16. Olá de novo, Caio

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série O garoto da mesa 09

O dia que eu tanto temia chegou. Fiquei a semana toda tentando manter caio longe dos meus pensamentos, mas foi em vão. A noite passada foi um tormento pra mim. Nem lembro que horas eu consegui pegar no sono, mas era realmente tarde. Agora eu estou olhando para uma versão abatida e medrosa de mim mesmo no espelho, já vestido e arrumado, enquanto Felipe termina de se arrumar. Eu vou ter que passar por isso. É a minha provação.

- ei, tá tudo bem? – Felipe coloca a cabeça pra dentro do banheiro, me olhando cauteloso. Ele sabe melhor do que ninguém o que eu estou sentindo.

- tá sim. – finjo meu melhor sorriso, tentando não preocupa-lo.

- eu vou arrumar a mesa pro café. Não demora.

- pode deixar.

Enquanto ele sai, penso que eu não estou nem um pouco com fome ou com sede, mas preciso colocar alguma coisa no estômago, caso contrário vou desmaiar quando estar de frente com quem me colocou nessa cadeira de rodas, depois de quase meio ano, e se caso desmaiar, de fome não vai ser.

Tento acalmar meus nervos e sigo para a cozinha, onde Felipe termina de pegar as coisas na geladeira. Ele, percebendo minha expressão, larga tudo no balcão da pia e vem ao meu encontro, me abraçando.

- fica calmo, meu amor. Ele não vai te fazer nada.

- eu sei disso, Lipe. Mas eu não sei se estou preparado pra ver ele de novo.

- você vai passar por isso da melhor maneira possível, sabe por que?

- por que?

- porque eu vou estar lá do teu lado, basta um olhar dele pra você e eu vou pra cima dele.

Felipe consegue arrancar um sorriso meu. Vendo isso, sua expressão se ilumina.

- vamos tomar café, se não a gente se atrasa.

Após tomar alguns goles do meu suco de laranja e mordiscar alguns biscoitos, estou ao lado de Felipe indo para a garagem. Santo Cristo, meu coração está afoito. Mas não de uma boa maneira. Minha vontade é de voltar pra casa e ficar ali, que se dane que eu serei um cobarde. Eu geralmente enfrento tudo com muita coragem, mas as marcas que Caio deixou em mim foram muito dolorosas, e as imagens daquele dia ainda lampejam na minha cabeça, me atordoando. Ele me abordando com a arma depois da aula, o cativeiro, a fuga da polícia... minha cabeça dói. Mas eu, mais uma vez, respiro fundo e penso: já passou.

Assim que entro no fórum (VER SE É O LOCAL CERTO DO JULGAMENTO EM POA!!!)

Encontro Paula, que está vestindo um blaser cinza escuro, com uma calça de alfaiataria de mesma cor e uma camisa social branca. Ela vai ser minha heroína hoje. Em todo o tempo que antecedeu o julgamento, ela colheu o maior número possível de provas e argumentos contra Caio, o que não foi muito difícil.

- oi mãe, chegou cedo. – Felipe lhe dá um abraço breve.

- eu tinha algumas coisas pra falar com o pessoal aqui. Coisas burocráticas. E você Edu, como está?

- estou bem. Um pouco nervoso, mas estou bem.

- não precisa ficar nervoso, vai dar tudo certo. – ela me lança um olhar animador.

- é, eu sei. – tento dar um sorriso genuíno enquanto ela e Felipe começam a conversar sobre assuntos aleatórias. Olho para o lado e vejo Amélia junto com outro homem, que julgo ser o advogado de defesa deles. Quando a olho, ela está me olhando também. Seu semblante é triste, desesperançoso. Viro para o outro lado e avisto um bebedouro, então vou até lá para tomar um pouco de água e sair do campo de visão dela. Quando volto, evito em olhar para Amélia, ficando de costas. Por fim, resolvo tirar esse clima chato do ar e desfazer a cara feia, afinal isso não vai ajudar em nada. Um pouco depois somos convidados a entrar na sala da audiência. É um cômodo grande, com muitos assentos e a bancada onde fica o juiz, ao fundo. Me acomodo no meu lugar, enquanto um monte de pessoas desconhecidas se juntam a nós e tomam seus lugares. Acho que são os jurados. O juiz vem logo em seguida, sentando em seu lugar e olhando algumas anotações e documentos, sem falar com ninguém. Assim que a porta grande de madeira se abre, meu coração queima ao vê-lo. Caio está ali, bem em minha frente, seus olhos fundos e vagos, olhando para baixo. O rosto, apesar de estar limpo e com a barba feita, parece sujo, pesado. Está muito diferente daquela pessoa que eu tinha visto na última vez. Isso aperta meu peito, fazendo meus olhos se umedecerem. Por que ele teve que escolher esse caminho? Agora ele está jogando sua vida fora, e não há nada que possa ser feito sobre isso. Seu cabelo loiro está mais curto, arrumado e uniforme. Ele é acompanhado por dois policiais até a bancada, perto do juiz, no outro lado de onde eu estou. Meus olhos teimam em olhá-lo a todo o momento, mesmo eu não querendo o fazer. Quando de repente ele arrisca ao olhar para o lado, nossos olhos se encontram, fazendo eu me arrepiar por completo.

Quando finalmente a sessão se inicia, o juiz começa a descrever o caso, detalhadamente, apresentando alguns pontos importantes antes do advogado de Caio começar sua defesa. Sua tese é absurda. Eles conseguiram uma série de laudos e atestados médicos, contatando problemas mentais graves, que o impossibilitavam de assumir seus próprios atos. Olho para o lado e vejo os jurados, um monte de estranhos que estavam fazendo parte da decisão do dia de hoje, observando atentamente a tudo o que era dito e feito nessa sala. O advogado de Caio está no meio de seu texto completamente ensaiado quando um homem pede a palavra.

- meritíssimo, com sua licença, eu gostaria de falar.

- permissão cedida.

- bem, eu sou irmão do réu. Ninguém melhor do que eu para descrever seu comportamento. Caio sempre foi um garoto problemático, sem limites, crescendo tendo tudo o que queria. Ele sempre teve problemas, é verdade, mas ele sempre soube o que estava fazendo. Minha mãe sempre passou a cabeça por cima dele quando ele entrava em confusão na escola, na rua, em qualquer situação. Acho que isso acabou influenciando em sua índole. Nos tempos que antecederam o surto psicótico dele, percebi a mudança brusca de comportamento. Mal saia do quarto, não conversava direito, estava sempre alterado. Isso fez eu tentar conversar com ele, sem sucesso. Depois, tentei conversar com a minha mãe, que também não se impôs. Quando eu soube o que meu irmão havia feito, não consegui fazer nada a não ser sentir muito pela vítima. É a primeira vez que eu estou vendo o Eduardo – nessa hora, ele olha pra mim, fazendo muitos acompanharem sua ação. – e consigo ver a proporção do que meu irmão fez. É triste, mas ele precisa pagar pelo que fez.

Quando o homem de idade próxima aos 30 anos termina de falar, com os olhos lacrimejando, olho para Caio, que não demonstra nenhuma emoção, e depois para Amélia, que chora inconformada. Não consigo acreditar que o próprio irmão de Caio depôs contra ele. O clima está tenso dentro dessa sala, e eu quero muito que isso acabe logo. O advogado termina sua defesa, dando espaço para o juiz fazer pequenas anotações e os jurados fazem o mesmo. Então, Paula começa sua defesa. Sua firmeza nas palavras, confiança nas provas que colheu, faz ela transparecer tudo tão verdadeiramente, que me faz ficar orgulhoso dela. Ela é uma profissional muito capaz. Ela trouxe até o vidro de sonífero que Caio deixou aquele dia, no apartamento. Uma das testemunhas é o Oscar, chefe de Felipe e ex chefe de Caio. Oscar confirma tudo o que está sendo falado contra Caio, não deixando muitas formas de defesa para ele. A sessão está sendo tão cansativa. Acho que estamos aqui por horas. Provas, debates, nervos exaltados, que precisam ser acalmados pelo juiz, tudo me faz ficar ainda pior. Olho para Felipe, que me lança olhares de coragem e conforto a todo instante. Depois de passadas aproximadamente 4 horas desde que iniciamos a sessão, os jurados se reúnem em uma outra sala e passam um bom tempo lá, provavelmente debatendo sobre a sentença final. Então, quando o grupo volta para nossa sala, a sessão se encaminha para o fim. Caio é declarado culpado, por tentativa de homicídio, cárcere privado e tortura, pegando 17 anos de prisão. Amélia, ao ouvir isso, começa a chorar e gritar compulsivamente, enquanto precisa ser amparada por pessoas em sua volta. Caio fecha os olhos de forma intensa, como se estivesse se recusando a ouvir aquilo. Meu corpo parece mais leve, mas eu, mesmo não sabendo como e nem porquê, sinto por Caio. Sinto por ele jogar sua vida fora, por perder sua liberdade, por fazer seus familiares sofrer. A justiça está sendo feita, mas ele é um homem que poderia ter uma vida brilhante, mas por não conhecer limites, acabou estragando suas oportunidades. Quando vejo, lágrimas teimosas surgem em meus olhos. Não consigo aceite que tudo isso tenha acontecido. Parece tudo uma grande loucura. Aquele dia vai ser uma data difícil de superar, por mais que eu queira o fazer. Ao sairmos da sessão, Paula está visivelmente satisfeita e orgulhosa do resultado obtido hoje. Mas apesar de ter acontecido a coisa certa, eu ainda não estou aliviado ou satisfeito. Sinto que as coisas não estão certas. Sinto que ainda há algo a ser acabado. O resto do caminho para casa é silencioso. Felipe tenta puxar assunto umas duas vezes, mas vendo que eu estou querendo ficar quieto, ele me deixa mergulhar em meus próprios pensamentos.

Entro no consultório com um pouco a mais de animação que o normal. Hoje eu vou ficar de pé na barra paralela, algo que eu sempre queria, apesar do medo. Mas antes da diversão, preciso conversar um pouco com Fábio.

- e então Edu, como você tem passado? – ele pega alguns documentos em uma pasta que eu julgo ser minha, onde ele começa a olhar algumas anotações.

- estou bem, doutor. Estou animado pra hoje.

- é, eu imagino. – vejo ele abrindo um sorriso espontâneo. – mas só preciso conversar com você um pouco. Você está fazendo os exercícios em casa?

- todas as manhãs e antes de dormir. – falo com um tom de orgulho bastante explícito.

- muito bom. Está usando o cateter?

Olho para ele e faço uma careta, revelando que nessa parte eu estou falhando.

- Edu, usar o cateter é importante pra esvaziar sua bexiga completamente, você sabe.

- eu sei doutor, mas eu fico...

- com preguiça. – Felipe completa o que eu estou com vergonha de confessar. O tom de desaprovação em sua voz, somado ao olhar duro, mas carinhoso de Fábio me fazem parecer uma criança.

- se você não limpa bem a bexiga, as chances de você ter infecção urinária aumentam muito, Edu. Na verdade as chances já são altas pra quem tem lesão medular, mas se você usa o cateter...

- as chances diminuem. – eu completo a frase, sabendo bem de tudo.

- então na próxima sessão, você já sabe. Quero boas notícias.

- tudo bem.

- e você tá conseguindo se transferir direitinho da cadeira?

- estou, posso arriscar dizer até que estou ficando profissional. – lá está o tom orgulhoso novamente.

- isso é verdade doutor, ele fica até bravo quando eu pergunto se ele precisa de ajuda. – Felipe me dá um soco de leve no braço, fingido estar bravo.

- bom, muito bom. O Edu é bastante avançado. A força de vontade conta muito pra recuperação Edu. Posso dizer que você é um dos meus pacientes mais funcionais. Bom, vamos pra outra sala?

Quando ele fala isso, meu humor se levanta ainda mais. Assim que chego no outro cômodo, avisto a barra paralela bem em minha frente, com aquela imponência, parecendo que está me chamando. Mas antes, faço os exercícios habituais de braço com os pesos, para fortalecer a musculatura. Já consigo ver meu braço um pouco maior do que ele era antes de começar a fisioterapia. Isso acaba me cansando bastante na meia hora em que eu me exercito, mas nada consegue tirar minha animação para ficar de pé. Quando o doutor pega o tutor, meu coração dispara. É um equipamento enorme, que envolve toda a metade de baixo do meu corpo, mas é isso que vai me fazer ter a melhor sensação possível, a sensação que eu tanto queria. Me transfiro para minha armadura, encaixando meus pés na estrutura e em seguida colocando os tênis maiores, próprios para isso. Depois, prendo as fivelas que ficam no tornozelo e na altura da metade da coxa, me transferindo da maca para a cadeira logo em seguida . Já sentado, prendo o tutor na altura da cintura e prendo no joelho, deixando minhas pernas retas pra frente, fora do chão. Vou até a barra paralela e me jogo pra frente lentamente e com muito cuidado, de modo que eu possa me apoiar no ferro e ficar ereto. Quando eu estou totalmente de pé, a emoção toma conta de mim. Não é que eu já não tenha feito isso antes, nas vezes em que eu usei a maca ortostática, mas a sensação é diferente. Sou eu quem está controlando a situação, não estou preso pelo corpo todo e imóvel, eu estou me mantendo em pé por contra própria. É diferente da maca, eu não me senti tonto. Acho que minha pressão não está mais ficando baixa. Isso é um grande progresso. Só de comparar as situações, já me encho de orgulho novamente. Fico na barra por um bom tempo, me mantendo firme, levantando meu corpo fazendo força nos braços, descansando um pouco e então fazendo de novo. Quando volto para a cadeira, me sinto exausto, mas muito satisfeito comigo mesmo.

Antes de de ir embora, eu volto para o consultório e Fábio anota mais algumas coisas em seus relatórios, conversando um pouco comigo e me fazendo perguntas de praxe. O fato de eu estar evoluindo rápido me anima muito, as sessões estão sendo bastante produtivas e eu estou sentindo a diferença no meu cotidiano. Estou finalmente conquistado minha independência plena, fazendo eu me sentir muito melhor.

Termino de atender meu último cliente antes de ir embora. O dia passou tão rápido que eu nem percebi o tempo voando. O movimento na loja está mais intenso, todos os meus colegas estão atendendo pessoas e Ricardo está levando uma caixa de plástico com alguns livros que estão em excesso na loja para o estoque. Saio do meu login no computador e vou me trocar, cuidando bem para estar bastante apresentável o bastante para minha reunião com o enigmático Cassiano, que havia me ligado no mês passado. Só de pensar nisso meu estômago já se revira. Troco apenas minha camiseta do uniforme pela minha camisa cinza clara e deixo minha calça jeans de lavagem escura e meu tênis que eu estou usando. Coloco minha mochila na parte de trás da cadeira e vou em direção da rua, seguindo para o ponto de ônibus. Depois de embarcar, sigo para o Shopping Iguatemi, ponto onde marcamos de nos encontrar. Ao chegar, subo direto para o segundo piso, indo para o Outback. Bem, aqui realmente é um lugar bem sofisticado. Fico até um pouco desconcertado, parece que não estou arrumado bem o suficiente. Fico ajeitando o cabelo a todo o momento e observando minha camiseta, para ver se não estava amassada ou algo parecido. Há algumas pessoas no lugar, sentadas em suas mesas e se portando com tanta classe, se vestindo tão bem. Eu decidi deixar isso pra lá e peço um suco de laranja ao garçom, para esperar por Cassiano. Não demora muito até que chega um homem de cabelos grisalhos, aparentando ter uns quarenta e poucos anos, mas muito bem conservado e com ares de galã, com o rosto quadrado e traços marcantes.

- Eduardo? – ele me olha atencioso, os olhos azuis cintilantes me observando de maneira amistosa.

- Cassiano? – eu estendo minha mão, cumprimentando-o e sabendo da resposta sem ao menos precisar perguntar de fato. Ele está vestindo uma camisa preta, uma calça de alfaiataria cinza escuta e um relógio de prata no pulso, dando um ar muito sofisticado, embora ele pareça ser bastante humilde e simpático.

- desculpa se eu atrasei, eu acabei saindo às pressas de uma reunião e passei no hotel pra tomar banho e trocar de roupa.

- sem problemas. – digo enquanto ele se senta em minha frente, pegando o cardápio e analisando por uns instantes. Em seguida ele pede uma água tônica.

- então Edu, como tem passado?

- bem, obrigado. Bastante atarefado com a faculdade e o trabalho, mas eu gosto.

- bacana. Anda praticado bastante a culinária?

- bem, na verdade eu pratico até quando estou dormindo. Cozinhar é a minha paixão. – digo descontraído, fazendo-o sorrir.

- eu gosto disso. Fazer o que gosta é o passo principal para o sucesso. Eu aprendi isso desde cedo. Você estuda gastronomia, certo?

- isso.

- começou faz tempo?

- na verdade esse é meu primeiro ano.

- e você já tem todo esse conhecimento de gastronomia? Digo isso porque seu prato na competição teve bastante técnica. – ele parece impressionado.

- bem, eu sempre pratiquei bastante. Minha família tem um restaurante e eu ajudei bastante lá, como garçom e às vezes segurando as pontas na cozinha, ajudando quando minha mãe precisava. Entendo. Isso é muito legal Eduardo.

Conversamos mais um pouco sobre minha vida e sobre como a gastronomia me influencia, enquanto ele também conta um pouco de sua vida. Ele é de São Paulo, veio de um bairro de classe média baixa e desde cedo também se dedicou a gastronomia. Fez faculdade, diversas especializações e até estagiou um período na França, em um restaurante muito renomado em Paris. Sua história é realmente fascinante.

- está com fome?

- um pouco.

- vamos pedir alguma coisa pra comer?

- claro.

Então, ele pede um Outback Rack, que pelo que eu vi é uma costeleta de cordeiro, enquanto eu peço uma Toowoomba Pasta. Enquanto nossos pedidos não vêm, Cassiano começa a me introduzir um assunto que eu penso ser o motivo de eu estar aqui.

- Edu, posso te chamar assim?

- claro. – lhe lanço um sorriso carismático.

- então Edu, eu acho que não te falei que eu tenho uma rede de restaurantes de comida brasileira. Ainda faz pouco tempo que eu inaugurei o primeiro, agora em dezembro fazem cinco anos, mas eu estou inaugurando todos os anos pelo menos quatro unidades pelo Brasil. É um negócio relativamente novo, mas que eu estou apostando muito. – ele faz uma pausa, tomando o último gole de sua tônica. – e até o começo do ano que vem, quero estar inaugurando a primeira unidade do restaurante no Rio Grande do Sul, aqui em Porto Alegre. Eu não vou fazer muitos rodeios Edu. Eu gostei muito do seu jeito de cozinhar. São poucos que me chamam a atenção do jeito que você chamou. E eu quero que você se junte na minha equipe, aqui no sul.

Quando ele termina de falar, eu fico sem palavras, olhando para ele feito um idiota, quase que com meu queixo no chão. Eu estava certo. Ele havia uma proposta de emprego para mim. Mas eu tenho que lembrar ele de um pequeno detalhe, que muda bastante coisa.

- Cassiano, isso é incrível! Eu estou... eu... nossa. – eu respiro fundo, recuperando as palavras. – isso é demais, de verdade. Eu fico muito feliz por você. Fico muito feliz pelo convite, mas... você sabe que é complicado. Eu digo, a cadeira de rodas e tudo mais... – minha voz sai um pouco baixa e eu sei que estou soando como um idiota por colocar minha deficiência como um ponto em questão, mas preciso ser realista.

- Edu, eu sei disso. Eu te vi na competição, lembra?

- claro. – eu estou soando como um idiota mesmo.

- a cozinha do restaurante vai ter todas as adaptações necessárias pra você. O que não pudermos adaptar, daremos um jeito de deixar mais fácil pra você. Mas isso não vai ser um empecilho para nós.

Por um momento eu penso que vou voar nele e lhe encher de abraços e lhe agradecer muito pela oportunidade, mas preciso manter a compostura. Estou suando nas mãos. Santo Cristo, eu estou tão feliz nesse momento que nem sinto direito minhas bochechas de tanto que eu estou sorrindo. Nossos pedidos chegam e então jantamos, conversando sobre o qual Porto Alegre fica mais linda ainda em época de primavera. O resto da noite conversamos mais um pouco sobre as questões do restaurante, sobre minhas futuras funções e sobre as adaptações que seriam feitas. Eu vou ser uma espécie de assistente do chef, auxiliando no maior número de coisas possíveis. Cassiano ressalta a importância de impressionar os clientes logo de cara, para fortalecer o nome do restaurante. Já sinto que terei uma responsabilidade grande, mas que sem dúvida eu vou abraçar com força. Já passa das 21h quando me despeço de Cassiano e vejo ele seguindo em direção a escada rolante, enquanto eu espero por Felipe perto do restaurante. Quando o avisto, meu sorriso de orelha a orelha já adianta o quão produtiva foi nossa noite.

- ei.

- ei. – quase não consigo falar, de tanto que estou sorrindo.

- a noite foi boa?

- boa? Foi muito mais do que isso. Eu recebi uma proposta de emprego, Fê.

- mas o que... – Felipe arregala os olhos, me olhando incrédulo. – Edu, que incrível!

- eu sei! Eu ainda não to acreditando. Vai abrir uma filial do restaurante dele aqui em Porto Alegre e eu vou ser auxiliar do chef, Felipe. Auxiliar do chef! – minha voz sai trêmula.

- meu amor. – ele me olha emotivo. – que orgulho.

- eu não sei se quero ir pra casa agora. Eu não sei se eu vou conseguir essa noite. Eu não sei de mais nada.

- mas quem disse que a gente vai pra casa agora?

- não vai?

- não. Ainda mais agora, com essa notícia. Precisamos sair pra comemorar.

- e onde a gente vai?

- surpresa. Vamos.

Enquanto seguimos para o estacionamento, fico pensando em como foi diferente dessa vez, em relação ao Douglas. Eu sei que não foi culpa dele, mas Douglas logo fechou a oportunidade na minha cara quando soube do meu acidente, e querendo ou não isso acabou me chateando. Achei que seria assim com outras vezes, por isso meu espanto e minha alegria com a proposta de hoje. Adaptar toda a estrutura da cozinha por minha causa? Isso parece surreal, mas é real. Cassiano faz questão de me ter em sua equipe, em seu restaurante, e isso me deixa muito feliz.

Minha semana fica mais intensa na faculdade. Está tendo bastante trabalhos e eu preciso conciliar tudo com a loja, com as sessões de fisioterapia e ainda dar atenção para Felipe. Mas apesar de minha mente estar ocupada com um turbilhão de pensamentos, há um em especial que eu não consigo parar de pensar, mesmo que eu queira muito: Caio. Desde o julgamento, não consigo parar de pensar nele. Seu rosto, sua expressão abatida, parecendo doente, isso tudo me deixa angustiado. Pode parecer loucura, mas na última noite eu acabei perdendo o sono, pensando em visita-lo na prisão. Talvez tentar uma conversa, embora eu não saiba muito bem o que conversar. Mas eu sinto que precisamos ficar frente à frente, resolver assuntos pendentes e finalmente tirar essa minha sensação ruim do meu peito. Agora eu estou distraído, entre documentos para assinar e separar para Ricardo, enquanto o movimento da loja está fraco. Ainda é de manhã, e ainda por cima é final de mês, então presumo que salvo raras exceções, a semana inteira vai continuar assim. Pego o pacote de bolacha dentro do balcão e mordisco algumas para enganar a fome. Estou quase terminando de assinar os papéis quando meu celular toca, fazendo eu me assustar um pouco. Olho na tela e vejo uma mensagem de Felipe.

“Pensando em você.”

Isso faz meu coração se aquecer. Estou com saudades dele. Desbloqueio a tela e digito outra mensagem em resposta.

“Suspirando ao ler sua mensagem. Estou com saudades, querendo seu abraço.”

Não demora muito até que venha outra resposta.

“Quero muito dar uma escapada da agência no almoço e te buscar pra almoçar. O que você acha?”

“Acho que eu estou contando os segundos pra te ver. Vem logo.”

O celular vibra, me fazendo sorrir.

“Vou ir voando. Te amo.”

“Também te amo.”

Isso acaba animando meu resto da manhã. Ricardo passa por mim com alguns livros na mão, indo em direção a seção de ficção, e assim que me vê sorrindo à toa me olha curioso.

- viu um passarinho verde, Edu?

- o Felipe vai me buscar pra almoçar.

- ah, o passarinho verde tem nome. É Felipe.

- exatamente. – digo sorrindo. Não sei bem como vou contar para Ricardo sobre a proposta de emprego de Cassiano. Trabalhar aqui na loja tem sido incrível, todos têm me tratado tão bem e tem sido tão compreensíveis, principalmente Ricardo, que eu vou me sentir mal quando eu for embora, com a sensação de que eu os abandonei ou que eu o trai, mas é uma oportunidade que eu não posso perder. Mas tenho certeza que a amizade de Ricardo vai ficar marcada em mim.

Quando chega perto de meio dia, começo a ficar inquieto à espera de Felipe. Não demora muito até que ele cruza a porta, com os dois primeiros botões de sua camisa de linho rosa desabotoados, deixando-o mais descontraído.

- já pensou onde vamos? – sua voz aveludada me faz arrepiar.

- achei que você já tinha algum lugar em mente.

- na verdade não pensei em nada. – ele diz enquanto eu saio de trás do balcão, me juntando a ele.

- estou com vontade de comer japa.

- então vamos de japa. – ele me lança um sorriso despretensioso, pousando sua mão em meu ombro. Ricardo vem logo em seguida e eu o aviso que estou indo almoçar, então ele e Felipe se cumprimentam e seguimos para o carro. Alguns minutos depois chegamos em um restaurante muito aconchegante de comida asiática a algumas quadras dali. Vamos até o vasto buffet e montamos nossos pratos, indo em seguida até uma mesa perto da janela.

- você tá quieto. – Felipe me analisa enquanto eu como um temaki.

- quieto? Não, é impressão sua. – antes mesmo de terminar de falar, sei que não fui convincente. Ele arqueia uma das sobrancelhas, me lançando um olhar de interrogatório, e eu me rendo. Sei que nunca consigo esconder nada dele.

- eu estou pensando sobre o julgamento... – ele me observa com atenção, enquanto eu tento formar a frase que eu preciso falar. – eu sinto que preciso conversar com o Caio, Lipe.

- você o que? – ele parece indignado. Já sei que teremos uma longa conversa.

- eu e ele temos assuntos pendentes.

- que assuntos Eduardo? Ele tentou te matar. – ele diz a última frase mais baixo, tentando não chamar a atenção de ninguém.

- eu sei, Felipe. Mas eu preciso conversar com ele. Não me pergunte por quê, mas eu preciso.

- eu não vou deixar você chegar perto dele de novo.

- ele não vai me fazer mal, vai haver policiais perto.

- não me interessa Eduardo. Você não vai, ponto final.

- Felipe, esse assunto está fora de questão. Eu vou, querendo você ou não.

Ele me olha com desaprovação, e eu sei que ele está muito bravo. Após alguns segundos de troca de olhares, eu deixo escapar um sorriso que estava tentando esconder. Ele, ao ver isso, acaba sorrindo também.

- você é tão cabeça dura.

- você também é.

- eu só não quero você correndo perigo de novo.

- eu não vou. Me entende, por favor, eu preciso muito ter essa conversa com ele.

Ele fecha forte a mandíbula, sem dizer nada. Eu o olho, pedindo uma resposta, mesmo sabendo que eu iria mesmo se ele não aprovasse.

- tudo bem, Eduardo. Mas só se tiver algum policial junto. Se não, você nem chega perto dele.

- tudo bem. – me sinto vitorioso por dentro. Mesmo sabendo dos perigos, eu quero ir. Mais do que querer, eu preciso ir.

Chego em frente ao presídio tentando conter minha ansiedade. Meu coração está aos pulos, enquanto minha cabeça me diz que o que eu estou prestes a fazer não é uma boa ideia. Me apresento para os guardas da entrada, que me encaminham até uma sala onde é feita a revista. Depois de checarem tudo, me liberam para ver Caio. Não sei bem ao certo como vai ser a reação dele ao me ver, mas eu sei que será estranho. Caminho por um corredor pouco iluminado e ventilado, onde apenas janelas estreitas no alto das paredes trazem um pouco de claridade, seguindo até uma sala onde Caio está me esperando. Quando chego, o guarda me libera a passagem, ficando na porta para vigiar tudo. Ao atravessar a porta, meu coração salta em uma batida. Caio está aqui, bem em minha frente, seus olhos cintilantes me encarando sem deixar transparecer nenhuma reação ou emoção. Seus olhos estão fundos, seu rosto está abatido, impenetrável.

- oi Caio. – tento começar um diálogo, afastando meu medo e escondendo minhas mãos levemente trêmulas.

- oi.

- eu fiquei sabendo que hoje era dia de visita, quis ver como você estava. – minhas palavras saem tão sem sentido que eu penso que eu mesmo poderia me mandar cala boca. O que eu faria aqui, para ver como ele está? Seus olhos se estreitam, tentando entender a situação, enquanto por dentro eu tento fazer o mesmo.

- o que você está fazendo aqui, Eduardo?

- eu acho que a gente precisa conversar, Caio.

- você acha? Por que? – ele pende a cabeça para o lado, enquanto um vestígio de um sorriso surge em seu rosto, me deixando com um pouco de medo.

- eu... eu não sei. – merda, minha voz falha. – mas a gente precisa deixar as coisas esclarecidas.

- não tem nada pra esclarecer, Eduardo. O que está feito está feito. Eu estou aqui, pagando pelo que eu fiz. Não é o certo?

- é. Você sabe que é. Mas não precisava ter sido assim.

- mas foi assim que foi.

- você se arrepende?

- não.

A certeza em suas palavras acabam me provocando um arrepio. Eu busco por palavras, mas não as encontro. Um pequeno silêncio se instala no cômodo até que Caio decide continuar a conversa.

- eu não me arrependo, porque tudo o que eu fiz, foi por amor. Você sabe que eu amava... que eu amo o Felipe. – quando ele diz isso, meu sangue acaba fervendo e eu preciso me segurar muito para não partir pra cima dele. – mas eu sinto muito que eu tenha perdido o controle. O que eu fiz com você não tem perdão. Eu estou aqui há meses, e não tem um dia que eu não pense no que aconteceu aquela vez.

- eu te perdoo, Caio.

Quando eu digo isso, acho que pego ele de surpresa, desmontando sua armadura. Ele me olha por alguns segundos, o que me parecem ser muito tempo, mas eu não estou sentindo medo. Eu sustento seu olhar, tentando entender o que ele pensa enquanto seus olhos estão nos meus.

- a gente faz muita besteira pela vida. Com você não foi diferente. Mas eu não quero guardar mágoa de você. Não quero pensar em você com ressentimento. É claro que a gente não vai ser amigos – nessa parte, ele sorri, enquanto eu também. – mas eu não quero que fique nada entre nós. Nada de ruim. O que aconteceu comigo fez eu aprender muita coisa. Aprendi a ter paciência, a observar tudo com mais atenção, a tentar ver o outro lado da história. E espero que quando você sair daqui, possa encarar tudo como uma segunda chance pra recomeçar tudo de novo, da maneira certa.

- quando eu tiver passado quase vinte anos preso? Isso parece piada. – posso ver seus olhos chorosos.

- mas mesmo assim, você pode fazer com que tudo seja feito do jeito certo dessa vez.

- se você e o Felipe não estiverem mais juntos, eu vou lutar pra ficar com ele.

- a gente vai estar junto, com certeza. – minhas palavras saem duras, assim como meu olhar. – mas você pode encontrar alguém que te faça feliz. Você tem esse direito, você deve fazer isso.

Ele parece querer falar algo, mas se impede. Depois de olhar para o lado, para o vazio, seus olhos voltam nos meus.

- você me desculpa?

- eu já disse que sim. Não tem nada pra desculpar. O que passou, passou.

- tudo bem.

Então, eu o olho e não consigo mais sentir nada de ruim. Não consigo sentir raiva, nem magoa, nem ressentimento algum. Sinto um pouco de pena, mas principalmente, sinto por ele ter jogado sua vida fora.

- você vê sua mãe com bastante frequência?

- ela vem todos os dias de visita.

- e seu irmão?

- ele só veio uma vez. – seu tom de voz de entristece ao falar nisso. A relação deles não é muito próxima, pude ver isso no julgamento. Foi mais um pouco conversando coisas banais, com um clima ainda um pouco estranho, mas já suportável. Então, após mais alguns minutos, eu me despeço dele e vou embora. Meu peito está leve, minha consciência limpa e me sinto bem em ter feito isso. Ao cruzar o corredor longo, vejo Amélia na outra porta, vindo em minha direção. Ela me olha com espanto, parecendo que não acredita no que vê. Passo por ela sem falar nada e ela faz o mesmo, embora não tenha tirado os olhos de mim até que nos cruzássemos. Eu entendo seu espanto. É esquisito pensar que eu estou visitando alguém que queria me matar até pouco tempo atrás. Na verdade nem eu entendo muito bem o porquê eu fiz isso, mas só sei que eu fiz a coisa certa.

Comentários

Há 5 comentários.

Por Dougglas em 2015-12-26 12:31:36
Ainda bem que a justiça foi feita no julgamento. Eu já imaginava que o advogado de defesa ia vim com atestados alegando deficiência mental, é bem comum isso. Mas ficou bem real o julgamento. Eu adoro essa determinação do Edu na condição dele, e espero que isso passe logo e ele comece a responder com a fisioterapia. E essa proposta de trabalho.. . Ele realmente merece. Olha, sei eu fechei as portas pra você no meu restaurante, mas espero que não guarde mágoas de mim, até porque, perdôo o cara que quis te matar. E por falar nisso, a personalidade nobre do Edu me encanta. Ainda bem que ela só se manifestou após o Caio ser condenado.
Por Luã em 2015-11-11 19:53:56
Ooooooi galera linda! To aqui pra dizer que a espera acabou. Terminei o capítulo novo do Edu e do Felipe, e eu só vou revisar direitinho pra não acontecer o que aconteceu com o capítulo mais recente né haha. Mas mais tarde já vai ter capítulo saindo do forno pra vocês! Tem muitas emoções, muitas mesmo. Espero que vocês gostem! Abraços (:
Por diegocampos em 2015-11-02 14:59:10
Amei o capítulo muito bom, e muito triste ver o caio nessa situação mas ele está pagando pelo que fez foi muito bonito da parte do edu ir visitar ele estou ansioso para o proximo.
Por Niss em 2015-10-31 01:51:52
O julgamento do Caio até que foi justo, mas, essa atitude do Edu agora foi, indescritivelmente nobre! Ele pode até ser traído, pelo Caio, em relação a essa conversa, mas, eu espero que isso não aconteça. Fico muito feliz, em ver que ele foi chamado pro restaurante, mas, como ele mesmo disse, a Loja foi um ótimo local pra se trabalhar, e o Ricardo, é um chefe dos sonhos, além de ser compreensível. Fico feliz também pelos resultados dos exercícios, eu acredito em uma recuperação do Edu. Espero pelo proximo. Kisses, Niss.
Por Disturbia em 2015-10-31 01:31:15
Derrubando forninhos como sempre. Amei o capítulo de hoje, realmente a espera valeu a pena, ansioso pelo próximo capítulo migo, bjs de luz :*