01. Ares de mudança, olheiras e TCC

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série Proibido

Olho pra mim mesmo com frustração pelo espelho. Ficar até tarde ontem à noite terminando meu trabalho de conclusão do curso não foi nem de longe uma boa ideia, justo quando eu começaria em um novo emprego no outro dia de manhã. Suspiro fundo ao olhar para minhas olheiras e desisto de me importar. O que está feito, está feito. Arrumo as mangas da minha camisa cor de café de forma que elas fiquem ajeitadas acima dos cotovelos, e por fim dou um último retoque no meu cabelo e borrifo um pouco do meu perfume no meu pescoço. Passo pela porta do banheiro e avisto Samuel na mesa da cozinha, com seus olhos azuis e grandes compenetrados na tela do seu notebook, provavelmente acordado a noite toda terminando seu Tcc, assim como eu.

- bom dia. - tento uma aproximação, esperando que ele ao menos pisque e se desconecte um pouco do que ele está fazendo, enquanto passo por trás dele e vou até a cafeteira me servir.

- bom dia? Não tenho tanta certeza assim.

- Tcc?

- uhum.

- também fiquei até tarde terminando o meu.

- e como você conseguiu acordar? - ele finalmente tira os olhos do editor de texto e se vira pra mim. - Arthur, você tá um bagaço.

- sinceridade definitivamente é um dos seus pontos fortes. - digo enquanto me sento na mesa junto com ele. - tá aqui na cozinha faz tempo?

- não, vim pra cá faz pouco tempo. Me bateu fome aí eu trouxe meu carma junto comigo. - diz ele, revirando os olhos. - mas por que você ficou até tarde? Não tava quase tudo pronto?

- tava, mas meu notebook deu pau e apagou, tipo, umas 10 páginas. Tive que refazer o que eu perdi. - só de lembrar disso, fico frustrado. De todos os dias em que eu precisei desesperadamente do meu computador funcionando direito, justo ontem ele resolveu me sacanear.

Arrumo um pão com manteiga e tomo meu café preto o mais rápido possível, pois estou quase atrasado pra sair. Depois de comer, vou até o quarto e pego minha mochila e me despeço de Samuel, que me deseja sorte enquanto briga com o notebook enquanto eu saio pela porta.

O ar frio faz eu estremecer ao sair pela porta do prédio, indo em direção ao meu Chevette branco ano 93, estacionado na primeira vaga da garagem coberta. Assim que entro nele, o ambiente aquecido me faz ficar aliviado, enquanto eu ligo o sistema de ar quente para ficar um pouco melhor. Olho pelo espelho retrovisor e minhas bochechas estão lá, avermelhadas pelo frio, como eu pensei. Elas ficam assim por qualquer motivo, então logo pensei que ficariam assim pela corrente de ar gelado que eu tomei no curto caminho até o carro. Está fazendo bastante frio aqui em São Paulo, deixando tudo ainda mais cinzento e nublado. Dou a ignição e o motor ruge pra vida, pouco antes de eu ligar o rádio em uma estação qualquer para passar o tempo que eu tomarei de Vila Mariana até a outra ponta da avenida paulista, onde fica agência. O trânsito, para minha surpresa, não está tão lento quanto eu imaginava, então logo eu estou rodando pelos arredores do banco, para achar alguma vaga para estacionar. Feito isso, caminho a passos largos até chegar no prédio de quatro andares, feito em aço e vidros espelhados, com traços elegantes e contemporâneos, com uma placa relativamente grande contendo o nome do banco em branco e vermelho. Olho até o topo do prédio e dou uma suspirada profunda.

"Essa é a chance de ouro." - exclamo em pensamento.

Ter conseguido essa indicação de estágio pela faculdade é muito mais que gratificante pra mim. Estou terminando o curso de economia e tendo a chance de me infiltrar em um dos maiores bancos do país, e como se não bastasse isso, em uma de suas maiores agências na cidade, bem na Paulista. So espero que eu consiga me sair bem no meu primeiro dia, o que eu honestamente não acredito muito, já que eu venho lutando contra bocejos e olhos pesados desde o caminho de casa.

Passo um pouco nervoso pelas portas enormes de vidro da entrada da agência, me deparando com uma sala de autoatendimento com no mínimo 20 caixas eletrônicos distribuídos nas laterais e no fundo do salão, onde no centro estão as três portas giratórias para a entrada da agência. Há várias mesas relativamente grandes com panfletos e envelopes de depósitos, tudo impecavelmente arrumado e organizado. Coloco minha carteira, chaves e celular no compartimento de plástico e giro pra dentro do banco, onde um simpático vigilante me deseja bom dia e eu lhe explico, um pouco atrapalhado demais, por conta do nervosismo, que eu começo a trabalhar hoje na agência e que precisava de ajuda para me localizar. Ele sorri e me indica ir até uma das recepcionistas e então ela me levaria até onde eu precisava. Penso que seria de muito bom senso terem me explicado tudo na minha entrevista, mas não o fizeram, então eu tenho que estar parecendo ainda mais atrapalhado, chegando sem nem saber aonde ir. Fazendo o que me foi dito, vou até uma mulher aparentando no máximo 21 anos, com cabelos castanhos lisos longos, sentada atrás de uma bancada de mármore escuro, mexendo em seu computador, bem próximo a máquina de senhas.

- bom dia.

- bom dia, em que posso ajudar?

- hum, meu nome é Arthur, eu sou o novo funcionário do banco.

- ah sim, Arthur! Bem vindo. - seu rosto se ilumina enquanto ela se estica na cadeira, me estendendo o braço para um aperto de mãos. - como você está?

- bem, obrigado. Só um pouco perdido, pra ser sincero.

- não esquenta, deixa que eu te levo lá em cima.

Ela dá a volta por trás da parede de tijolos de vidro e aparece ao meu lado, indo em direção oposta à da entrada, o que me faz pensar que eu devo segui-la. Passamos por uma escada de madeira envernizada larga e imponente, chegando até a parte dos elevadores. Estamos apenas eu e a moça, que parece estar um pouco tímida, apesar de tentar ser o mais simpática possível.

- você não me disse seu nome. - eu ergo a cabeça pra ela, lhe lançando um sorriso amistoso, enquanto ela joga um tentáculo do seu cabelo pra trás da orelha.

- é Amanda.

- você trabalha aqui faz tempo?

- pouco mais de um ano. - finalmente consigo ver um sorriso nela e sua expressão se suaviza.

- e como é trabalhar aqui?

- bem estressante na maioria das vezes, mas é legal. Você que é sortudo, vai trabalhar aqui em cima.

- sortudo? Por que?

- aqui é mais tranquilo, e não me leve a mal, mas os funcionários mais gatos da agência trabalham aqui. - ela me olha ruborizada de repente, parecendo que deixou escapar algo que não devia, então ela começou a tentar falar alguma coisa rápido demais, tentando se explicar.

- não que você note essas coisas, eu só... me desculpa, foi um pensamento em voz alta.

Eu começo a rir, e vejo que ela está ainda mais vermelha.

- tudo bem Amanda, eu noto sim. Eu também jogo no seu time.

Ela me olha com os olhos semicerrados, como quem me avalia.

- eu sabia. Meu radar não falha.

Começamos a rir e eu acho que acabei de achar a primeira pessoa que eu simpatizo por aqui. A cabine para e as portas se abrem para um ambiente onde tudo é muito claro e arejado, com a parede logo adiante tomada por uma grande janela, nos revelando a avenida paulista, o céu nublado de São Paulo e a correria das pessoas lá fora.

Olho para o outro lado e vejo varias repartições de vidro, muitas pessoas trabalhando em suas mesas, mexendo em papéis e em seus computadores. Acompanho Amanda, que anda com seus saltos clicando e ecoando pelo piso claro de arenito até quase outra bancada imponente, logo adiante, com outra mulher mais ou menos com a mesma idade.

- Duda, esse é o Arthur, nosso novo colega. Ele vai trabalhar com vocês aqui em cima.

- oi Arthur! O pessoal tava comentando sobre você agora a pouco. Vem, eu vou te mostrar onde é a sua mesa.

Eu me despeço de Amanda e sigo com Duda, que me joga um monte de perguntas apressadas enquanto eu estou um tanto pensativo.

- por que o pessoal estava comentando de mim agora a pouco? - minha pergunta interrompe-a, que ainda não havia terminado de falar.

- bem, é que você vai se sentar bem ao lado da sala do gerente geral. E sabe como é, não é todo mundo que gosta disso.

- mas por que?

- bem, digamos que ele não tem um temperamento muito fácil de se lidar. Você vai ser a pessoa mais perto dele aqui, já que ninguém senta naquela mesa, então acho que automaticamente você vai descobrir. Tudo o que eu posso te dizer é que os últimos três funcionários que passaram por aqui e que ocuparam o lugar que agora é seu, foram transferidos para outras agências.

- por causa do...

- exatamente.

- mas ele não pode ser tão ruim assim.

- acredite, ele é um ótimo gerente. Mas é difícil lidar com  ele. Todos aqui tem medo dele.

Chegamos em uma espécie de saleta privada, com uma mesa redonda de reuniões, uma mesinha com uma garrafa térmica com café, alguns copos descartáveis e algumas revistas de economia, logo ao lado de uma porta larga, onde eu não consigo deixar de espiar e ver a placa metálica dizendo "gerente geral" em cima da mesa. Isso faz minha bile subir. Esse é o cara que vai sentar bem ao meu lado. E eu nem sei como ele é. Mas já consigo imaginar.

Aposto que ele é um homem de quarenta e tantos anos, careca, carrancudo e com barriga saliente, que fala rápido demais e vai tentar fazer o possível e o impossível pra me deixar nervoso e passar vergonha a todo o momento, fazendo eu me sentir sem confiança e ser tachado como idiota. Engulo em seco enquanto damos a volta e chegamos na mesa ao lado da repartição de vidro, onde a única mesa vazia me espera de braços abertos. Ela me apresenta brevemente para meus colegas ao lado e depois, ao ver que não é preciso mais fazer nada, se despede.

- bem, eu vou te deixar arrumar suas coisas aí. Quando terminar me chama para eu te apresentar para o resto do pessoal.

- tá legal. Obrigado, Duda.

Ela agradece e gira em seus calcanhares, desaparecendo logo em seguida. Eu olho para o lado, enxergando através da repartição de vidro, a mesa vazia do gerente geral. Sem saber muito o motivo, eu começo a ficar inquieto para conhecê-lo. Talvez eu ache que não seja tão ruim assim e que ele apenas seja sério e exigente, o que é totalmente compreensível para o cargo que ele ocupa. Me sento e começo a organizar minhas coisas em minha mesa, grande até demais para mim, eu penso.

Agora são quase 9:30 da manha e eu estou indo de volta até a Duda para ela me apresentar a todos. Já começo a torcer em pensamento para que eu não fale algo muito estupido, não fique com as minhas bochechas vermelhas ou não gagueje ao me apresentar para as pessoas. Um a um, começo a conhecer todos os meus colegas do setor de Pessoa Física/Habitacional do banco. São todos realmente muito simpáticos, só que ninguém fala mais do que Duda, que parece me conhecer a há séculos e fala mais de mim mesmo do que eu, mas de um certo modo isso até que é legal. Isso me salva dos perigos de ter que se auto introduzir para algumas dezenas de pessoas enquanto se está internamente morrendo de sono por causa de um maldito TCC. Passado a parte de apresentações e de "oi, tudo bem, eu me chamo Arthur e eu não sei mais o que dizer para que eu soe inteligente", eu volto para a minha mesa e começo a configurar com minha senha nova de acesso. O restante do dia eu sou amparado por meus colegas da mesa ao lado, que me indicam o que fazer e me explicam como o fazer, e então eu acho que começo a me sentir um pouco mais a vontade. Não posso deixar de notar que a mesa do outro lado da repartição permaneceu vazia o dia inteiro, o que me intrigou. Onde será que ele está? Logo após o banco fechar, estou retornando do banheiro quando Duda me pede para deixar alguns documentos na mesa dele. Logo ao entrar, posso ver seu nome, escrito em letras pequenas, logo abaixo das letras grandes onde está escrito "gerente geral". Na placa, na verdade está escrito "Gustavo, gerente geral".

"Gustavo." Esse então é o nome do senhor gerente amedrontador e imponente. Meu estômago se revira ao pensar que eu estou ansioso demais para conhecê-lo.

Comentários

Há 2 comentários.

Por Elizalva.c.s em 2017-04-03 13:25:35
Estou gostando,pretendo acompanha até o final.parabéns.😘😘😘😘
Por J.D. Ross em 2017-01-25 15:04:06
Estou gostando, você escreve muito bem, ótimo com os detalhes. Meus parabéns!