Uma nova esperança (último capítulo)

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série O garoto da mesa 09

O letreiro grande em cinza claro metálico escrito “AEROPORTO INTERNACIONAL SALGADO FILHO Terminal 1” faz meu estômago revirar enquanto o taxi faz a curva e segue até à frente da grande porta automática do prédio enorme e com aspecto cinzento. Felipe me ajuda a desembarcar enquanto o taxista pega nossas coisas no porta malas, e depois de agradecer e pagar a corrida, Felipe vem até a mim.

- vamos?

- vamos. – digo ao suspirar fundo, tentando controlar meus nervos. Minhas mãos suadas empurram as rodas da cadeira para dentro do aeroporto, que me traz um ar diferente daquele chuvoso e frio onde eu estava até um segundo atrás. O movimento de pessoas é pequeno, já que estamos no meio da semana e no meio do mês, sem nada em especial para se lotar o lugar. Mas mesmo sendo um dia tão comum para a maioria dos porto-alegrenses, para mim é um dia decisivo. Estou partindo pra Miami, realizar minha cirurgia. Deixo escapar um sorriso bobo só de pensar nisso. Santo Cristo, são tantas possibilidades, tantos pensamentos que me vem na cabeça e me fazem ficar esperançoso. Eu preciso me aquietar, ou vou acabar passando mal.

Seguimos de elevador até o pavimento superior, onde Felipe compra um café para ele e uma água pra mim.

- tem certeza que não esqueceu de nada? – ele me questiona pela décima vez na última hora, enquanto se senta na mesa e coloca seu celular perto do meu.

- tenho, Fê.

- pegou todos os exames? O endereço, tudo?

- peguei. – digo contorcendo um riso, fazendo ele arquear a sobrancelha.

- só não quero que você esqueça nada, afinal entre Porto Alegre e Miami há uma distancia grande.

- eu sei. Por isso chequei tudo com antecedência.

- tá ansioso? – ele me fita enquanto passa seu dedo indicador pela xícara, soando despretensioso.

- não tanto quanto eu achei que estaria. Eu to confiante, mas to tranquilo.

- vamos conhecer Miami juntos. É uma espécie de aquecimento da lua de mel.

Enquanto ele beija minha mão, eu relembro da loucura que foi aquele dia. Aquela declaração, o flash mob, todos vendo, caramba. É uma lembrança muito intensa. Agora eu e Felipe estamos noivos. Noivos. Dá pra acreditar?

Felizmente o tempo que faltava para começarmos o embarque não demorou pra passar, então começamos todo o procedimento de despacho das malas, check in e toda aquela burocracia de um voo internacional. Já na aeronave, uma enorme e aparentemente mais antiga, da American Airlines, pude perceber que alem das duas fileiras com dois assentos em cada lado, há mais uma fileira no centro com três assentos cada. O aspecto mais antigo no começo me faz ficar com um pé atrás, mas é tudo bastante seguro. Só a única coisa que não me agradou foi a falta de sistema de entretenimento, justo para um voo tão longo. Nesse momento eu fico aliviado por ter trazido meu livro comigo. O avião sai do aeroporto por volta do meio dia, com o tempo nublado, mas agora sem chuvas. Enquanto ganhamos altitude, vejo Porto Alegre ficar mais longe e mais pequena, me dando um pequeno aperto no peito. Um aperto pela incerteza, pela esperança e pelo medo. Tudo junto, um misto de sentimentos intensos me nocauteando e me fazendo pensar que quando eu estiver de volta, de um jeito ou outro, tudo vai ser diferente.

Quando já estamos estabilizados, no céu cinzento e denso acima das nuvens, Felipe pega em minha mão, me fazendo olhar para ele automaticamente.

- vai dar tudo certo, meu amor. – parece que ele sempre consegue sentir quando eu estou angustiado.

- eu espero que sim. – lhe lanço um olhar sincero, enquanto meu coração está batendo rápido.

Felipe então encosta sua cabeça na poltrona e fecha os olhos, fazendo com que eu automaticamente olhe pela imensidão ao meu lado.

“É, vai ser uma longa viagem.” – exclamo em pensamento. Então, pego meu livro e decido distrair minha cabeça, fazendo o tempo passar mais depressa.

__

Desperto do meu cochilo com o comandante anunciando nosso pouso no aeroporto de Miami. Olho para fora da janela e avisto o céu de um azul intenso e quase sem nuvens. Abaixo de nós, a cidade com muitos prédios e casas, alguns lagos pequenos espalhados e um letreiro enorme escrito “Welcome To Miami” feito na grama, nos dois lados de uma das várias rodovias próximas ao aeroporto, cortadas por muitos viadutos que mais parecem formar um labirinto de concreto. Quando as rodas do avião pousam em solo americano, sinto meu coração pulando não só pela turbulência pelo choque com o chão, mas também pela ansiedade de estar prestes a realizar um sonho.

Eu e Felipe ficamos por último, para os comissários poderem me ajudar a me transferir da poltrona para a minha cadeira, então seguimos para fora do avião, andando por um corredor longo que nos leva direto para dentro do aeroporto.

Depois de pegar nossas coisas, procuramos por um táxi e vamos para o nosso hotel. Logo ao chegarmos, fico impressionado pela beleza do prédio, que apesar de bastante simples, parece aconchegante. Há quatro andares, distribuídos em uma construção pintada em creme. Foi um grande feito ter conseguido esse lugar, considerando o preço médio da diária em comparação aos outros hotéis. Além disso, o motorista nos fala que estamos em uma ótima localização; bem no centro da cidade e a 5 minutos de carro do Porto de Miami. Somos muito bem recepcionados na entrada, onde um simpático funcionário nos ajuda a levar as malas até o quarto.

Assim que ficamos a sós, Felipe se joga de braços abertos na cama de casal, abraçando o travesseiro e depois jogando-o em mim.

- olha só esse lugar! – ele exclama, maravilhado.

Vou até a janela do quarto e fico admirado com a vista. Não há nada demais, apenas a rua com os carros passando lá embaixo, algumas pessoas na calçada e outras construções no horizonte. Mas há algo mágico nessa cidade. Não só a beleza encantadora em cada canto, mas é aqui que eu estou agora, prestes a tentar uma mudança.

Enquanto Felipe começa a desfazer as malas, eu ligo o notebook e conecto ao Wi-Fi, entro no facebook e mando uma mensagem para minha mãe, para avisar que chegamos bem. Feito isso, me junto à Felipe no banheiro e admiro outra bela vista. Mas essa não tem nada a ver com Miami. Essa é a minha vista particular. Felipe está de costas pra mim, sem nenhuma roupa, deixando a mostra seu corpo lindo, suas costas largas, bunda redonda e pernas grossas e peludas. Em um movimento rápido ele entra na banheira e, ao sentar, me percebe na porta, assustando-se.

- ei.

- ei. – ele me olha tímido. – eu acabei esquecendo de ver sobre o banheiro. Vai ser mais complicado pra você tomar banho. – ele fala com um tom de culpado, como se se desculpasse.

- não tem problema, a gente dá um jeito.

Vejo ele mergulhar na água, emergindo novamente em segundos, passando a mão nos cabelos e jogando-os pra trás. Me aproximo dele, ficando ao seu lado.

- como tá a água?

- boa. – ele coloca suas mãos nas bordas da banheira, fechando os olhos. – quer tomar banho comigo?

- seria ótimo. - mordo meus lábios levemente, fazendo-o pressionar a mandíbula, me encarando.

Eu então começo a tirar minha roupa, quase como querendo me livrar dela, então um tempo depois também estou nu. Felipe se levanta da banheira e me pega no colo, fazendo eu soltar um riso involuntário e um grito pelo choque com a água logo depois, mas eu me acostumo logo. Fico em sua frente, encaixado em suas pernas enquanto ele alisa meus cabelos.

- obrigado.

- pelo que?

- por tudo. - digo ao pegar sua mão. – por se empenhar pra que essa viagem acontecesse, por me encorajar, por tudo.

- eu te amo, Edu. Se você estiver bem, eu também estou. Simples assim.

Ele termina de falar e se move pra frente, me plantando um beijo na nuca, fazendo eu me arrepiar. Esse é um momento do qual eu quero guardar na minha mente.

Depois de tomar um banho relaxante, eu e Felipe decidimos sair para conhecer os arredores. Está fazendo uma noite linda e seria um desperdício de tempo ficarmos trancados no hotel.

As ruas do centro estão lotadas de gente, praticamente todos os lugares abertos estão lotados, a maioria eu presumo que sejam turistas como nós. Estamos com sorte que hoje é uma sexta feira à noite, então lugares para ir não faltam. Caminhamos várias quadras, encantados com todos os detalhes de uma nova cultura. Essa é a primeira vez que eu visito os Estados Unidos, e é a primeira vez que eu viajo pra tão longe. Até a um tempo atrás eu nunca tinha saído nem da minha cidade e agora eu estou em Miami. Isso é muito surreal pra mim. Paramos em uma hamburgueria para jantar e acabamos fazendo amizade com a garçonete, que também é brasileira e esta morando na cidade há menos de um ano. Depois de conversarmos um pouco e de terminarmos de comer, voltamos para o hotel, já que apesar da euforia por estarmos aqui, o cansaço uma hora chega, ainda mais com uma viagem cansativa como a nossa.

_

É de manhã cedo e tateio por Felipe na cama, mas não o encontro. Com um olho aberto e o outro fechado, começo a procurá-lo pelo quarto, então avisto ele saindo do banheiro com a toalha enrolada na cintura, os cabelos molhados e arrepiados.

- bom dia dorminhoco.

- bom dia – mio com a voz falha, me espreguiçando. – tá acordado faz tempo?

- mais ou menos, liguei pra recepção e pedi pra trazerem o café da manhã pra gente aqui.

- que eficiente você. – digo me sentando na cama, enquanto ele deixa a toalha cair e me dá um sorriso sedutor, enquanto se vira e procura por uma cueca em suas coisas.

- já sabe o que vamos fazer agora pela manhã?

- tava pensando da gente sair aqui perto pra conhecer melhor. Ontem foi meio corrido.

- por mim tá ótimo.

Ouço alguém bater na porta e anunciar o serviço de quarto, então Felipe veste uma bermuda e atende. É o nosso café da manhã. Ele agradece ao rapaz e fecha a porta, trazendo a bandeja até a cama e se sentando do meu lado.

- tá com fome?

- um pouco.

- sabia que você é lindo de manhã? – ele me olha fundo no olhos, a expressão apaixonada. – seus olhos pequenos, o cabelo bagunçados.

- ah sei. – falo com desdém.

- eu falo sério.

Sinto ele afagar minhas bochechas com as costas das mãos, então recebo um beijo.

- vamos ver o que temos aqui. – ele começa a analisar nosso café, então pega uma torradinha e serve uma xícara de café, que veio em um bule de porcelana branca. Ele faz o mesmo pra mim e depois coloca açúcar.

- que horas que é a sua consulta mesmo?

- as 13:30. – falo depois de tomar um gole do meu café.

- tá ansioso?

- bastante.

Não tinha como negar. É a minha primeira consulta, o primeiro passo de todos aqui em Miami. Depois de terminar, saio da cama e vou lavar meu rosto e escovar os dentes. Visto algo confortável e depois vejo Felipe, tão jovial com aquela camiseta básica vermelha, bermuda de nylon listrada e chinelos, e seu óculos escuro nas mãos. Descemos algumas ruas e logo encontramos nosso primeiro ponto de parada. Bem perto do Leamington fica o Bayside Marketplace, um shopping a céu aberto muito conhecido da cidade. Eu e Felipe começamos a rodar pelas lojas espalhadas pelo lugar, todas à beira mar, enquanto vemos algumas embarcações pequenas ancoradas. É uma vista fantástica. E há muito o que se ver. Há lojas para todas as finalidades, que vão desde a loja oficial Disney até Lacoste. Mas a minha realização maior foi quando eu avistei o Hard Rock Cafe, aqui dentro. Eu sempre quis conhecer esse lugar! Acho que acabo de encontrar meu local favorito de Miami. Pareço uma criança, pedindo para Felipe para pelo menos entrarmos para conhecer. A estrutura com todas aquelas luzes e decoração temática me fazem suspirar feito bobo a todo o momento. Há vários quadros e guitarras penduradas nas paredes, e também um grande e majestoso teto de vidro redondo, no centro do salão, iluminando todo o lugar. Como ainda é cedo, apenas tiramos algumas fotos e decidimos voltar à noite para comermos alguma coisa. Após isso, voltamos até o hotel e pedimos o endereço de alguma locadora de carros próxima. Feito isso, fomos até lá de taxi. Como vamos ficar um bom tempo aqui, é mais do que conveniente alugarmos algum veículo. Me impressiona o quão barato são os veículos aqui nos Estados Unidos. Felipe e o funcionário conversam sobre o assunto e nós contamos a ele quanto que sai não só os carros, mas todos os produtos no Brasil, e ele fica boquiaberto com os juros abusivos. Aqui eles ainda têm uma vista bastante positiva do Brasil, embora os veículos de comunicação estejam noticiando a todo o momento a nossa situação real. Mas por trás da alegria, da receptividade e das belezas naturais do nosso país, eles não sabem o quão caótico tudo está, e isso me entristece. Saindo dos meus devaneios, vejo os dois conversando sobre o turismo de Miami e o quão bonita a cidade é, enquanto Felipe assina os papéis da locação. O homem nos pergunta se estamos a passeio e eu respondo que não somente, que também farei a cirurgia. Ele me deseja boa sorte e então vamos até o carro que escolhemos. Pegamos o Chevrolet Spark, o modelo mais em conta que eles possuem, e confesso que é bem charmoso. Pequeno, mas confortável.

- pronto pra conhecer Miami de verdade? – Felipe me pergunta ao sair dirigindo da locadora, com os vidros abaixados e usando seus óculos escuros.

- olha, eu tinha um guia turístico internacional e não sabia.

- eu sou mil e uma utilidades, não sabia? – ele me olha brincalhão.

Então, com a ajuda do nosso excelente guia, e com isso eu quero dizer o GPS, vamos até a Ocean Drive, com a vista de tirar o fôlego da beira da praia de areia quase branca e a água azul turquesa mais ao fundo, onde já logo pela manhã ferve de gente. Como se já não bastasse isso, há ainda seus coqueiros enormes e suntuosos que fecham a vista com chave de ouro. Do outro lado da vista, a avenida nos brinda com inúmeros bares, restaurantes e lojas para todos os gostos. É difícil olhar tudo com atenção, pois tudo fica para trás com rapidez, mas é uma vista linda. Seguimos de volta para o hotel, pois Miami não significa apenas passeio para mim. Preciso me arrumar para minha primeira consulta.

Já de volta ao Leamington, vou direto até minhas coisas procurar por minha pasta de exames e documentos pra levar para o doutor. Me certifico de que não tenha esquecido de nada umas mil vezes antes de colocar tudo em cima da cama e ir tomar um banho. Nesse meio tempo tento acalmar as batidas descompassadas dentro do meu peito. Toda vez que eu deixo minha mente ir até esse assunto eu fico assim. É como se eu não conseguisse controlar. Depois de vestido, pego tudo e eu e Felipe seguimos para a consulta.

__

Assim que passo pela porta, vejo um homem de uns 40 anos, cabelo calvo e sorridente no outro lado da mesa.

- boa tarde Eduardo! Como vai? – ele s levanta da cadeira, ficando com o corpo curvado sobre a mesa, me estendendo a mão. Ele fala português!

- boa tarde doutor. Brasileiro também?

- claro! O que não falta em Miami são brasileiros.

- que bacana! Você está aqui faz quanto tempo?

- há quase 20 anos.

- e de onde você é? – pelo sotaque eu já arriscava ser carioca.

- do Rio! Sinto saudades de lá. Como vai o Brasil?

- já esteve melhor, doutor.

- entendo. Ele é o Felipe? – ele aponta a cabeça pra direção dele, que até agora estava um pouco tímido.

- ah sim, esqueci de apresentar. Felipe,Gilberto. Gilberto, Felipe.

- é um prazer, Felipe.

Lembro-me vagamente de ter mencionado Felipe em alguma das trocas de e-mails que fiz com Gilberto enquanto conversávamos sobre a cirurgia.

- bom, você trouxe todos os exames?

- trouxe. – abro a pasta e tiro todos os documentos, dando para ele em seguida. Ele então começa a folhear e passar os olhos rapidamente por eles.

- bem, estão todos aqui, mas eu vou precisar que você refaça-os aqui em Miami. Vai haver todo um processo de acompanhamento com você, não só da minha parte mas de outras pessoas envolvidas no seu caso. Depois de todos os exames feitos, vamos coletar as células e fazer a cultura delas até elas estarem prontas para a cirurgia.

Ele começa a explicar todo o processo necessário e todos os exames adicionais que eu farei, além dos que eu terei que refazer. Enquanto ele fala, eu finalmente começo a idealizar como será a cirurgia. Caramba, está tão perto. Uma parte de mim quer que o dia da operação chegue logo, para matar logo a curiosidade, mas outra parte tem medo. Mas é tarde demais para temer. Eu já cheguei longe demais para fraquejar.

Olho para o espelho e me acho realmente bonito com a minha jaqueta de couro preta, minha camiseta branca por baixo e minha calça jeans escura. Estou totalmente no clima Hard Rock Cafe, que é para onde eu e Felipe estamos indo agora. Ele está vestindo uma camisa xadrez vermelha aberta, sobreposta por uma branca e uma calça cáqui.

- vamos?

- claro. – digo animado. Mal posso esperar pra realmente conhecer o Hard Rock. A primeira vez nem valeu, mal ficamos lá dentro. Pegamos o carro e fomos direto para o shopping, e depois de achar uma vaga de estacionamento, fomos para o restaurante. Por dentro é ainda mais incrível durante a noite. As luzes de neon, as decorações, tudo parece mais vivo, mais intenso. Arranjamos uma mesa e logo somos atendidos por um simpático garçom, que nos alcança o menu.

Eu peço os classic nachos, enquanto Felipe pede um Original Legendary Burguer.

- esse lugar é... Uau. – Felipe olha em volta, encantado.

- é, eu sei. – minha voz sai acompanhada de um suspiro.

- você foi muito bem hoje, lá no doutor. Parecia muito determinado.

- eu estou com um ótimo pressentimento, Fê.

- isso é ótimo, meu amor. Mantenha o pensamento positivo sempre.

Eu aceno a cabeça e lhe lanço um sorriso de agradecimento. Estar aqui pra mim é sinônimo de esperança. Ter tomado coragem o suficiente pra fazer essa loucura toda, eu espero realmente que eu consiga bons resultados. Mas independente do resultado, está sendo uma experiência única.

Nossos pedidos logo chegam e eu me assusto com o tamanho do hambúrguer do Felipe. É realmente um dos grandes, posso ver o queijo, o bacon e as onion rings saindo pelos lados. Me pergunto pra onde vai tudo isso depois.

- bom apetite. – falo reprimindo um riso enquanto vejo sua cara de satisfação ao pegar o lanche com as duas mãos.

- o tradicional lanche americano.

- só que umas dez vezes maior.

- você acha mesmo que eu vim até o Hard Rock pra comer alguma salada? Eu hein.

- você é um bobo. – agora eu estou com minha mão apoiando meu queixo, o cotovelo na mesa e olhando pra ele sem algum motivo especial, mas ter Felipe perto de mim, me fazendo rir e sendo tão despreocupado com tudo, isso me faz ficar tão calmo, tão tranquilo e tão bem.

O dia amanhece quente e ensolarado novamente em Miami, mas hoje está um pouco mais quente do que o normal. Não são nem 9:30 e eu já estou acordado, vendo Felipe dormir. Sua expressão calma, respiração lenta e seu cabelo bagunçado por estar dormindo de bruços, com a cabeça virada para o meu lado, tudo é tão pacifico. À luz entra pela janela, atrás de mim e ilumina o seu rosto angelical e adulto ao mesmo tempo, com essa barba crescida mas bem cuidada. Acho que poderia ficar vendo ele por horas a fio. Seu celular toca, avisando que há uma nova mensagem, o que faz com que ele se mexa e logo abra os olhos.

- bom dia. – digo já sorrindo.

- bom dia. – ele repete o meu gesto, se esticando e espreguiçando os braços. – acordou cedo.

- fiquei aqui te vendo.

- sério? – ele parece tímido.

- Uhum. É sempre algo incrível.

- sabe o que mais é incrível?

- o que?

- ir na praia de manhãzinha.

- isso me parece uma ótima ideia.

- então vai se arrumando, é pra lá que nós vamos. – ele faz um movimento rápido, me plantando um beijo rápido nos lábios e se levantando da cama, indo direto para o banheiro. Eu me transfiro para a cadeira e vou até minhas coisas pegar alguma roupa confortável pra praia, o protetor solar e outras coisas que podem ser úteis. Depois de nos arrumarmos, seguimos pelas ruas de Downtown Miami até a Ocean Drive, onde o vento balançava as fileiras de coqueiros e bagunçava o cabelo das mulheres e dos homens que caminhavam no calçadão, seja fazendo exercícios ou passeando com cachorros. Estacionamos e fomos direto até a esteira construída em treliça por cima da areia, justamente para que os cadeirantes possam ter acessibilidade na praia. Agora há mais pessoas na areia quase branca, muitas com guarda-sóis, e Felipe está sentado na areia, do meu lado, enquanto a gente olha para o mar imenso e azul turquesa em nossa frente.

- é lindo, né?

- muito. Eu não imaginava que algum dia conheceria um lugar assim. – olho de relance para ele. – como tá a areia?

- um pouco quente, mas é bom. Quer sentar comigo?

- não sei se é uma boa ideia. – olho para os lados, temendo que as pessoas ficassem nos olhando ainda mais por Felipe ter que me pegar no colo.

- deixa de besteira, vem cá.

Então, em poucos segundos ele me aninha em suas pernas, em sua frente, me apoiando e me fazendo ter mais uma sensação inexplicável. Respiro fundo, tomando o ar fresco que vem do mar, enchendo meus pulmões e fechando os olhos enquanto sinto Felipe com suas mãos em minha cintura. De repente, os olhares das pessoas já não me afligem. Estou em um estado de graças nesse momento, algo que eu senti poucas vezes na vida, mas que, estranhamente, Felipe esteve em praticamente todas. Coloco minhas mãos na areia e sinto seu calor, seus grãos pequenos escorrerem pelos meus dedos. O céu está quase sem nuvens, mas as poucas que tem parecem algodão puro, num espaço onde só elas e alguns passarinhos desenham a paisagem.

...

A semana seguinte foi bastante cansativa. Refiz todos os exames que precisava, conheci o Centro de Tratamento Celular, local onde a maior parte do processo será feito, e me admirei por ser tudo tão completo, tecnológico e avançado. Como estou fazendo parte de uma terapia experimental, sou lembrado toda hora que os resultados podem fracassar, mas mesmo assim eu não me desanimo. Sei que apesar de haver poucas chances de recuperação, pelo menos elas existem, e é por isso que eu estou aqui.

Passado toda a parte de exames, laudos e preparação para o dia da cirurgia, chega o dia em que farão a coleta das células, para cultura até que estejam prontas para a operação. Confesso que me sinto uma espécie de cobaia nessa hora, pois acho que é nesse momento que eu me toco da dimensão do que estamos fazendo. É isso e ainda mais animador, apesar de ser estranho.

Passadas duas semanas de burocracias, a cirurgia acaba ficando a apenas alguns dias de distância. Isso está fazendo eu perder o sono todas as noites, pois é inevitável não pensar em absolutamente tudo o que envolve o assunto. Essa é a parte que divide águas na minha vida, não teria como ser diferente. Já estando mais familiarizado com Miami, e agora já conhecendo bastante lugares, os últimos dias eu preferi ficar repousando no hotel, tentando acalmar os nervos e controlar a ansiedade.

- Edu.

- oi Fê.

- vamos sair? Dar uma volta?

- claro. Pra onde?

- surpresa. – ele me olha brevemente, a expressão misteriosa, que me faz arquear a sobrancelha. Mas eu já estou um pouco entediado aqui o dia todo. Agora já está no final da tarde, então tomar ar fresco seria muito bom.

Estamos andando de carro pelas ruas de Miami sem eu saber onde vamos. Começamos a nos afastar das avenidas badaladas, da beira mar cheia de gente e do agito da cidade, chegando em uma parte que eu não havia conhecido até agora. Estamos em uma parte da praia onde está tudo deserto, sem praticamente ninguém na rua. Tudo ainda é bastante cuidado e organizado, mas não há centenas de prédios e bares como na Ocean Drive. O vento forte e o barulho das ondas mais ao longe nos revela um mar agitado, com a água ainda exageradamente azul e com algumas árvores entre a areia e a calçada.

- como você descobriu esse lugar?

- pesquisei na internet algum lugar onde fosse mais calmo. Todos esses dias de badalação acabam fazendo a gente querer mudar um pouco. – ele diz enquanto me ajuda com a cadeira. – e aí, gostou?

- é lindo. – acho que o fato de estarmos sozinhos aqui torna tudo ainda mais perfeito. Agora o vento está um pouco frio, mas não incomoda tanto, mas me faz pegar o casaco no banco de trás antes de seguirmos para a areia. Felipe primeiro pega uma toalha e coloca esticada na areia, em seguida me pega no colo e me leva até lá, me sentando em cima dela e em seguida se juntando ao meu lado. Um silêncio breve se instala entre nós, mas não é constrangedor. Estamos ambos admirando a vista em nossa frente.

- já percebeu como a vida é engraçada?

- como assim? – ele me olha e eu vejo seu cabelo dançando para os lados, por causa do vento.

- tanta coisa aconteceu com a gente no último ano. Éramos amigos, viramos melhores amigos, então começamos a gostar um do outro, mas era proibido. Enfrentamos isso, começamos a namorar, o mundo todo caiu sobre a gente, mas a gente continuou firme e forte. Aí a gente se mudou pra Porto Alegre, começou uma vida nova, mas foi um tanto conturbado no começo. As responsabilidades, morar sozinho, cidade grande, trabalho, faculdade... Aí veio o Caio – nessa hora meu coração se aperta, num misto de tristeza e angústia por tudo o que aconteceu, desde a breve separação entre eu e Felipe, o acidente e até a sua morte, ainda recente. – foi tudo tão rápido, que me assusta. Aí agora estamos aqui, de frente pra esse mar imenso, noivos, eu prestes a fazer a cirurgia. Eu digo, isso parece loucura, né?

- totalmente. Mas é isso que torna tudo tão mais especial. Foi tudo tão incerto, mas fomos tão corajosos e mesmo tendo tantos medos, a gente tinha a certeza do nosso amor. A gente tem. É isso pra mim basta, Edu. Ter você pra mim já basta.

- eu te amo tanto, Felipe.

Mal digo isso e já lhe beijo. Um beijo com necessidade, intenso, mas calmo. Não espero pela resposta, pois não a preciso. Eu sei que ele também me ama, pois ele me prova isso todos os dias. Felipe é o meu primeiro e único amor, e nossos corações pertencem um ao outro, inegavelmente.

- eu quero fazer uma coisa. – ele diz se levantando, batendo as mãos na bermuda e tirando a pouca areia que estava na toalha. – vem comigo.

Ele me pega no colo e me leva de volta até a cadeira de rodas, que está na calçada, perto da gente. Então ele me ajuda a ir até a beira de um coqueiro enorme, de folhas largas e tronco grosso. Então ele pega o seu canivete, o mesmo canivete que ele tinha quando ele me salvou do assalto, e então começa a talhar algo na madeira.

- o que você tá fazendo?

- essa viagem é muito especial pra mim, Edu. Eu sei o quanto você queria isso, queria estar aqui, e te ver realizado é incrível. Então, automaticamente essa cidade se tornou um lugar especial pra gente. Quero deixar nosso nome marcado aqui, pra dar sorte. Vamos ter um lugar especial só nosso em Miami. Aí, quando a gente voltar, algum dia, nosso nome vai estar eternizado aqui. Após falar isso ele continua talhando nossos nomes em um coração, típico de filmes clichês, mas a sensação de se viver um clichê é única, pois é algo que estamos vivenciando na vida real. Estamos em uma espécie de santuário nosso. Um lugar de esperanças, de recomeços, de sorte.

Então, quando ele termina, vejo sua pequena obra de arte pequena, mas visível no tronco da árvore. E é tão lindo, que faz meu coração se aquecer.

- tá, agora tá na hora da gente fazer uma coisa que não fizemos até agora.

- o que?

- entrar na água.

- você tá louco, Felipe? Eu não posso entrar.

- por que não?

- por que não, ué.

- se eu te levar lá, você pode. Não vamos vir até aqui sem entrar na água, ne? Isso seria um desperdício.

Sem nem esperar minha réplica, ele me pega nos braços e começa a andar descalço pela areia em direção a água, me fazendo rir e segurar firme seus braços. É oficial, ele é louco. Mas eu gosto desses momentos de loucura. Faz eu me sentir vivo. Então, quando a água bate em meu corpo, faz eu soltar um grito de frio, e eu começo respirar forte e descompassado. Felipe ri de mim enquanto ele adentra mais um pouco no mar, com a água batendo em sua cintura. Então ele se abaixa, mergulhando nós dois. Quando ele se levanta novamente, eu estou totalmente molhado e com um pouco de raiva, mas não por muito tempo. Eu sei que ele está fazendo isso para me proporcionar sensações únicas, tentando fazer com que eu sinta tudo o que eu tenho direito, mesmo com minhas limitações, agora reduzidas, mas que ainda me atrapalham em algumas coisas. Ficar cadeirante, apesar de toda a tristeza imensa que me abalou, foi um grande aprendizado pra mim. É incrível que eu pude tirar lições valiosas de uma situação complicada. Mas é esse o significado de viver; cada dia a gente aprende alguma coisa, fazendo-nos evoluir.

Chego com Felipe no centro clínico no início da tarde. A cirurgia está marcada para as 15h, mas eu preciso estar aqui antes para o pré cirúrgico. Vou até a recepção e nem preciso falar para a secretaria do motivo de eu estar aqui. Ela sabe. Então, me dirijo até uma sala de espera e aguardo o doutor me chamar. Enquanto isso, percebo que Felipe está mais nervoso e impaciente do que eu. Ele está preocupado com a operação, está angustiado e eu entendo ele. Eu também estou com um pouco de medo, mas não deixo transparecer.

Após esperarmos um pouco, Gilberto aparece sorridente e nos cumprimenta. Em seguida, eu o acompanho até um quarto e Felipe me ajuda a tirar minha roupa, colocando outra veste do hospital. Quando sou transferido para a maca, minha ficha realmente cai. Eu seguro forte a mão de Felipe, deixando ele perceber pela primeira vez que estou com medo, com muito medo. Então vejo uma lágrima sair de seu olho, enquanto ele me encara angustiado.

- vai dar tudo certo, meu amor. – ele tenta me acalmar, com sua voz um pouco trêmula enquanto o doutor é uma outra enfermeira que acabara de chegar começam a me levar pra fora do quarto, certamente indo em direção para o centro cirúrgico. Felipe anda apressado do meu lado, sem largar minha mão. Só de pensar que essa pode ser uma despedida, meu coração dói. Assim que passamos por uma grande porta dupla, Felipe fica pra trás, então eu choro. Choro por medo, por angústia, por preocupação, por ansiedade, por tudo. Mas eu me mantenho forte, respiro fundo e me concentro em acertar as batidas do meu coração, tentando me apegar a algum pensamento tranquilo enquanto enxergo as luzes do corredor passado rápido por mim. Então penso em São Valentim, no restaurante. Ah, como essas lembranças são boas. A correria todos os dias sempre compensavam no final do dia, quando eu tinha a sensação de fazer o que eu gosto. E foi lá que eu conheci o amor da minha vida. Foi lá que nossa história começou. Meu nervosismo ao ver ele, na mesa 09, o primeiro contato, eu olhei pra ele e senti algo diferente. E eu sei que ele também. Seus olhos brilhavam, desde aquela vez, do mesmo jeito que eles brilham até hoje ao me ver.

Entramos em uma sala e vejo que ha mais gente conosco. Sou transferido para a cama cirúrgica, e logo sinto eles injetando uma agulha em minhas costas, na coluna. É a anestesia. Então eles começam a conversar sobre a operação, começam a checar todos os materiais que vão ser usados e então eu perco o foco de sua conversa, olhando novamente para as luzes do teto.

Começo a sentir um sono pesado e sei que é o efeito da anestesia que está agindo. Começo a me deixar levar pelo meu consciente, sabendo que dentro de alguns segundos eu já não vou estar mais acordado. Finalmente fecho meus olhos e sinto que vou pegar no sono, e quando abri-los novamente, espero que esteja tudo bem.

Comentários

Há 6 comentários.

Por Dougglas em 2015-12-26 22:47:46
Caraca luã, que aflição. O capítulo foi perfeito. Adoro quando você narra a rotina do Edu e do Lipe em algum passeio. Você descreve de uma forma que a gente sente as sensações e participa junto. Adoro isso. Amo a cumplicidade dos dois, o amor que existe entre eles. Concordo com a Niss no comentário dela. Eles são um exemplo de casal. Hoje em dia as pessoas desacreditam no amor, e acabam evitando as coisas lindas que ele tem pra oferecer. Espero que dê tudo certo com a cirurgia. Parabéns por mais essa temporada incrível.
Por Luã em 2015-12-02 21:36:57
Niss, disturbia, Diego e Juju: obrigado! Vocês são demais. Sempre que vocês comentam eu fico muito feliz, de verdade. Fico feliz também por ver que vocês gostam da história, isso é muito bacana pra mim. Eu me dedico muito para o conto, então ver que vocês gostam, leem e acompanham e torcem pelos personagens e que ficam ansiosos por mais capítulos, isso não tem palavras. Obrigado, de verdade!
Por Juju em 2015-12-02 13:47:17
Nossa muito bom!!!! Ansiosa pra terceira temporada!!!! Acompanho desda primeira!!! Beijos !!!!!
Por diegocampos em 2015-12-02 01:26:37
O edu e o Felipe são muito lindos esse capítulo foi muito fofo espero que fique tudo bem com o edu, espero ansiosamente pela terceira temporada.
Por Disturbia em 2015-12-01 03:46:14
Aii meu útero, mt lindo o capítulo.... Não estou preocupado com o Edu, pois se o amor deles sobreviveu até agr, creio eu que vc não fara nada de mal a ele (caso contrário o arco da mana Niss já está apontado pra vc)..... Retornando ao pensamento kk, a parte da praia foi a minha favorita, eu estava já imaginando a hr em que o Edu iria entrar na água, e tbm, como eu já disse, eu adorei o Gilberto kkkk (o poder dos cariocas)... Nada de tirar férias ein, um bj de luz da sua mana Disturbia :*
Por Niss em 2015-12-01 03:31:33
Omg!!! Aí meu Deus!! Fiquei um pouco preocupado com o Edu agora, mas eu creio que vai dar tudo certo. Bom, eles, realmente como o Edu disse, quem diria, que eles iriam passar por todas essas coisas juntos.... Eles sim, são a prova de que o amor supera todas as barreiras, eles são lindos, apaixonados, são um exemplo de casal a toda a comunidade LGBTT. Uma história surpreendentemente diferente e maravilhosa. Esse "aquecimento para lua de mel", a parte da praia calma, do avião, foi tudo muito lindo hahaha, eles são fofos juntos, e eu espero um dia, ao menos provar da força desse amor que une eles dois. A espera da próxima temporada. Kisses, Mana Nissan.