainda esteja lá, caso contrário Samuel vai ter grandes problemas.

- Arthur? Tá me ouvindo?

- ah, oi Melissa. - falo vagamente, voltando ao aqui e ao agora enquanto eu olho pra ela e desejo vigorosamente que ela não esteja prestes a me pedir para ir até a mesa de Gustavo.

- vem, vamos para o refeitório comer bolo! - ela não consegue esconder sua animação em relação a isso.

- bolo? Por que?

- pra dar as boas vindas ao novo gerente jurídico e cantar parabéns pro Gustavo.

- ah sim. - eu engulo em seco. Parabéns? Claro, eu havia esquecido que seu aniversario era essa semana. Quer dizer, eu tentei tanto esquecer que acabei conseguindo, pelo menos de ontem pra hoje. Porém é só eu lembrar do seu presente que eu deixei guardado dentro da minha gaveta que eu sinto meu coração se apertar. Havia comprado pra ele alguns dias antes da festa, em uma das minhas idas mais recentes ao shopping com Samuel. Abro a terceira gaveta, olho a simpática caixa quadrada em azul escuro e amarelo e penso que talvez eu deva jogar fora, já que não vou dar para ele mesmo. Dentro dela há um porta retrato com uma foto nossa no dia em que fomos até Visconde de Mauá. Eu preciso admitir que sou péssimo com presentes, então eu fiz isso como algo mais sentimental, já que essa é nossa primeira foto revelada, pensando que talvez ele gostaria de colocar em seu quarto, ou algo parecido. Junto há um frasco de Intenso, da Dolce & Gabana, seu perfume preferido, e uma cópia do 21 importado, seu álbum preferido onde tem sua música preferida.

Fecho a gaveta e sigo Melissa, que acabara de levantar e seguir em direção ao refeitório. Chegando lá, trato de ficar bem ao lado dela, quietinho e esperando que essa palhaçada não demore muito e que eu possa logo voltar para a mesa e não ter que ficar tão próximo de Gustavo como agora, onde eu não consigo deixar de olhar pra ele e ver como ele está bonito, tão bonito quanto aparentemente triste. Nossos olhares se cruzam por um instante e então eu desvio dele, olhando para fora da janela, o coração batendo a mil. Por quanto tempo mais eu vou conseguir ficar assim? Eu não sei ao certo, mas estar tão perto de Gustavo está se tornando prejudicial pra mim mesmo. Eu o desejo tanto e ao mesmo tempo tenho tanta magoa pelo que ele me disse que isso já é o suficiente pra ferrar com a minha cabeça. Soraia, nossa tesoureira, começa a falar do motivo pelo qual estamos aqui, como se ninguém soubesse, enquanto Amanda é a ultima a se juntar a nós, com as bochechas coradas por atrair alguns olhares. Todos assistem ao discurso de Soraia e estampam sorrisos tão largos que chegam a soar falsos, enquanto ela dá as boas vindas ao nosso novo colega, que não me parece ser uma pessoa muito amistosa, mas que cumprimenta a todos de maneira cordial. Em seguida, Duda aparece com uma cesta grande com chocolates, vinho e outras coisas mais que eu não consigo ver, ao mesmo tempo em que Soraia continua explicando que estamos aqui comemorando o aniversário de Gustavo, enquanto solta um monte de elogios e de puxa saquismos previsíveis que me causam náusea. Mas a maior surpresa do meu dia ainda estava por vir. Duda chega ao meu lado e me alcança a cesta, enquanto eu por reflexo a pego, a olhando sem saber o motivo daquilo.

- vai lá, você é o preferido dele, nada mais justo que você dar o presente! - ela me lança um sorriso falso, fingindo entusiasmo e inocência, mas eu sei bem o jogo sujo que ela está fazendo. Olho para Amanda, que estava perto da porta, e ela também parece ter entendido a intenção maldosa de Duda.

Eu fico completamente sem reação, enquanto assimilo a situação e preciso forçar um sorriso enquanto caminho em direção dele e o alcanço o presente. Ele parece tão sem reação quanto eu, até que eu o alcanço a cesta um tanto sem jeito e o lhe dou um aperto de mão formal, sentindo uma corrente elétrica percorrer meu corpo ao sentir sua pele tocar a minha.

- parabéns, Gustavo. - falo com a voz baixa e forçada, sabendo o quanto aquilo estava sendo difícil pra mim.

- obrigado.

Volto ao meu lugar e tento não ficar encabulado de vergonha e nem de raiva, ou até mesmo não deixar transparecer que eu estou querendo sair correndo daqui e me enfiar em qualquer lugar que ninguém possa me olhar. Todos cantam parabéns e Gustavo não para de olhar pra mim, mas dessa vez eu sustento seu olhar. Quero que ele veja o quanto ele me machucou, o quanto ele foi cruel ao querer ser honesto comigo, falando aquilo na casa dele, falando tudo aquilo pra alguém que só queria ver ele bem. Depois de comer meu pedaço de bolo, sou obviamente o primeiro a sair de lá, indo em direção ao banheiro e fechando a porta, andando até à frente do espelho e pressionando os punhos em cima da pia de mármore, deixando que a raiva emanasse de mim afinal. De cabeça baixa e com as mãos contra a superfície gelada de pedra, eu penso em como eu posso tentar amenizar todo esse turbilhão de sentimentos que eu acabei criando por esse cretino, se quiser preservar meu emprego aqui na agência. Preciso fazer com que ele volte a ser apenas meu chefe, o tratando com naturalidade e passando a não dar mais importância pra ele. Mas é aí que eu me lembro que eu nunca o tratei apenas como meu chefe. Desde o primeiro dia eu senti algo a mais por ele. Então como voltar a tratar normalmente uma pessoa que você nunca tratou dessa maneira? Eu terei que reaprender a lidar com a droga do meu sentimentalismo, já que depois de adulto eu ainda estou me portando feito um adolescente apaixonado por seu colega de turma.

A porta se abre e Gustavo entra, fazendo eu pensar que isso fosse um tipo de alucinação, mas não era. Gustavo tinha essa mania de me seguir em banheiros e isso me faz lembrar da festa da empresa, onde nos beijamos pela primeira vez. Ele me olha em estado de alerta e eu já me ponho ereto e fico na defensiva, pensando em um jeito de sair daqui. Começo a andar em direção a ele, em direção à porta, então quando eu estou em sua frente sinto ele me parando com sua mão em meu braço, cautelosamente.

- a gente precisa conversar.

- não, não precisa. - eu rebato, ouriçado.

- eu não quero ficar nesse clima chato, Arthur. Eu sei que eu fiz besteira, me desculpa.

- não esquenta, Gustavo, acontece. Você disse o que queria, eu entendi e agora estamos ótimos, sabendo da verdade. Eu sei que você tá se sentindo um cretino por ter falado aquilo daquela forma - o que não deixa de ser verdade, pois você é - mas pelo menos está tudo esclarecido. Sem ressentimentos. Posso ir? - eu o olho fixamente e com meu olhar e minhas palavras carregadas de ódio, então ele solta meu braço e eu tenho o caminho livre para a porta. Saindo dali, caminho apressado pelo corredor, viro a esquina e, chegando na parte das escadas, encontro Duda, que me olha e parece estar com o olhar aceso, esperando eu falar algo.

- com pressa, Arthur?

- você nem imagina o quanto.

- deu pra notar que o Gustavo adorou quando você deu o presente pra ele. Ele parece gostar muito de você, não é?

- me erra, Duda.

- calma, amigo! Eu estou de guarda baixa, apenas falando o obvio. Ele gosta de você.

- Eu pensei que eu havia sido claro aquele dia sobre não querer você dando palpite na minha vida pessoal, mas parece que eu me enganei. Eu sei o que você ta querendo fazer, Duda, e eu não vou cair nesse teu joguinho. Você é só uma mal amada que quer tentar me tirar do sério, mas não vai. Pode ficar com o Gustavo só pra você, se é que você não percebeu, eu e ele não temos mais nada. Mas se ele vai te querer ou não, aí é outra coisa. Com licença. - passo por ela e subo as escadas sentindo que ela está a ponto de querer voar em cima de mim e me bater, então eu torço pra que eu possa enfim chegar no meu pavimento e voltar para a minha segura e confortável mesa, onde a pilha de documentos me espera e parece ser uma ótima coisa para me distrair a cabeça.

No fim do dia, sigo meu rumo pra casa ainda com raiva por Duda e com a conversa breve e ríspida que eu tive com Gustavo no banheiro. Estou parado no sinal e com minhas mãos firmes no volante, impaciente para chegar logo em casa e ficar no meu quarto, assistindo um filme qualquer na televisão e tentando distrair a cabeça. Porém, ouço meu celular tocar e meu coração salta uma batida ao ver o nome e a foto de quem eu menos queria. Pego o telefone e por um segundo eu quase atendo, de guarda baixa, querendo, precisando voltar a falar com ele e te-lo pra mim, porém é só eu lembrar das coisas que ele me disse que eu volto a largar o celular e me mantenho firme no meu propósito de tentar esquecer ele, pro meu próprio bem.

"Era só sexo." - a frase ecoa na minha mente antes do sinal abrir e eu arrancar, fazendo eu me sentir um completo idiota ao cair nessa de achar que existe romance perfeito. Mas eu fiz tudo certo, sabe? Eu não sei em qual parte a gente acabou se atrapalhando e deixando tudo virar nisso. E por mais que eu queira entender isso, não quero isso agora; tudo o que eu quero é ir pra casa.

_

Ao girar a chave no miolo, suspiro fundo ao ter que explicar minha cara de desânimo pra Samuel mais um dia. Toda manhã eu falo pra ele que vou tentar ficar bem e tentar esquecer isso, mas todo final de tarde eu recebo seu olhar de desaprovação por ter falhado na minha meta. E hoje não seria diferente. Encontro ele mexendo em seu notebook na mesa da cozinha, logo após largar minha pasta no sofá e tirar meus sapatos e meias, ficando de pés descalços pela casa e sentindo o piso frio me causar uma enorme satisfação.

- e aí. - ele já me cumprimenta me analisando, os olhos curiosos em cima de mim.

- e aí.

- ah, não, Arthur. - ele solta em desaprovação, vendo que eu estou igual aos outros dias. Tem como escapar dos olhos críticos do delegado aqui?

- Samuel, eu não consigo. Ver ele todos os dias e ficar aborrecido vai ser minha sina por um bom tempo. Esquecer o Gustavo não vai ser assim do dia pra noite.

- é por isso que existem melhores amigos fantásticos e maravilhosos feito eu, que levam os amigos pra distrair a cabeça e sair da fossa.

- sair?

- é, sair, dar uma volta, sacudir o esqueleto, tomar ar puro, ver os boys, você pode chamar do que quiser, só bora se arrumar que nossa noite vai ser longa.

- ah não, sem chance. Eu já me programei pra essa noite. Tenho uma lista gigante de filmes que eu quero passar a noite e a madrugada assistindo. - e perder a hora pra trabalhar no outro dia e ter uma ótima desculpa pra faltar, é claro.

- ah é, lindo? Que ótimo, mas eu não perguntei. Bora, se arruma! Te dou meia hora pra tomar banho, escolher a roupa e se arrumar.

Vendo que eu não teria outra alternativa, acabo revirando os olhos e indo para o meu quarto escolher uma roupa e depois tomo um banho rápido. Não são nem 20h da noite e nós já estamos na noite paulistana, mais precisamente em um pub aconchegante e recém inaugurado na Oscar Freire, com um clima urban/underground, onde um DJ toca uma seleção animada de musicas enquanto a casa começa a lotar. Eu e Samuel ficamos em torno de meia hora na fila, depois passamos pela recepção, depois pela área social do lugar, onde havia alguns sofás e poltronas pretas, ainda vazias, então descemos pela escada até o porão, onde a festa realmente estava acontecendo. Champagne Problems, do Nick Jonas, está tocando e animando a pequena multidão espalhada pelos cantos, que assim como eu e Samuel, chegaram talvez um pouco cedo demais. O amplo salão é decorado com vários quadros aleatórios mas paredes, em especial de bandas e personalidades como Amy Winehouse, Marilyn Monroe e Cher ou até Johny Depp, por incrível que pareça. O lugar todo é iluminado por uma luz rosa, deixando o clima ainda mais underground e um tanto excêntrico. O ar promíscuo e sujo que todo o conjunto se forma é notavelmente proposital, e se encaixa bem em toda a atmosfera. Chegamos até o bar e Samuel já pede duas cervejas pra começar, me olhando e fazendo aquela cara de quando ele acha algum cara bonito. Penso que talvez o barman tenha que aturar meu amigo até o final da festa pedindo seu número ou seu beijo.

- e então, se divertindo?

- muito!

- você é um péssimo mentiroso. – Samuel grita ao meu ouvido, por causa da música alta. Ou eu sou péssimo em esconder meus sentimentos, ou Samuel deveria ser psicólogo ou algo do tipo. Ou talvez os dois.

- eu to me divertindo, sério! Só ainda estou entrando no clima.

- ta certo, então bora pra pista, eu quero dançar!

Antes que eu pudesse discordar, meu amigo me puxa pela mão e em dois segundos já estamos no meio do salão, perto de um grupo grande de pessoas e que aumenta à medida do tempo. Agora "What a Feeling" do the Sailors esbalda o ambiente de gritos e danças animadas, enquanto Samuel parece ter achado a música da noite pra ele dançar feito ninguém. Eu sorrio e danço também, parecendo que finalmente estou relaxando e curtindo um pouco. No meio da música, um homem alto, mais ou menos de um metro e noventa, chega ao nosso lado e por incrível que pareça, começa a olhar diretamente pra mim ao invés de olhar pra Samuel. Me pergunto se ele tem algum problema de visão, pois toda vez que algum cara chega perto da gente, os olhares correm para meu amigo loiro de olho azul, não para mim, um mero mortal de cabelos e olhos castanhos. Porém, logo ele se infiltra na nossa dança e nem eu nem Samuel o mandamos embora, apenas deixamos ele participar de nossa rodinha quase solitária.

- ei, tudo bem?

- tudo! E você?

- também. Qual seu nome?

- Arthur, e o seu?

- Guilherme!

- prazer, Guilherme! – respondo alto, já com a garganta doendo de forçar a voz pra que ele me escute no meio da música, e só então que, depois de ele me lançar um dos sorrisos mais lindos que eu já vi é que eu paro pra prestar atenção nele. Cabelos castanhos,, cacheados e curtos, o olho verde escuro, meio castanho e a pele branca e forte por trás da camiseta mostram um cara realmente simpático, bonito e chamativo. Olho de relance para Samuel e ele parece ter achado o homem igualmente bonito, mas ele não se pronuncia, já que ele pensa que eu estou afim dele. O problema é que eu queria estar, e queria muito. Mas Gustavo ainda está impregnado em todos os cantos da minha cabeça e eu não consigo mudar isso. Talvez seja cedo ainda pra tentar, mas eu queria que esse sentimento que eu acabei tendo por ele fosse destruído tão rápido quanto foi construído. A música termina e outra não tão empolgante começa, fazendo o ritmo da dança diminuir, então nós três vamos até o bar.

- me vê três cervejas, por favor! – Guilherme pede simpático ao barman, então me olha e sorri de canto. Ele tem um jeito um pouco tímido, um pouco sedutor, dosado e misturado na medida certa.

- Gente, vou no banheiro, já volto!

Assim que Samuel nos deixa à sós, fica claro que é essa a hora que devemos começar uma conversa, e Guilherme é quem faz a frente.

- você é de onde?

- Vila Mariana, e você?

- Morumbi.

- legal.

- você é muito bonito, sabia?

- ah, valeu. Você também. – sinto minhas bochechas ficarem quentes, então eu acho que ele repara que eu fico sem graça e um pequeno silêncio se instala entre nós. Eu decido tentar contornar a situação e puxo assunto:

- lugar bacana esse, né?

- sim, muito! Eu tava um pouco deprê em casa, chamei uns amigos pra sair e eles furaram, aí decidi vir sozinho mesmo. Acho que foi meu dia de sorte, não esperava achar um Arthur por aí.

- é, eu também tava meio pra baixo, o Samuel que me arrastou pra fora de casa.

- pra baixo por que?

- ah, uns problemas aí, mas não é nada demais. E você?

- eu acabei de terminar um relacionamento. Faríamos um ano na próxima semana.

- que chato, cara. Eu sinto muito.

- tá tudo bem. Foi tranquilo. Ele foi pra Manaus trabalhar e a gente achou melhor terminar numa boa. Já faz um mês, mas você sabe...

- eu entendo.

- e você, namora?

- sim, quer dizer, não. Não mais.

Ele levanta a sobrancelha, visivelmente confuso, então mesmo sendo um completo estranho eu decido ser sincero como ele está sendo:

- eu estava em um relacionamento, mas as coisas ficaram confusas, estranhas, então agora tá cada um pra um lado. Eu não tive a sorte de terminar com ele de um jeito tranquilo como você. E eu sinto muito a falta dele, mesmo ele sendo um cretino.

- se for pra vocês ficarem juntos, as coisas se ajeitam. Não dá pra ficar se torturando por algo que a gente não tem total controle. Se ele gosta de você, ele vai voltar atrás.

Por um instante eu o observo e penso que ele deve ser alguém que vale a pena manter contato. Guilherme, depois de me deixar com algo para pensar, me analisa com os olhos brilhando através da luz rosa e eu me sinto um pouco mais calmo, então Samuel chega e interrompe nosso papo cabeça.

- voltei! Caramba, que banheiro sujo!

- deve ser pra combinar com o clima underground. – Guilherme brinca, fazendo-nos rir. Samuel senta ao meu lado e parece enxergar um fantasma ao olhar para o salão, me deixando curioso e preocupado.

- que foi, Samuel? – eu acompanho seus olhos e enxergo Gustavo, junto com seus dois amigos da festa de Diego. Os três estão parados perto de um dos pilares e conversam animados, então como se fosse calculado, Gustavo olha para minha direção e nossos olhos se encontram. Com isso, meu estômago se revira e eu sinto meus olhos se arderem um pouco, mas eu logo desvio o olhar e evito qualquer tipo de contato com ele.

- esse idiota não tinha nenhum outro lugar pra ir?

- deixa Samuel, ele não tinha como adivinhar que eu estaria aqui. Além do mais é aniversário dele, lógico que ele sairia pra algum lugar.

- se eu te conheço, nossa festa acabou de acabar então. – ele reclama, zangado.

- muito pelo contrário. Vem Guilherme! – puxo os dois e vou para o outro lado da pista, mas não longe o suficiente para que ele possa ver que ele não vai estragar minha noite, nem se ele quisesse.

- o que deu em você?

- querendo me divertir, amigo! – respondo pra Guilherme, surpreso comigo mesmo por não estar tão abalado como eu achava que ficaria. Começamos a dançar e eu não preciso nem olhar adiante pra ver que Gustavo estaria me olhando. Mas para tirar qualquer dúvida eu acabo o procurando na multidão e o acho, os olhos acesos me encarando e encarando Guilherme. Será que eu estou ficando louco ou ele está com ciúmes? Mas não foi ele mesmo quem disse que o nosso lance era só sexo? Puxo Guilherme pra mais perto e enlaço os braços em volta de seu pescoço, dançando por uns segundos dessa forma antes de me desvencilhar e fazer o mesmo com Samuel, mas dessa vez indo até o chão com ele, desequilibrando na hora de voltar a ficar ereto e rindo por isso. No final das contas, a presença de Gustavo não se torna incômoda. Mas eu não posso negar que eu quero deixá-lo com ciúmes, com muito ciúmes. Tudo o que

Guilherme faz é sorrir e dançar enquanto eu passo por trás dele e coloco minhas mãos em seu peito, não de forma maliciosa e sim de brincadeira, mas para todos os efeitos e principalmente para Gustavo, as intenções são outras. Sinto uma vontade enorme de ir ao banheiro e penso que talvez seja uma ótima forma de ver se eu realmente estou deixando Gustavo com ciúmes. Caso ele me siga, é porque estou, caso contrário, eu deixo pra lá e curto a festa sem dar atenção para a presença dele.

Passo por ele e por seus amigos e vejo que seu olhar me acompanha. A essa altura as cervejas que eu tomei ainda estão me fazendo efeito e eu não consigo conter meu riso ao ver que ele não faz nem questão de esconder seu olhar zangado. Entro no corredor dos banheiros, que é iluminado por três lâmpadas de neon azul penduradas uma embaixo da outra na parede, dando contraste a toda aquela iluminação rosa quase cegante. Ao entrar no banheiro, vejo que Samuel não estava exagerando; o lugar é sujo, bagunçado e um pouco fedido. Um homem muito mais bêbado que eu termina de usar o mictório e passa por mim em direção a porta, saindo sem lavar as mãos. Eu esvazio a bexiga e vou até a pia quando a porta se abre e Gustavo aparece, a feição ainda mais irritada e o cabelo um pouco bagunçado. Seus olhos brilham de raiva tanto quanto sua testa, por causa do suor.

- não quero você com aquele cara.

Explodo uma risada sarcástica e nem me dou ao trabalho de olhar para ele, focando em secar minhas maos no papel toalha.

- qual a graça?

- só não sei como você acha que pode me dizer com quem eu posso ou não posso conversar.

- eu posso, não só posso como estou dizendo. Se eu ver você de gracinha com aquele cara de novo eu vou lá e quebro a cara dele.

Mais uma vez eu rio, dessa vez ainda mais alto. Quem ele pensa que é? Cretino de merda.

- ah Gustavo, vai curtir a sua noite e me deixa curtir a minha. Eu não entendo por que você tá dando um de ciumento.

- por que você é meu.

Eu engulo em seco e me pego desprevenido pra isso. Pisco rapidamente sem olhar pra ele e torço para que ele veja que eu fiquei sem reação.

- se você diz.

Passo por ele e sinto sua mão me empurrando para a parede e me pressionando firme, me deixando sem saída e com o sangue fervendo.

- Arthur, eu to falando sério. Se você continuar me deixando com ciúmes isso não vai acabar bem.

- primeiro de tudo, me solta. – eu rosno, a raiva e a adrenalina pulsando dentro de mim. – e segundo, eu não sei qual é a tua, Gustavo. Ora você não era só sexo? Você não precisa ficar tendo ataque de ciúmes não. Curte a tua noite, fica com alguns caras, leva eles pra casa... Eu vou aproveitar a minha, com quem eu achar melhor. Você só manda em mim da porta do banco pra dentro. Aqui fora, não.

Empurro-o pro lado e saio do banheiro com vontade de dar uns tapa na cara dele e de chorar, falar pro Samuel que eu vou embora e que a ideia dele de sair, apesar de válida não foi das melhores. Mas eu sigo firme até eles novamente e me sinto na obrigação de me divertir ainda mais. Se eu não conseguir, pelo menos preciso demonstrar.

- tá tudo bem? Vi o Gustavo indo lá pro...

- tudo ótimo. Eu amo essa música!

Samuel entende que não quero falar sobre e então ficamos dançando La La La, do Sam Smith, enquanto chego mais perto de Guilherme e dessa vez jogo um pouco sujo com ele, o encarando de forma intimidante e então noto que ele percebeu minha malícia. Ele não tenta nada, mas o clima fica diferente entre nós. Eh me sinto péssimo por no fundo estar usando-o, mas eu sei que eu não vou conseguir parar agora. Sua mãos enlaçam minha cintura e então dançamos em sincronia, movendo o corpo de forma sensual e com o ritmo da música. Eu fecho os olhos e sorrio, mas no fundo eu ainda estou fervendo de raiva. Quem ele pensa que é? Querendo mandar em mim, com quem eu posso ou não posso andar? E se eu quiser beijar Guilherme nesse exato momento eu posso, pois eu e Gustavo não temos mais nada. Então, um movimento brusco e eu abro os olhos e vejo Gustavo me empurrando pra longe de Guilherme.

- cara, cai fora.

- que isso? – Guilherme grita, irritado.

- Gustavo, sai daqui, droga!

- quem é esse, Arthur?

- não te interessa, garanhão. Dá o fora, o Arthur não é pra você não.

- ah é, e quem é você pra dizer isso? Cai fora você, vai procurar o seu, mané!

Um sorriso de raiva surge nos lábios de Gustavo é uma fração de segundos depois Guilherme está no chão, colocando a mão no nariz e fazendo uma careta de dor. Olho para Gustavo, que aperta seu punho com a outra mão e me olha decepcionado, então eu sinto vontade de chorar. Por que ele precisa fazer tudo ficar pior?

- eu te avisei, Arthur. Mas acho que era isso que você queria, né? Tá aí, seu showzinho tá armado!

- ei, deem o fora daqui, esse bar não é a casa da mãe Joana não! – a garçonete, que por sinal é uma Drag Queen mais alta que Guilherme e com uma maquiagem nada discreta nos cerca e acena para o segurança, que não demora a atravessar o salão, passando pela multidão que estava parada assistindo tudo, e nos leva até a saída do bar. Na calçada, eu tento ver se Guilherme está bem, mas ele está irritado e acaba indo embora sem nem deixar o telefone de contato. Gustavo está mais adiante, me encarando um pouco antes de ir até seu carro, ligar o motor e sair cantando pneu rua afora. Olho para Samuel e passo a mão nos cabelos, tentando acalmar os nervos.

- que merda foi essa?

- não sei, amigo. Só vamos embora. Minha noite acabou faz tempo.

Durante todo o caminho ficamos em silêncio. Samuel sabe quando eu não quero conversar e acabou respeitando meu espaço e isso é uma das maiores qualidades dele. Ao chegar em casa eu dou boa noite para ele e sigo direto para meu quarto, tirando a roupa suada e não me dando nem ao trabalho de tomar banho. Coloco meu calção pra dormir e vou até o banheiro para escovar os dentes lavar o rosto, depois volto para p quarto e visto minha camiseta, depois de sentir um pouco de frio. Estou quase deitando na cama quando ouço um barulho de buzina na frente do prédio. Penso que deve ser em alguma casa da frente, mas a buzina volta a tocar e ouço Gustavo gritar meu nome, fazendo com que meu coração pare por um milésimo de segundo. Penso que talvez eu esteja delirando, mas ouço novamente;

- Arthur, aparece! – então, outra buzinada. – não vou sair daqui até você aparecer! Eu quero conversar! – outra buzinada.

- Arthur, que droga é essa? O Gustavo perdeu a cabeça? Vai logo ver o que ele quer antes que os vizinhos chamem a polícia! – Samuel aparece na porta do quarto visivelmente irritado, então eu vou até a porta janela e abro-a, saindo até a sacada e vendo Gustavo parado de pé ao lado da porta do carro, com uma das mãos pra dentro do carro, apertando a buzina.

- para com isso, Gustavo! Que droga!

- desce aqui! Eu preciso falar com você!

- não tenho nada pra falar com você, vai embora!

Então, mais buzinaço. A essa altura minha cabeça já estava começando a latejar, então decido descer até lá e ver o que de tão importante ele precisa falar pra ter que acordar metade da vizinhança com a droga da buzina. Chegando no portão eu vejo como ele está alterado, bêbado e fora de si. Eu começo a ficar com um pouco de medo dele, já que essas atitudes não condizem com o Gustavo que eu conheci há alguns meses, mas se bem que nos últimos dias nada do que eu achava saber dele fazia mais sentido. Saio para a calçada e espero ele falar, mas ele fica quieto me olhando, os olhos úmidos.

- o que você quer, Gustavo?

- eu não aguento mais. Eu tentei ficar firme, ficar longe de você, mas eu não consegui. Eu sou um merda, não consigo fazer nada que eu planejo! Eu... – ele está tão embriagado que sua língua está pesada e seus olhos estreitos. Nessa hora eu sinto que ele deve ter chegado em seu limite. – eu quero você de volta, Arthur. A maior burrada da minha vida foi ter tentado te afastar de mim, sendo que você foi a única coisa boa que eu tive nesses últimos tempos.

- é você acha que bebendo até cair, batendo em outros caras e depois vir até aqui causar confusão com os meus vizinhos vai mudar isso?

- eu... eu não sei.

- Gustavo, vai pra casa, dorme, amanhã a gente conversa.

- mas Arthur, eu...

- vai. Eu não quero conversar com você bêbado desse jeito. Mas você deixa o carro aqui e eu chamo um táxi. Não quero você dirigindo nesse estado.

Sem nem tentar contestar, Gustavo abaixa a cabeça e se encosta na lateral do carro, enquanto eu pego seu telefone em cima do banco do carona e ligo para o taxi. Fico esperado em silêncio, sentado na calçada enquanto tento ao máximo evitar contato visual com ele, e felizmente ele também não tenta conversar. Acho que Gustavo finalmente percebeu que ele estando bêbado desse jeito não vai conseguir ter nenhuma credibilidade no que for dizer ou fazer. O taxi chega em menos de dez minutos e Gustavo entra no carro sem nem se despedir. Confesso que isso acaba me deixando mal, pois eu posso ver o quanto ele está abatido com toda a situação. O carro desaparece na esquina e eu entro de volta, sabendo que essa vai ser uma daquelas noites em que a gente demora pra dormir.

_

O final de semana passou lento e tedioso. No sábado de manhã eu acordei um pouco tarde e quando olhei pela janela, o HR-V de Gustavo já não estava mais lá. Tentei me ocupar limpando a casa e fazendo o almoço mais atrasado da história, já que Samuel acordou ja passava das 13h e eu havia terminado de limpar a casa um pouco depois disso. No domingo eu acabei ficando no meu quarto assistindo televisão e curtindo meu cobertor, com a chuva caindo lá fora o dia inteiro, assim como agora, enquanto eu me arrumo para ir até o banco. Eu fiquei pensando muito sobre tudo o que aconteceu durante essa semana e eu acho que eu acabei tomando uma decisão não tão fácil, mas necessária. Faço meu caminho até a Paulista com Samuel, que por um milagre acordou cedo para ir até o Hospital das Clinicas conversar com um conhecido dele sobre trabalho. Penso que meu amigo é um tanto ambicioso, querendo começar já em um dia hospitais mais renomados do país, mas se não fosse assim não seria o Samuel.

- tem certeza que vai fazer isso? – ele me pergunta preocupado ao parar no meio fio.

- tenho. É o melhor pra mim agora, Samuca. Vou procurar outra coisa, respirar outros ares, ficar longe dele. Não tem mais como ficar nessa situação.

- bom, você quem sabe. Se precisar me liga. Eu te pego depois pra gente almoçar juntos.

- tá bom. Obrigado, por tudo. – eu o olho e sorrio pelo apoio, já que ele foi o único pra quem eu contei sobre minha ideia e o único que eu tive conselhos sobre o assunto durante o final de semana. Tiro o cinto de segurança e saio para a calçada, andando até a porta da agência com o coração a mil.

Amanda me enxerga de longe mas está ocupada distribuído senhas para uma fila consideravelmente grande no totem, então eu me sinto aliviado por não ter que explicar nada, nem mesmo meu aparente atraso para trabalhar. Subo de elevador até o último andar e vou até a sala de Gustavo, que está no telefone enquanto folheia alguns documentos. Eu paro em sua frente sem nem sentar e espero que ele termine a ligação. Ele me olha e o Gustavo-profissional-chefe-mandão está em plena atividade, fazendo com que assumamos a postura de chefe e empregado na frente de todos, como de costume.

- bom dia Arthur, aconteceu alguma coisa? – ele pergunta e depois olha para o relógio de pulso, evidenciado meu atraso. Penso que atrás de nós, com certeza há alguém olhando para a gente através das repartições de vidro que nos rouba toda a privacidade, então eu tento ser o mais breve possível:

- eu vim pedir demissão, Gustavo.

Sua expressão muda drasticamente e lá está o Gustavo surpreso e irritado, mais humanamente acessível e com os sentimentos à mostra.

- como é?

- eu estou me demitindo. Se você puder agilizar toda a papelada, eu agradeceria. Eu sinto muito, mas eu espero sua ligação pra acertamos tudo.

Me viro e saio da sala com o coração apertado ao ver que Gustavo não consegue falar nada, nem fazer nada. Deixá-lo sem reação desse jeito não era nem de longe algo que eu queria, mas eu sei que essa decisão deixaria-o surpreso. Tudo o que eu sei é que agora eu vou poder tentar esquecê-lo de uma maneira mais fácil, não precisando estar mais todos os dias vendo-o e sofrendo por toda essa confusão que acabamos criando, ao achar que de alguma forma isso poderia dar certo.

Comentários

Há 1 comentários.

Por Guerra21 em 2017-05-02 23:16:23
Nossa que saudades desses dois.