13. O outro lado de Gustavo

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série Proibido

Olho em volta e não reconheço onde estou. Parece ser uma casa grande, a julgar pelo tamanho da sala. A mobília antiga faz eu estranhar ainda mais o lugar, pois eu só havia visto móveis antigos na casa dos meus avós, em Presidente Prudente. É dia lá fora e o clima é um pouco frio, o que me provoca um pequeno arrepio enquanto ando a passos lentos pra fora do cômodo, em direção ao corredor. Antes de chegar, bem à minha direita, a porta da cozinha. Há uma louça enorme pra lavar na pia e a mesa está com dois pratos de comida e talheres sujos em cima da toalha de mesa, o que me faz pensar que alguma refeição deve ter sido interrompida. A adrenalina começa a me deixar em estado de alerta. Que casa é essa? Por que eu estou aqui?

Um barulho em um cômodo no final do corredor faz eu estremecer enquanto saio rapidamente dos meus pensamentos e indagações. Parece ser um barulho de cinto, um estalo de cinto que retine em meus ouvidos. Em seguida, um barulho de choro; é um choro de criança. Meu coração parece ser esmagado dentro do meu peito, enquanto eu sinto vontade de sair correndo, ao mesmo tempo em que eu preciso ver o que está acontecendo.

"É bobagem, Arthur. Você já sabe onde você está, sabe o que está acontecendo." – sussurro mentalmente, enquanto dou um passo de cada vez em direção ao som de choro. A única porta aberta no corredor parece ser o destino que estou procurando, então eu engulo em seco e tento firmar meus passos e fazer com que eles saiam mais rápido. Então, outro barulho de cinto, mais choro. Me obrigo a praticamente correr pelo percurso que falta, querendo que tudo aquilo acabasse. Quando chego na porta do quarto, um senhor de mais ou menos cinquenta anos, segurando um menino de uns 10 anos, na beirada da cama enquanto o homem o espanca. Não consigo ver os rostos, mas consigo ouvir o homem gritar:

- já falei que eu não quero você dormindo de luz acesa! A gente já não tem dinheiro nem pra comprar comida, aí tem que pagar a mais de energia por causa de você, muleque!

Fecho os olhos ao perceber que o garoto apanharia mais uma vez, então o estalar do cinto parece entrar dentro da minha cabeça e sair novamente. Olho para a parede e vejo uma parede azul claro, com uma estante cheia de brinquedos e ursos de pelúcia. Ao lado, um letreiro colorido, escrito o nome do garoto: Gustavo.

- não!

Abro os olhos rapidamente e olho em volta, assustado; foi apenas um sonho.

Estranho o fato de Gustavo não estar do meu lado, então olho para o relógio, não são nem 8h. Será que ele conseguiu ao menos dormir? Eu tenho minhas duvidas que não, pois ficamos um bom tempo na sala, sem falar nada, apenas sentados no tapete, enquanto ele mexia despretensiosamente em meu cabelo, com o olhar longe. Lembro que eu não aguentei mais de sono quando era quase quatro da manhã, então viemos para o quarto. Agora eu já não sei se eu estou com a minha cabeça explodindo de dor de cabeça por causa das poucas horas de sono ou se por causa da quantidade de informações jogadas de uma só vez em mim. Talvez seja os dois, e com esse pesadelo, as coisas não parecem estar favoráveis hoje.

Me levanto e caminho até o banheiro, procurando por ele; nenhum sinal. Vou até a sala, depois até a cozinha; também não. Suspiro fundo ao pensar que ele talvez tenha ido embora antes mesmo de amanhecer, talvez pra assimilar a situação de ontem sozinho. Talvez eu ficar sabendo agora não foi a melhor coisa do mundo pra ele. E o pior de tudo é que ele possa estar com vergonha, ou com medo da minha reação.

Tomo um banho sem pressa e me visto para ir trabalhar. Samuel provavelmente deve voltar só no início da tarde, então eu posso ficar um pouco a sós pra poder pensar direito agora. Eu odiaria ter que explicar pra ele algo que não se pode ser explicado. Daria uma desculpa qualquer, como uma briga boba com ele, por não querer me falar o que aconteceu na festa? Ou talvez eu invente que a mulher era uma ex funcionária que estava enchendo seu saco por danos morais. Mas o fato é que eu odeio mentir, ainda mais para o meu melhor amigo, só que eu não posso contar o que realmente aconteceu, sendo que não era nem para eu mesmo ficar sabendo de tudo. Mastigo e engulo um sanduíche no modo automático e pego minhas coisas, o coração acelerado pra ao menos encontrar Gustavo na agência. Lá ele não vai ter escapatória, vamos ter que se ver e eu vou poder mostrar que ele não tem nada do que se envergonhar. Enquanto desço ate o carro, tento ligar pra ele, mas ele não atende. Será que está dormindo ainda? Ou está a caminho do trabalho?

Após pegar um trânsito chato por causa do horário de pico, chego alguns minutos atrasado na agência. Logo depois da porta giratória, Amanda está abastecendo a multifuncional com papel.

- hey.

- e aí, gatão! Como você tá?

- bem. – finjo meu melhor sorriso. Será que eu estou bom o suficiente nisso? – o Gustavo já chegou?

- ainda não. Vocês não dormiram juntos?

- ah não, a gente saiu tarde da festa, acabamos dormindo cada um na sua casa. – em tese, não é totalmente mentira, já que não acordamos juntos.

- entendi. Você leva isso lá pra cima?

- claro. – pego um envelope pardo de sua mão e faço meu caminho para o elevador. Enquanto isso, mais uma tentativa. Dessa vez, caixa postal. É, ele realmente está me evitando. Uma ponta de raiva surge em meu rosto e eu sinto meu corpo esquentar, será que ele não entende que isso não resolve nada? Eu talvez precisasse ser um pouco compreensivo e dar o espaço que ele quer, mas eu não quero deixar ele sozinho, achando que fez a coisa errada em deixar eu saber. Mas por hora, só o que me resta é aguardar.

O dia se passou lento desde que eu percebi que Gustavo não viria trabalhar. Uma nuvem de preocupação começou a rondar minha cabeça, tendo em vista toda a seriedade da situação.

Só quando eu risco o último número da lista de clientes a ligar e avisar que os empréstimos solicitamos não foram aprovados e ouvir uma boa dose de xingamentos e reclamações é que eu respiro aliviado por estar indo embora. Pego minhas coisas e passo por Duda, que desde nosso atrito não tentou mais conversar comigo, o que pra mim é ótimo. Saio da agência e observo o céu nublado, logo depois de verificar meu celular pela centésima vez. Gustavo não tentou falar comigo o dia todo, não mandou uma mensagem sequer. Eu poderia muito bem entrar no carro e ir pra casa, dar o espaço que ele tanto quer e esperar que ele venha conversar, mas eu, no fundo do meu orgulho e da minha chateação, há uma preocupação alarmante, que não vai parar de me corroer até eu ir até lá, na casa dele, saber se está tudo bem.

Uma garoa fina começa a molhar meu para brisa enquanto eu sigo pela avenida, então meu celular quebra o pseudo-silêncio, se não fosse pela chuva e por meus pensamentos barulhentos. Meu peito se aperta ao pensar que Gustavo finalmente havia lembrado da minha existência, mas quando eu pego o telefone, é uma mensagem de Samuel.

"Onde você tá? Tá tudo bem?"

Pelo visto, eu estou reclamando de algo que eu também acabei fazendo, não dando notícias minhas para ninguém desde que saímos da festa ontem. Coloco o celular de volta no console e penso em responder depois que eu tiver falado com Gustavo, até mesmo porque eu já vou estar com meu humor melhorado, me poupando de explicar meu tom de voz estressado, como o de agora.

Chego em frente à casa de Gustavo e giro as chaves, desligado o motor e ouvindo a chuva ficar um pouco mais forte. Hesito por alguns segundos antes de sair, pensando que talvez vir até aqui não seria uma boa ideia, mas me conhecendo do jeito que eu me conheço, eu não conseguiria me aquietar até pelo menos vê-lo. Corro até a área coberta e aperto a campainha, sentindo a antecipação correr viva em minhas veias. Só agora que eu paro pra pensar que parte da minha inquietação era por pura saudade. Aperto mais uma vez a campainha, então a porta se abre e revela um Gustavo suado, com o cabelo úmido da chuva e com roupa de ginástica.

- ei! - Seu rosto permanece sem emoção nenhuma, ao mesmo tempo que não recebo resposta, o que me faz pensar que talvez teremos uma conversa difícil pela frente. – posso entrar?

- claro.

Ele abre passagem, eu entro e espero-o fechar a porta. A casa está em um silêncio irritante, nem mesmo a chuva lá fora pode ser ouvida com clareza por causa das paredes grossas.

- tava correndo?

- é, fui correr um pouco no parque, aproveitar o tempo nublado, ficar um pouco sozinho.

Engulo em seco a última frase. Será uma indireta por minha insistência?

- quando eu acordei você não tava mais lá. Fiquei preocupado. Você tá bem?

- to ótimo. Por que não estaria? – sua voz sai um pouco mais alta, enquanto ele se afasta em direção ao bar. Vejo-o pegar a garrafa de whisky e um copo pequeno.

- você não foi trabalhar hoje...

- é, eu tava com algumas folgas pra tirar. – então, em um grande gole ele toma todo o conteúdo do copo. Gustavo está um pouco agressivo, monossilábico. Seu modo de defensiva não é dos mais agradáveis. Tento buscar alguma coisa pra falar e tentar suavizar a situação, mas vejo que não tem como adiar o assunto.

- Gustavo, eu fiquei preocupado por ontem. Queria que você soubesse que eu não...

- não precisamos tocar nesse assunto, Arthur.

- não, mas eu quero...

- mas eu não quero.

Mais uma tentativa, mais hostilidade. Eu sinto minhas bochechas ficarem quentes e minhas mandíbulas se enrijecerem, então eu não consigo sustentar mais seu olhar duro em minha direção.

- eu só queria que você soubesse que você não precisa mais passar por isso sozinho. Eu não vou te julgar, não vou condenar o seu passado. Eu sou seu namorado, e eu to aqui por você.

- ah Arthur, isso é muito gentil da sua parte, mas eu não preciso disso. Você age e pensa como se estivéssemos em um conto de fadas, onde eu sou um príncipe perfeito. Mas as coisas não são assim. – mais um gole e lá se vai outro copo. - Na verdade, eu já te entendi. Você vem com essa conversa de que me apoia, mas eu sei que você só veio pra transar. – Gustavo me puxa para um beijo, eu sinto seu hálito forte de álcool e o empurro pra longe.

- que? – a resposta é automática e ríspida, já que eu não consigo acreditar na merda que eu acabei de ouvir. – que droga e essa, Gustavo? Eu vim aqui ver como você tá! Eu passei o dia inteiro preocupado com você.

Sinto que minha raiva começa a se transformar em vontade de chorar, mas eu aguento firme.

- bom, você veio e viu que eu estou tenso. Então vem cá, alivia minha tensão. Você só serve pra foder, Arthur. Deixa que as terapias e psicanálises eu me viro com outra pessoa.

Mais uma tentativa de se aproximar, mais um empurrão, dessa vez, ainda mais forte. Sinto que estou começando a perder o controle, meu sangue fervendo nas veias e a vontade de bater em Gustavo só aumentando a cada fração de segundo. É tudo tão rápido, eu fecho meus punhos e sinto meus pés querendo avançar em sua direção, mas um vestígio de bom senso me faz ficar preso no lugar. Ao invés de brigas, apenas a vontade de chorar. Suas palavras entram em meus ouvidos e parecem quebrar cada centímetro do meu corpo, de dentro pra fora.

- então quer dizer que eu sou uma espécie de garoto se programa pra você. Só sirvo pra sexo. –Mantenho o mais calmo tom de voz, com o máximo de esforço possível, enquanto ele não responde nada. Com isso, um sorriso de raiva surge em minha boca, e a primeira lágrima escorre teimosa do meu olho. Droga! Eu não quero chorar, não na frente desse filho da puta. – se eu sou um garoto se programa, eu não preciso disso. – puxo a chave do carro do meu bolso e jogo em cima da mesa, fazendo um barulho alto no ambiente.

Seus olhos acompanham meus movimentos, enquanto reviro meu outro bolso e pego a gravata que ele havia me emprestado pra festa. A coloco ao lado da chave, então sinto que eu preciso ir embora antes que eu fale coisas que eu possa me arrepender depois.

- vou pedir pro Samuel trazer mais tarde as outras coisas que você me deu.

- Arthur, para com isso.

- não! Não, Gustavo. Não fala nada. Não quero nem ouvir a porra da sua voz. – Outra vez, meus olhos se umedecem. Mas agora eu o olho firme, pra que ele veja o que ele acabou de fazer. Me viro e caminho em direção à porta, parecendo que tudo isso era algum tipo de pesadelo louco que eu estava querendo acordar e não conseguia.

- deixa eu chamar um taxi pra você, pelo menos.

Me viro lentamente pra ele de novo, observando-o com o olhar devastado, parecendo que finalmente ele teve um vestígio de consciência pelo que ele acabou de falar.

- deixa que eu vou de ônibus. Você não precisa se preocupar com isso. Era só sexo, lembra?

Então, saio para o ar gelado da rua, onde já havia anoitecido e eu nem havia percebido. Bato a porta com um pouco mais de força do que o necessário, então caminho em direção à saída do condomínio, agora aliviado por poder chorar em paz, sozinho. Se eu tiver que pegar ônibus pra ir embora, vou chegar muito tarde. Minha única alternativa é ligar pra Samuel, mesmo que isso signifique que ele me veja assim, o que definidamente não era algo que eu queria.

Disco seu numero e espero ele atender. Na outra linha, sua voz preocupada logo me enchia de perguntas:

- cara, onde você tá? To tentando falar com você o dia todo, Arthur, que droga!

- eu sei, eu só... Você pode vir me buscar?

- você tá chorando? Arthur, você tá bem? – minha voz não consegue esconder nada. Me sinto um idiota por isso.

- to, eu só preciso que você me busque aqui no condomínio do Gustavo. Vem rápido, por favor.

Eu mal termino de falar e Samuel desliga o telefone. Isso significa que ele está vindo mais do que correndo pra cá, o que eu honestamente agradeço. Tudo o que eu preciso é ir embora daqui e, de preferência, não ver Gustavo nunca mais na minha frente.

Comentários

Há 5 comentários.

Por Luã em 2017-05-02 01:37:27
Oi gente! Primeiro de tudo me desculpem pela demora, sei que faz quase um mês desde a última vez que eu não posto aqui, por isso vim me redimir e logo postei dois capítulos de uma vez só! Espero que eu seja desculpado >.< E obrigado pelo carinho de sempre, o fato de vcs estarem aqui comentando e interagindo com a história é incrível e me dá muita força pra continuar fazendo o que eu gosto. Todos vcs, dos mais antigos até os mais novos, o meu muito obrigado! Me contem o que acharam nos comentários! Ficarei esperando ansiosamente. Beijos! <3
Por Eu Mesmo em 2017-05-01 21:37:09
Estou amando o seu conto. Agora neste ponto a estória toma contornos de realidade, quando mostra o quanto uma boa parte da humanidade é egocêntrica e orgulhosa. Mas mostra também que uma outra grande parte é boa e pura como o Arthur. Na verdade temos sempre que desconfiar que nem sempre não existe lanche grátis. Muitas pessoas como o Gustavo inconscientemente agem feito ele e depois quando a fixa cai pode ser tarde. Ainda bem que o Arthur tem caráter, vai lutar e vencer sem precisar da ajuda desse babaca, e ai ele vaia aprender e descobrir o que é o verdadeiro amor que vai muito além dos bens materiais. Infelizmente o Gustavo teve um inicio de infância pobre e deu um salto para um mundo de deslumbrados, que muitas vezes a riqueza desmesurada nos proporciona. Espero que eles acabem bem. Mas no fundo eu gostaria que o Arthur ficasse como Samuel que certamente ainda vai passar o seu mal pedaço também com o Diego.
Por Andradepreto em 2017-04-21 11:03:38
E normal demorar? To morrendo pra poder ler o próximo cap. Parabéns ao escritor.
Por Guerra21 em 2017-04-12 15:27:31
Na moral Gustavo vc pegou pesado, tadinho do Arthur ele tava entre a cruz e a espada, eu vou ou não vou, então ele foi! O imbecil do Gustavo falou merda se eu fosse o Arthur eu não perdoaria ele, o cara chamou ele na cara dura de prostituta, affs meu coração veio abaixo depois de lutar pela conquista faz isso com o coitado, ahn? Na moral muito triste mesmo.
Por edward em 2017-04-12 15:12:05
Nossa ! Emoções a flor da pele ! Pelo visto o clima azedou ,mas isso é meio que normal ! Aguardo ansioso o próximo capítulo ! Bjs