13. Adrenalina

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série O garoto da mesa 09

Fala galera! Tudo bom com vocês? Já tava com saudade de postar aqui pra vocês. Segue abaixo mais um capítulo da série, com muitas emoções. Espero que gostem. Comentários são sempre bem vindos! Abraços (:

- eu ainda não sei por que você quer que eu venha nesse grupo. – reclamo carrancudo.

- por que não quero você sozinho em casa. Vai só hoje, se você não gostar não precisa mais vir, tá bom?

- tá. – reviro os olhos. Ele deve estar preocupado comigo por causa da nossa conversa no outro dia. Agora que minha mãe já voltou pra São Valentim, ele deve estar apreensivo por eu estar mais sozinho em casa. Mesmo eu falando mil vezes que eu estou bem.

- vai lá. Você ainda tem que fazer seu cadastro e eu estou quase atrasado. – ele me olha sorrindo, se estica até mim e me dá um beijo, me fazendo desfazer a cara feia.

- vamos lá?

Aceno que sim com a cabeça. Ele sai do carro e pega a cadeira no porta malas e em seguida está abrindo minha porta.

- tá com todos os documentos ai?

- sim, tá tudo certo Fê. Não se preocupa. – reprimo um riso. Ele está exageradamente preocupado.

- tá bom. Vai lá. Se cuida.

- você também. Te amo.

- também te amo.

Sigo em direção a rampa de acesso e me viro para olhá-lo mais uma vez. Está com as mãos nos bolsos, o cabelo bagunçado pelo vento. Aceno sem jeito com a mão para ele, que me retribui e entra de volta no carro, arrancando rua a frente. O calor repentino da manhã logo desaparece quando entro e sinto o ar condicionado ligado e o cheiro de limpeza. Vou até a secretaria e dou meus documentos para uma senhora muito simpática que escutava as notícias matinais em um rádio pequeno a pilha. Agradeço e sigo para a sala que estava indicada na minha folha. Sigo pelo corredor até a última porta à direita, onde encontro algumas pessoas já interagindo entre si. Entro meio sem jeito e fico mais afastado, tentando evitar contato imediato. Não sei por que estou tão antissocial, deve ser por que é meu primeiro dia. A sala é bem ampla, arejada e clara. Uma menina de cabelo curto e um menino negro que conversavam perto de mim me acenam de longe e eu aceno de volta, sorrindo. Os dois aparentam ter uns 20 anos mais ou menos. Parecem ser realmente jovens. Eles falam algo um pro outro e em seguida vem em minha direção.

- ei, você é novo aqui, né?

- sou. – digo um pouco sem jeito. – vocês vem aqui faz tempo?

- eu venho há quase um ano. Ele vem há uns dois meses. À propósito, meu nome é Taís. – ela extende a mão pra mim, com um sorriso largo no rosto. Já consigo perceber que ela é bem falante.

- o meu é Marcos. – diz o garoto, mais tímido do que ela.

- o meu é Eduardo. Prazer em conhecer vocês. Mas me diz, como funciona as coisas aqui?

- nós temos reuniões três vezes por semana. Temos palestras, saímos para o parque, conversamos, fazemos muita coisa. É nossa segunda casa aqui. – ela fala olhando para Marcos.

- como foi que você ficou assim?

- acidente de carro.

- eu sinto muito. – ela me olha com cautela. – faz tempo?

- dois meses. E você, como ficou assim?

-assalto. Eu reagi e tentei fugir. O cara me acertou nas costas. – ela dá de ombros. – acontece.

- eu sinto muito. E você Marcos?

- acidente de moto. Me custou essa belezona aqui. – ele aponta para a perna amputada, sorrindo em seguida. Logo um homem de meia idade se junta a nós, o que eu julgo ser o palestrante.

- bom dia pessoal.

- bom dia! – todos respondem em coro.

Ele corre os olhos pela sala e me enxerga.

- pessoal, temos um novo membro. Chega aí, parceiro! – ele me acena para ir até ele. Maravilha, já sinto meu rosto ficar ruborizado. Chego até seu lado e ele me recepciona com um sorriso hospitaleiro.

- se apresenta aí pra turma.

- é... bom... oi. Meu nome é Eduardo, tenho 18 anos e moro aqui em Porto Alegre desde janeiro. Há dois meses atrás eu sofri um acidente de carro e fiquei paraplégico. E eu acho que é isso.

- você faz faculdade? – o homem insiste.

- faço. Culinária.

- já sabemos quem vai cozinhar nas nossas próximas reuniões em casa, pessoal. – ele faz todos rirem. Me sinto um pouco mais relaxado e acabo rindo também.

- tá bem Eduardo. Prazer em te conhecer. Me chamo Joaquim e sou como se fosse o professor de vocês aqui. Temos nossas reuniões regulares as segundas, quartas e sábados, além de nossas reuniões nas casas do pessoal em datas aleatórias. Espero que você se sinta à vontade. Seja bem vindo!

Todos me dão uma salva de palmas, me fazendo ficar sem jeito. Me lembro a todo o instante do primeiro dia do meu pai nos alcoólicos anônimos. A diferença é que agora eu estou sozinho, sem ninguém me dando apoio. Mas não está sendo tão ruim quanto eu imaginei. Volto para meu lugar, perto de Taís e Marcos, que estão de mãos dadas. É uma surpresa pra mim. Achava que eles eram apenas amigos. Fico feliz, eles são um casal bonito. Me posiciono ao lado deles quando Joaquim pede nossa atenção.

- Edu, posso te chamar assim?

- claro.

- eu estou aqui nesse grupo há mais de dois anos. Vejo muitos chegando e saindo. Aqui se formam amizades, inimizades, casais – nessa parte ele enfatiza a última palavra, apontando a cabeça para os dois que estão do meu lado, fazendo-os rir. – somos uma família aqui. Todos com suas particularidades. Mas todos têm algo em comum; em 90% dos casos, quando peço para as pessoas se apresentarem, elas agem igual você agiu hoje. Se limitam a dizer o nome, a idade e o motivo que a deixou deficiente. Não sei se você percebeu, mas eu lhe perguntei outras coisas. – concordo com a cabeça, sem dizer nada. – isso é justamente pra te mostrar a primeira regra do nosso grupo; não nos limitar a nossa deficiência. Não deixar que o fato de sermos cadeirantes nos rotule. Você tem uma vida paralela à paraplegia. Você tem família, amigos, vida social, amorosa, profissional. E é isso que queremos mostrar aqui. Somos uma espécie de pequena família com algumas coisas em comum, mas que deixa a tristeza e as lamentações do lado de fora da porta pra poder se conectar com o melhor de cada um.

O olho sem saber o que falar. As outras pessoas também me observam discretamente, mas não do jeito que todos os outros me olharam até hoje, desde que me acidentei. É apenas um olhar curioso querendo saber minha reação às palavras de Joaquim. Nada de preconceito, ou pena.

- bem, eu não sei o que falar Joaquim. Isso é incrível.

Passamos o resto da manhã conversando entre si. Pode conhecer um pouco de cada um presente, mas Taís e Marcos são oficialmente meus novos confidentes. Logo temos um entrosamento bacana, fazendo eu perder a vergonha e me soltar. Os dois são daqui de Porto Alegre. A maioria deles são. Joaquim é de Gramado. Ele nos conta as maravilhas da cidade natal e eu fico curioso pra conhecer pessoalmente. Por último ele pega seu violão e começa a tocar varias musicas enquanto todos acompanham cantando. A sala se enche de uma luz positiva, uma energia leve e que tira toda a tristeza. É algo indescritível. Saio da palestra muito mais leve. Eu acho que a ideia é muito bacana. Expor o lado positivo, o lado feliz das pessoas deficientes, sem ficar se lamentando ou puxando tudo para o lado triste. É disso que eu estou precisando agora. Passo a mão pelo bolso e pego meu celular para ver a hora. Só agora lembro de ligar para minha mãe. Não falei mais com ela desde que ela foi embora de volta para São Valentim. Já estou com saudades.

- alô, mãe?

- oi filho! Como você tá?

- to bem. Acabei de sair do grupo de apoio.

- grupo de apoio?

- é, um grupo que o Felipe me colocou para me animar um pouco. Tem muita gente bacana lá.

- sério? Que ótimo! Como foi?

- gostei bastante. No começo tava me sentindo um pouco inseguro, mas depois eu acabei cedendo.

- fico feliz filho. Vai ser uma boa forma de você se distrair, sair um pouco daquela casa.

Parece que ela e Felipe estão de complô contra mim. Não sei por que tanta preocupação.

- eu queria pedir desculpa por ter furado de última hora a viagem de volta. Eu ia adorar ficar uns dias aí até domingo, mas eu precisava conversar com Felipe e acertar algumas coisas aqui. – digo sem jeito.

- não tem problema filho. Outra hora você vem. O que você vai fazer agora?

- estou indo almoçar e depois vou pra casa.

- bom, se cuida então. Eu tenho que voltar, o restaurante tá lotado. – diz ela entre risos. Quando ela está trabalhando lá, eu posso ver sua felicidade genuína.

- vai lá mãe. Se cuida e manda um abraço pro pessoal.

- mando sim. Te amo Edu.

- também te amo mãe.

Guardo o celular no bolso com um sorriso estampado no rosto. É sempre bom falar com ela. Começo a tentar me localizar e pensar em um restaurante pelas redondezas. Há um que serve comida colonial, muito elogiado. Decido ir conhecer. Pego novamente meu celular e localizo-o pelo Gps. É a quatro quadras daqui. Sigo enquanto meu estômago se revira de fome. Quando chego em frente ao meu destino, sinto falta de uma rampa de acesso. Há uma escada com três degraus até a porta, mas nenhuma adaptação para deficientes físicos. Isso me deixa desanimado e acabo perdendo a vontade de almoçar ali. Sigo chateado até a lancheria mais próxima, onde eu já tinha comido algumas vezes. Depois de almoçar sigo pra casa pensando na proposta de Felipe. Casamento. Isso ainda me deixa com o coração palpitando. A cena daquela noite, nossa paixão transbordando pra fora de nossos corpos, a proposta, a fragilidade de Felipe ao me pedir pra ficar. Isso tudo é muito intenso.

O domingo amanhece com uma camada de nuvens cinzentas cobrindo o céu de Porto Alegre. Felipe não está na cama. Ele está acordando cedo todos os dias, mesmo quando não precisa. Agora não são nem 9h ainda. Tento ouvir algum barulho que possa me indicar onde ele está, mas foi pelo cheiro que eu descobri. Há um aroma delicioso de café vindo de fora do quarto. Mal se passa um minuto e ele entra no quarto, parecendo que adivinhou que eu acordei.

- bom dia meu amor. – ele está com a cara sonolenta ainda, apesar de já estar de banho tomado.

- bom dia. – digo me espreguiçando e recebendo um beijo nos lábios.

- temos um dia bem cheio hoje.

- temos? – olho para ele com a sobrancelha arqueada. – vamos pra onde?

- surpresa.

- você com mistérios agora?

- uhum. – ele reprime um riso. – vem, levanta. Vamos tomar café.

Seguimos para a mesa e tomamos um café reforçado. Há frutas, suco, leite, torradas, bolachas. Apenas nos finais de semana que temos tempo de comer com calma pela manhã. Após terminar Felipe me ajuda a trocar de roupa e então seguimos até o carro. À medida que saímos do perímetro urbano e entramos na rodovia, eu fico mais ansioso. Pra onde estamos indo? Por mais que eu pergunte pra Felipe, ele não me fala. Depois de cerca de uma hora, chegamos em uma estrada deserta de chão batido, no meio do nada. O que estamos fazendo aqui? Nem sinal de telefone pega direito. Começamos a nos aproximar de uma ponte. Vejo que há algumas pessoas lá. Isso está ficando cada hora mais estranho.

- Felipe, o que vamos fazer?

- eu estou vendo que você está muito desanimado, Edu. – ele introduz me olhando com cautela enquanto estaciona o carro na beira da estrada. – vejo que você parece sem animo, sem vida. Não gosto de te ver assim. Não é o Edu que eu conheci. Eu quero te fazer se sentir vivo.

- como? – já estou sorrindo, achando sua intenção bastante válida.

- você vai ver.

Ele sai do carro, pega a cadeira e me coloca nela.

- você tem medo de altura? – sua voz sai despretenciosa.

- um pouco. Por que?

- por nada. – ele está com a boca fechada em uma linha reta, tentando se manter sério.

Chegamos até as pessoas que estão na ponte e vejo alguns cabos presos e equipamentos que eu nunca vi na vida. Isso parece ser... Bungee Jump. Eu estremeço.

- Felipe, isso aqui é Bungee...

- exatamente. – ele me olha quase gargalhando.

- puta que pariu Felipe, nem fodendo.

- ah a gente vai sim. Os caras vieram até aqui. Olha todo o trabalho que deu pra montar tudo. – ele aponta pra todo o equipamento.

- não interessa. Eu não sabia de nada. – estou quase entrando em pânico. – se foi pela nossa conversa no outro dia, pode ficar tranquilo, eu não vou embora.

Ele começa a gargalhar, vendo meu desespero.

- Edu, vamos ter essa experiência juntos. Eu já fiz uma vez. É único.

- você já fez? Ah, incrível, parabéns, mas não é algo que eu queira experimentar.

- Edu... – ele faz aquela cara de cachorro sem dono. Merda, isso é meu ponto fraco.

- Felipe, meu Deus do céu. – passo a mão pelo cabelo, pensando no que pode acontecer. Bem, esses cabos são bem seguros. Olho a vista na minha frente. O horizonte cheio de montanhas, o rio sob a ponte, com pedras e árvores nas margens. É uma vista linda. E alta. Meu estômago se revira.

- e então? Vamos?

Eu respiro fundo.

- eu sei que eu vou me arrepender, mas vamos.

Ele comemora discretamente enquanto nos aproximamos dos homens. Eles começam a colocar os cabos em nós e eu começo a ficar em pânico novamente. Mas não vou desistir. Vou soar ridículo. Mas Felipe é um idiota por armar isso tudo sem eu saber, sem eu poder decidir antes.

- esse troço é seguro mesmo? – minha voz sai fraca.

- totalmente. – o homem de boné sorri enquanto tenta me acalmar. Vejo Felipe atrás dele rindo de mim. Mostro o dedo do meio discretamente pra ele enquanto converso com o cara. Ele termina de colocar os equipamentos em mim e me mantém em pé com sua ajuda.

- no 3.

- aí meu Deus. O que é que eu to fazendo.

- 1.

- 2.

- calma! – grito desesperado. – deixa eu respirar fundo primeiro.

Minha respiração está ofegante. Eu estou suando frio. Felipe coloca a mão na barriga de tanto rir. Será que posso bater na cara dele nesse momento?

- podemos?

Confirmo com a cabeça, os olhos fechados.

- 1.

- 2.

- 3! – os instrutores e Felipe gritam ao mesmo tempo e eu sinto o cara de boné me empurrar para fora da ponte. O vento forte e a gravidade agindo faz meu estômago se revirar, parecendo que está se contraindo dentro da minha barriga. Solto um berro em reação e abro os olhos. Já que estou fazendo isso, tenho que sentir direito. Vejo tudo em borrões de verde e azul, devido a velocidade em que eu caio. Quando eu quase toco na água a corda se estica totalmente, me fazendo subir mais um pouco de volta e depois cair de novo, sucessivamente. A sensação de liberdade é incrível. A adrenalina está agindo forte em mim. Eu estou sentindo uma corrente elétrica percorrer todo o meu corpo. Felipe está a alguns metros de distancia de mim. Ele me mostra o polegar, perguntando se está tudo bem e eu confirmo, sorrindo. Acho a atitude dele muito bonita. Querer fazer eu me sentir mais vivo, chegando a esses extremos. Ele tem sido tão bom comigo. Nem sei como agradecer a Felipe o apoio que ele tem dado. Quando estou firme no chão novamente, ainda sinto minha cabeça rodando. Estou um pouco tonto, mas a sensação é ímpar. Agradecemos aos instrutores e seguimos em direção ao carro.

- gostou?

- gostei. Apesar de ter sido a maior loucura que eu já fiz, eu gostei.

- quando eu pulei, foi na hora certa também. Eu estava na época de aceitação sobre mim mesmo, ainda processando a ideia de que eu era gay. Vivia no quarto, sem falar com ninguém, querendo ficar sozinho. Quando eu pulei, me senti tão vivo. Tão livre. Não sei explicar, mas foi aí que eu decidi começar a contar para as pessoas mais próximas a verdade. Foi a melhor coisa que eu fiz. E é engraçado pensar que algo tão diferente tenha me ajudado. Por isso eu espero que isso te ajude a se sentir vivo, livre, tanto quanto eu me senti quando precisei.

Eu o olho emocionado.

- obrigado meu amor. De verdade.

- eu te amo.

- eu também, muito.

Ele pousa sua mão em meu ombro enquanto ele caminha do meu lado em direção ao carro. Me sinto tão bem agora. Ele me proporciona sensações únicas.

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O sol aquece meu rosto quando abro meus olhos. Está fazendo um dia lindo lá fora. Felipe não está na cama. Olho na tela de bloqueio do celular e solto um palavrão. Já são 09h. Hoje é meu primeiro dia de fisioterapia. E pelo que eu lembre, começa as 10h. Felipe surge pela porta com uma bandeja nas mãos.

- bom dia. – ele sorri bem humorado, trazendo tudo até a cama. Há dois copos, um com suco de laranja pra mim e outro com leite e achocolatado pra ele, algumas torradas, geleia e dois pedaços de melão.

- que banquete.

- tem que estar bem alimentado. Lembra que você tem compromisso hoje?

- sim, e temos que começar a nos arrumar daqui a pouco. Na verdade só você. Eu já tomei banho, só preciso trocar de roupa.

- que horas você acordou?

- acho que 07:30.

- por que tão cedo? Não precisava se preocupar com café meu amor. Eu comia qualquer coisa.

- quis fazer uma supresa, bebê. – ele se aproxima de mim e me dá uma torrada na boca, me fazendo rir. – além do mais, os pedreiros já estão aí. Você não ouviu a movimentação?

- não.

- bem, eu pedi para que eles esperassem um pouco para começar, pra não te acordar.

- obrigado meu amor. – puxo-o para perto e lhe dou um beijo. Havia me esquecido que a reforma começa hoje. Pelo que eu saiba, Felipe mandou adaptar todos os banheiros da casa, alargar as portas e colocar um elevador simples, mas que vai deixar eu me deslocar do primeiro pro segundo pavimento. Isso tudo significa muito pra mim, embora eu tenha resistido no começo por Felipe precisar gastar horrores. Mas ele insiste em me deixar o mais confortável possível. Acho que nossa conversa do outro dia foi um divisor de águas em relação a tudo que está acontecendo nos últimos tempos

Terminamos de tomar o café e então eu vou para o banho. Felipe me ajuda a me trocar rapidamente e saímos quase atrasados para a consulta. De repente, fico ainda mais ansioso, pensando em como vai ser. Será que vou ter respostas rápidas? Espero que sim. Agora seguimos para o bairro moinhos de vento, que é onde fica a clínica. A medida que chegamos no endereço, minha intuição de que o amigo de César é muito bem de vida só se confirma. Um dos bairros mais nobres da cidade, com muitas casas de alto padrão e se não me engano, o bairro que possui o metro quadrado mais caro da cidade. A vista é de se admirar. Não havia conhecido o parcão pessoalmente ainda. Enquanto passamos de carro por debaixo da passarela que dá direto ao parque, fico encantado vendo o verde quase se fundindo a avenida, com as árvores imensas bem perto de mim. Ainda que de longe, a vista do ponto turístico é um belo de um presente para os meus olhos. Demoramos mais alguns minutos até chegarmos em frente à clínica. Fica um pouco abaixo do hotel Sheraton. De repente, fico inquieto. Chegamos em frente a um prédio de dois andares, com amplas janelas e uma porta de madeira envernizada igualmente grande. Uma placa dizendo “Fábio Almeida- fisioterapia” já me adiantava que estávamos no lugar certo. Felipe me ajuda a sentar na cadeira e depois seguimos para a porta. Na recepção há uma moça de uns 20 e poucos anos, talvez 30, no máximo. O rádio tocando alguma estação de rádio qualquer em um volume médio da uma animada no lugar. Há vários vasos de plantas decorando a entrada, deixando tudo mais harmonioso.

- bom dia – Felipe lhe lança um sorriso amigável. – temos um horário marcado com o doutor Fábio.

- claro, deixe-me ver. – ela começa a procurar algumas pastas que estão em uma estante branca atrás dela. Logo ela pega uma e abre, olhando por uns segundos.

- Eduardo?

- isso.

- só um momento, vou avisar ao doutor que vocês chegaram.

Felipe se dirige até as poltronas que estavam perto da janela e eu o acompanho. Ficamos esperamos um pouco até ela retornar.

- podem entrar. O doutor está esperando vocês. – ela nos indica a porta e seguimos até onde ela nos mostra. Ao chegarmos em uma sala pequena, mas bem arejada e iluminada, vejo Fábio atrás da mesa, sentado em uma poltrona e rodeado de papéis. Logo atrás dele há uma pequena estante com livros, pastas e enfeites, tudo muito bem organizado.

- bom dia! – ele nos recepciona com um aperto de mão.

- bom dia, doutor. Meu pai indicou você. Falou muito bem do senhor, dizendo que foram colegas de apartamento na faculdade.

- o César? Ah sim! Grande homem. Você é filho dele? Ele não brinca em serviço hein? Começou cedo! – ele fala entre risos. – você deve ser o Eduardo. – ele me olha com carisma.

- eu mesmo.

- como você está?

- bem, doutor. Na medida do possível.

- que bom. Você trouxe seus exames?

- claro. Aqui. – pego-os dentro da pasta de plástico e passo para ele, que começa a analisar com atenção.

- acidente de carro, certo?

- isso.

- há dois meses? – ele me olha surpreso. – por que você demorou tanto?

Dou de ombros, não sabendo o que dizer. Não teria coragem de falar que estávamos procurando alguém que não cobrasse tão caro.

- em um caso como esse, quanto antes você buscar a fisioterapia, mais chances você tem de se recuperar. Pode haver uma melhora espontânea entre a primeira semana e o sexto mês após a lesão, dependendo do tipo da gravidade. Como a sua é um caso mais sério, teremos que trabalhar duro. Pelo menos ainda está em tempo. – ele termina sorrindo para mim, o que me alivia.

Então, seguimos conversando mais um pouco até irmos para uma outra sala, com bolas grandes de fisioterapia e colchonetes, entre outras coisas que eu não conheço bem. Primeiro ele faz alguns exercícios comigo deitado no colchonete. Em seguida, começamos a treinar meus movimentos em relação a cadeira de rodas. Ele me incentiva a sair de um banquinho e pular para a cadeira e ir da cadeira para o banquinho, repetidamente até eu pegar o jeito. A essa hora eu já estou suando, mas feliz com os resultados. Enquanto faço o que ele me pede ele me fala o que eu devo trabalhar pra melhorar, enquanto Felipe me motiva, orgulhoso. Ficamos assim o resto da manhã, treinando principalmente minha relação com a cadeira de rodas. Antes de irmos embora eu recebo mais algumas indicações e dicas de como repetir os exercícios em casa de forma segura. O tempo passou voando e quando vejo já estamos indo embora. Me sinto feliz com meu primeiro dia. Fabio é realmente um excelente profissional.

- e então meu amor? O que achou?

- adorei, Lipe. Eu estava bastante ansioso, mas agora estou mais tranquilo. É mais fácil que eu pensei.

- gosto de ver você confiante, com pensamento positivo. Esse é o Edu que eu conheço.

Lhe retribuo com um sorriso. Realmente estou mais positivo em relação a tudo. Estou começando a ficar mais calmo, a enxergar tudo de uma maneira melhor. Sinto que o pior já está passando.

Tateio minha mão até meu celular e verifico a nova mensagem. É Marina.

“Ansiosa pra ter você de volta nas aulas. Muitas novidades! Beijos ;)”

Sorrio para a tela ao terminar de ler. Eu senti muita falta da minha rotina agitada. Isso faz eu me sentir mais vivo, mais útil. Felipe entra no quarto já quase todo arrumado, apenas faltando finalizar o cabelo e abotoar a camisa, que está aberta até abaixo do tórax.

- bom dia dorminhoco. – ele me olha com um sorriso de canto. – acabou a vida boa, hein?

- você nem sabe como eu fico feliz por isso. – agora ele está me colocando na cadeira.

Faço minha higienização, tomo meu banho e me visto. Felipe, apesar de estar comigo, não precisou fazer quase tudo, como de costume. Depois de ter começado minhas sessões de fisioterapia, me sinto mais confiante e mais independente. Me sinto tão feliz por isso. Decidimos sair para tomar o café da manhã fora, mudando um pouco nossa rotina e poupando esforço e tempo na cozinha. Vamos até uma padaria perto de casa, aconchegante e calma, com pouco movimento de clientes.

- e então, como você tá se sentindo? – diz Felipe enquanto bebe seu café.

- muito ansioso. Um pouco com medo, também.

- medo de que?

- não sei. Faz tempo que eu estou parado. Espero que não tenha me enferrujado muito.

- mas mesmo que tenha, você logo pega o ritmo de novo. – ele me lança um olhar encorajador.

- é, você tem razão. E lá na agência, como tá indo?

- tudo indo ótimo. O projeto tá quase pronto e tá ficando muito bacana. O Oscar tá muito satisfeito com o resultado.

- que bom meu amor. Fico feliz por você.

Ele passa sua mão pela mesa, chegando até a minha e me fazendo carinho. Logo de início temo por alguém ver e fazer cara feia, mas depois não ligo. Logo terminamos, pagamos a conta e seguimos em direção à loja. Tento, em vão, controlar minha palpitação. Espero que eu me saia bem. O carro para no cordão da calçada e eu tiro meu cinto. Felipe me olha com aquele jeito paterno dele e eu já sei que vou escutar mil e uma recomendações.

- meu amor, se cuida tá bom? Qualquer coisa que você precisar, me liga, vou ficar com o celular perto o dia todo. Assim que você sair da aula me avisa, eu provavelmente vou estar a caminho pra te buscar, aí você me espera dentro do prédio. Não sai pra longe de ninguém em hipótese nenhuma, tá bom?

Balanço a cabeça em sinal de positivo várias vezes, reprimindo o riso. Quando ele percebe, tenta fazer uma expressão dura.

- você ri, mas eu me preocupo com você.

- eu acho isso fofo.

Ele suaviza a expressão e então eu recebo um beijo.

- mesmo não querendo, preciso te liberar agora.

Então, ele sai do carro e logo está com a cadeira perto da minha porta, me pegando e me colocando nela.

- até depois, meu amor.

- até. Te amo.

- eu também.

Assim que entro todos os meus colegas, junto com Ricardo, me recepcionam com uma pequena confraternização de boas vindas, com um bolo, salgados e refrigerante. Todos são muito calorosos, me perguntando como eu estou e me desejando um bom retorno. Ficamos conversando até chegar perto do horário da loja abrir, então Ricardo passa o resto do dia me treinando no caixa. Felizmente não é tão difícil quanto eu pensei, então logo eu pego o jeito. Me sinto feliz por estar de volta à ativa. Estou tão entretido que mal vejo o dia passar. Quando olho pro relógio já está na hora de ir embora.

Logo quando chego na frente da universidade avisto Marina, que quando me vê corre em minha direção.

- Edu! – ela me envolve com um abraço firme.

- oi Mari! Que saudade.

- as aulas estavam um saco sem você. Tava contando os dias pra você voltar.

- eu também. Não aguentava mais ficar em casa olhando para as paredes.

Ela começa a se balançar com a mão direita levantada, parecendo querer mostrar alguma coisa. Afirmo meus olhos em direção aos seus dedos. Há uma aliança de prata.

- Marina! Uma aliança!

- eu sei. – ela diz entre risos. – essa era a surpresa que eu queria tanto te mostrar. A Bárbara me deu na semana passada.

- eu fico tão feliz por vocês, minha amiga. Precisamos comemorar, né? Parece que o amor está favorável pra todos nós, mais ainda ultimamente.

- por que? – ela me olha curiosa.

- Felipe me pediu em casamento.

- mas o qu... – ela tampa a boca antes que gritasse pra todos ouvirem. – casamento? Meu deus Eduardo! – então, começa a dar pulos enquanto eu rio da sua atitude.

- é, eu sei. Eu também não consegui assimilar.

- você aceitou, né?

- ainda não. Acho muito cedo.

- é, talvez seja. Mas não se pode adiar o inadiável. Vocês foram feitos um pro outro. Só quero saber quem vai entrar de noiva. Acho que combina mais com você, todo glamuroso.

Mostro minha língua pra ela enquanto ela vem atrás de mim e começa a me empurrar pela cadeira. Eu não falo nada, meio que já esperava ela querer fazer isso. Marina vai ser minha guardiã enquanto eu estiver nas aulas. Se eu disser o contrário, vou arrumar briga com ela. Assim que chego na sala de aula meus colegas vem até a mim me dar as boas vindas. Me sinto tão acolhido, isso é ótimo. A noite toda foi motivo de comemoração, todos os professores me deixando o mais confortável possível e eu estou adorando estar de volta à ativa.

Chego em frente ao centro de eventos um pouco mais cedo que o necessário. Eu acho que nunca vou perder a mania de ansiedade em datas importantes. Eu estou inquieto desde a hora que acordei. Felipe está me mandando ficar quieto a todo o momento. Acho que estou deixando-o nervoso também.

- Edu, desse jeito você vai ficar atrapalhado lá na hora. – ele me chama a atenção pela décima vez na última hora.

- desculpa, eu não consigo ficar calmo. É a etapa estadual, Felipe. Eu não achava nem que eu ia passar da avaliação da faculdade pra concorrer. – digo passando a mão na calça, secando-a do suor que se acumulou mais uma vez, apesar do tempo não estar quente.

- tenta se concentrar, se acalmar, não ficar tão fora de si. Desse jeito isso vai te atrapalhar.

Viro para olhá-lo e vejo ele sorrindo pra mim. Checo o relógio mais uma vez. Ainda falta uma hora pra começar a prova. Assim que entro já avisto algumas pessoas nas cadeiras dispostas para as torcidas. Marina ainda não chegou. Daqui a pouco ela deve estar aqui. Me dirijo até a organização do evento e eles me dão todas as recomendações e me mostram onde vai ser minha pequena “cozinha” para a prova. É uma das primeiras, a estrutura parecida com a da prova regional, porém adaptada para mim. Após receber um livreto com regras, dicas e informações importantes, volto para Felipe para atormenta-lo com um pouco mais de inquietude.

Quando finalmente anunciam os concorrentes para o início da prova, começo a me despedir de Felipe enquanto ele me deseja boa sorte. Marina chega em cima da hora.

- desculpa o atraso. – ela diz enquanto tenta recuperar o fôlego.

- tudo bem. Já estou indo pra lá. Torçam por mim.

- boa sorte, caipira.

Vou até os outros, onde explicam as mesmas coisas que estavam no livreto, o que me deixa mais impaciente. Li e reli aquilo umas vinte vezes, já sabia o que podia e o que não podia. A prova tem o tema livre. Temos duas horas para fazer um prato de entrada, um prato principal e uma sobremesa. Engulo em seco. Será que vai dar tempo? Eu não havia pensado no tempo. Terei que ser rápido e fazer pratos ainda mais rápidos. Mas não posso parecer desesperado. Tenho que fazer algo que impressione. Que droga! Agora estou suando não só nas mãos, mas no corpo todo. Estou muito nervoso. O que vou fazer? Há uma bancada com muita variedade de condimentos, temperos e opções para as mais variadas combinações, mas não consigo pensar em nada específico. Temos dez minutos para mentalizar o prato e escolher tudo o que for preciso. Decido ir por partes. Começo a planejar meu prato e pego tudo o que acho que vou precisar, torcendo para não esquecer de nada importante. Olho toda hora para o relógio, tentando ser o mais ágil possível. Quando termino, bem em tempo do relógio marcar o fim dos dez minutos. Olho para Felipe e Marina, que estão lado a lado me olhando aflitos, mas com sorrisos nos rostos. De volta ao meu lugar, começo a por em pratica meu plano. Começo a preparar um tabule árabe, com salsa, cebolinha, hortelã e tomate. Como é uma entrada simples e rápida, logo estou partindo para o prato principal. É aqui que decido arriscar. Vou fazer lagosta regada na cerveja. É uma ideia louca que espero que dê certo. Enquanto deixo elas cozinhado começo a separar o que vou precisar para fazer meu brigadeiro com açaí e raspas de limão. Faltando quinze minutos para terminar o tempo começo a montar tudo nos pratos. Coloco o tabule em uma vasilha, a lagosta em um prato quadrado de porcelana e o brigadeiro esparramado em um prato raso, com as raspas de limão colocadas artesanalmente em cima da sobremesa e um pouco nos lados vazios do prato. Estou tão nervoso e querendo saber o que os jurados vão achar da minha loucura. Torço para que eles gostem de pratos diferentes. Aos poucos eles começam a experimentar todos os pratos. O meu, por eu estar bem na frente, é um dos primeiros. Tento arrancar algum sinal de sua avaliação pela expressão de seus olhares, mas é em vão. O jeito é esperar até o final. Eles demoram mais de duas horas para decidirem. Eu estou roendo minhas unhas. Depois de uma não tão breve discussão, eles voltam com um envelope. O envelope igual ao da outra prova. Mas não sei se meu nome vai estar ali dentro como da última vez. Eu estou com os dedos cruzados torcendo que sim. Eles entregam o envelope para o homem que está encarregado do resultado, enquanto ele vai até a bancada onde está o microfone.

- e o vencedor da etapa estadual do Concurso Espátula de Ouro é... – ele abre o envelope e olha o conteúdo, enquanto uma gota de suor escorre da minha testa.

- ... Eduardo Cardoso.

Eu olho para os lados, vendo a ração de todos e em seguida para Marina e Edu. Eles estão aos pulos, quase se abraçando, enquanto a torcida da faculdade esta eufórica logo atrás. Eu não havia percebido eles chegando. Eu começo a sorrir de nervoso enquanto o apresentador me da os parabéns e chega até a mim para apertar minha mão e me entregar o troféu. Meu coração está batendo frenético dentro do meu peito. Caramba, eu não estou acreditando. Vou até o Felipe e a Marina, que me enchem de abraços e beijos, me parabenizando. Eu estou tonto. Preciso de um copo de água. Caramba de novo. Eu venci! Agora vou para a final. Mal posso acreditar. Peço para o simpático homem que me anunciou para me trazer um copo de água. Estou quase passando mal. Eu ainda estou atordoado com tudo, enquanto Felipe e Marina estão eufóricos falando comigo e entre si sobre algo que eu nem consigo manter minha concentração, quando sinto alguém tocar meu braço. Olho para o lado e não consigo acreditar.

- Bernardo?

- e aí, super Chef! Meus parabéns. – ele fala animado enquanto me abraça. Eu o retribuo com uma mão o envolvendo, um pouco desengonçado e temendo pela reação de Felipe. Olho para ele por cima do ombro de Bernardo. Ele está fingindo prestar atenção no que Marina fala, agora nos olhando com o canto do olho. Reprimo um riso ao ver sua reação. Ele também começa a sorrir de canto, me deixando ainda mais confuso. O que está acontecendo aqui? Ele vai avançar em Bernardo de repente? Ou ele finalmente parou com essa briga infantil? Ele está se controlando? Ou será que não? Sacudo minha cabeça confuso, enquanto Bernardo termina seu longo abraço.

- queria ter vindo antes, mas cheguei a tempo de ver o resultado.

- é uma surpresa boa te ver aqui, Bê. Como você tá?

- estou bem. Um pouco atarefado demais. Tenho que arrumar algumas coisas que faltam até amanhã.

- ate amanhã? Por que? – arqueio a sobrancelha.

- eu vou embora depois de amanhã, Edu.

Olho para ele surpreso. Depois de amanhã? Tão rápido?

- por que você não avisou antes? Poderíamos ter nos despedido direito, saído pra comer alguma coisa, sei lá.

- eu não gosto de despedidas, Edu. Fica antecipando o sofrimento não é comigo. Mas domingo a Marina vai comigo até o aeroporto. Se você quiser ir lá me dar um abraço eu ficaria feliz.

- tudo bem. – eu ainda estou chateado por ter sido avisado tão em cima da hora.

- bem, eu vou indo nessa então. Não sei por quanto tempo mais o Felipe vai se segurar. – acompanho seus olhos até atrás de mim e vejo Felipe com a expressão mais fechada, parecendo impaciente. Olho pra Bernardo e dou de ombros, enquanto ele ri.

- mas obrigado por ter vindo mesmo assim. Significa muito pra mim, de verdade.

- não precisa agradecer Edu. Você sabe que você é importante pra mim. Não iria deixar de te dar os parabéns, muito menos iria sem te avisar.

Então recebo um último abraço antes de ele dar tchau pra Marina e ir embora, deixando Felipe visivelmente mais à vontade. Fico mais um pouco tirando fotos para jornais e afins, cumprimentando outras pessoas até a hora de ir embora. Quando já estamos dentro do carro avançando em direção à nossa casa, percebo Felipe quieto. Presumo que seja pela visita inesperada de Bernardo na competição.

- Lipe?

- oi. – ele diz com a voz suave, se virando pra mim por um instante antes de voltar a prestar atenção na estrada.

- tá quieto. Aconteceu alguma coisa?

- não. Impressão sua.

- eu sei que aconteceu. – olho para ele com a cabeça pendida de lado, tentando arrancar a verdade óbvia.

- eu não quero ser chato, Edu.

- é o Bernardo, né?

Ele balança a cabeça em sinal de positivo.

- olha Fê, eu sei que você não gosta dele, mas...

- Edu. Tá tudo bem. – sou interrompido com sua mão pousando na minha perna, fazendo carinho. – a Marina me avisou que ele ia e pediu para que eu entendesse. Ele tá indo embora depois de amanhã, certo?

- uhum.

- então. Não preciso mais me preocupar com ele. – ele me olha brincalhão.

- você é muito bobo. – balanço a cabeça, o cenho franzido.

- você tava tenso enquanto tava conversando com ele. Tava com medo de que eu fizesse barraco em público? Por que eu não sou assim.

- ah não? É a vez que vocês dois rolaram na frente do prédio, não conta?

Ele fecha os olhos rapidamente, reprimindo um riso, enquanto eu gargalho sobre ele estar encabulado.

- você me venceu.

- Felipe, você nunca precisou se procurar com o Bernardo. Eu sempre te amei. Eu e ele somos apenas amigos. Eu espero que um dia você entenda.

Não tendo uma resposta, decido encostar minha cabeça no banco e apreciar a paisagem antes de chegar ao nosso destino.

Entro no quarto e vejo Felipe terminando de arrumar as mangas de sua camisa de linho lavanda pálido, deixando-as dobradas até o cotovelo.

- você está lindo. – minha voz sai orgulhosa.

- obrigado. Você também tá lindo.

Fico sem jeito com o elogio, lhe retribuindo com um sorriso tímido.

- toma, não tinha te dado ainda. – lhe alcanço o embrulho com o seu presente.

- Edu, não precisava se preocupar.

- vai, abre. Você vai gostar.

Ele arqueia a sobrancelha, me olhando curioso e em seguida rasga o pacote com animação. Dentro da caixa há um envelope. Ele me olha confuso e eu reprimo um riso. O embrulho grande havia sido pra enganar. Após ele rasgar com mais cuidado, ele acha o real presente.

- ingressos pro show do Maroon 5? Meu Deus Edu, que incrível! – ele me abraça eufórico, visivelmente feliz pelo presente.

- as vendas abriram ontem. Pensei que era a oportunidade perfeita pra você ver eles pela primeira vez.

- é, eu sabia que eles viriam. Eu queria tanto ir. Obrigado meu amor. – ele se abaixa perto de mim e me dá um beijo intenso. Nossas línguas se encontram e eu o agarro forte, fazendo-o sentar no meu colo. Estou com saudade do seu corpo nu e quente colado no meu. Passo minha mão por dentro da camisa, alisando suas costas quando o celular toca. Eu afundo minha cabeça em seu peito, frustrado, enquanto ele ri.

- acho que são meus pais. – ele se levanta e segue até a cabeceira da cama e pega o celular.

- pai?

Oi, já estamos prontos sim. Vocês não vão vir aqui?

Tá bom, estamos indo.

Logo ao desligar, Felipe passa um pouco de seu perfume e se vira pra mim.

- pronto?

- sim. Eles não vão passar aqui?

- ele disse que vão se atrasar alguns minutos, a gente se encontra lá. Vamos indo pra pegar a mesa.

- tudo bem.

Recebo um beijo suave e vamos até a garagem pegar o carro e depois seguimos para o centro, em um restaurante refinado. Talvez o mais refinado que eu já tenha ido. Há uma iluminação propositalmente escura, com velas decorativas nas mesas e um lustre enorme no centro do salão, deixando tudo bem intimista. Uma música ambiente tocando baixinho faz eu relaxar. As toalhas são de seda, branca embaixo e outra menor em vinho, na parte de cima. O garçom logo chega com o menu de bebidas. Felipe que fica encarregado nessa parte, já que ele entende melhor do que eu. Pouco depois de escolher o garçom chega com uma taça de champanhe. Foram raras as vezes que eu bebi. E essa deve ser a mais fina e cara de todas, sem dúvidas. Vejo Felipe abrir um sorriso largo olhando em direção à porta. Sigo seu olhar e vejo César e Paula. Estão tão lindos. César com um terno cinza escuro com manchas de giz e camisa azul com os dois primeiros botões abertos. Paula está com um vestido de cetim preto de alças, o cabelo preso em um coque, com um colar de rubis e brincos combinando.

- Edu, quanto tempo! – Paula chega primeiro até nos, me dando um abraço. – como você está?

- bem e você?

- também. Você tá linda.

- obrigado. Você também. – ela parece tão mais simpática do que antes. Esta aparentemente mais leve e descontraída.

- e eu, também estou bonito? – César pega na gola do blaser, me olhando com o olhar brincalhão, fazendo todos rirem.

- também César. Muito elegante.

- ah, muito obrigado. – ele me dá um sorriso largo antes de apertar minha mão.

Todos se sentam à mesa e começamos a conversar sobre a vida de todos. Paula está animada com seus clientes. César está contando orgulho que o rendimentos da agência cresceu desde que assumiu. Bem, eu estou feliz por estar vivo. Não tenho nenhum grande feito para contar, a não ser que tive uma segunda chance de viver. Estou aprendendo tantas coisas nos últimos tempos, que já não fico mais triste pelos cantos por ser cadeirante. Passei a entender mais coisas, a perceber mais coisas. Eu sou uma nova pessoa.

- parabéns também para o Edu, que vai para São Paulo na final do concurso de gastronomia. – Felipe me olha orgulhoso, com a taça de champanhe erguida, me tirando dos meus devaneios.

Todos erguem as taças em seguida, me cercando de olhares e sorrisos surpresos, o que me deixa encabulado. Eu tinha até esquecido de contar sobre o concurso.

- eu gostaria de contar uma coisa pra todos aqui, aproveitando que estamos todos juntos. – Felipe continua, ainda de pé. – como vocês sabem, eu fiquei à frente de um projeto importante na agência nas últimas semanas. O resultado foi mais que satisfatório. Isso fez meu gerente me promover de estagiário a funcionário integral.

Todos olhamos para ele incrédulos.

- meu Deus Felipe isso é incrível! – falo puxando-o para um abraço. Paula e César estão eufóricos, enchendo-o de felicitações. Eu sei o quanto isso era importante para Felipe. Imagino como ele deve estar feliz nesse momento. O garçom logo começa a trazer nosso jantar e o resto da noite se resume a felicitações e comemorações, tanto pelo aniversário de Felipe quanto pela notícia que ele acaba de nos dar.

Marina me manda uma mensagem que está a caminho. Desço até à frente do hotel e espero ela chegar. O caminho até o aeroporto já é regado a despedidas. Marina já adianta mil e uma recomendações ao irmão, deixando escapar uma lágrima ou outra de vez em quando. Chegamos um pouco cedo demais. O voo de Bernardo está marcado para as 14:02, mas agora é recém 13:15. O aeroporto é lindo. Outra coisa que estou conhecendo pessoalmente só agora. Tem um movimento médio, com filas moderadas. Nos sentamos para esperar a hora passar.

- assim que você pisar em Berlim você me liga. – exige Marina.

- pode deixar, Mari.

- você tá com dinheiro mesmo? Se precisar me fala que eu saco ali na agência agora.

- não precisa. – Bernardo está quase rindo, assim como eu. Marina tem dois lados totalmente opostos, mas ultimamente o lado emotivo dela está bastante aflorado.

- e você sabe, se precisar de qualquer coisa me fala. A hora que você quiser voltar pra cá, eu vou estar de braços abertos.

- eu agradeço Mari, mas não vai ser necessário. Vou me instalar em Berlim e quando eu tiver bem de vida, levo você, o pai e a mãe junto pra lá.

- acho que eu estou bem aqui. – Marina torce a cara. Acho que ela não sairia do Brasil assim tão fácil.

- mas vai pelo menos me visitar nas férias, certo?

Ela afirma com a cabeça, segurando o choro novamente.

- o que foi Mari?

- vou sentir sua falta.

E então eles se abraçam. Imagino como deve ser difícil essa despedia. Despedidas nunca são fáceis.

- e você Edu, vai me visitar?

- claro. Algum dia eu vou, pode ter certeza.

- se até lá o Felipe tiver mais calmo comigo, pode dizer pra ele que é bem vindo também.

Apenas sorrio. Não acho que vai ser tão fácil assim. Quando vemos, já está na hora de ele despachar a mala. Ficamos esperando ele enquanto ele enfrenta a fila nos guichês.

- tá mais calma?

- um pouco.

- ele tá indo ser feliz minha amiga. Vai correr atrás dos sonhos dele.

- eu sei. Mas eu não imaginava que teria que ficar longe dele. Não agora.

Lhe dou um abraço de consolo.

Bernardo está de volta com os bilhetes do check in e apenas com sua mochila de viagem nas costas. Ele estende os braços para Marina e pela primeira vez hoje vejo ele chorando. Eles conversam algo que eu não consigo entender enquanto eu assisto emocionado. Depois de alguns minutos sem se largar, Bernardo se desvencilha de Marina e me pede um abraço também. Automaticamente seguro o choro. Envolvo meus braços firme em volta dele, desejando boa sorte e juízo. Vou sentir muita falta da companhia dele.

- queria te falar uma coisa. – ele cochicha em meu ouvido. – se você ficasse comigo, eu desistia de tudo e ficava aqui com você.

Meu coração se aperta dentro do peito com isso.

- Bernardo, eu...

- não precisa falar nada. Seja feliz, meu amigo. Eu também vou buscar minha felicidade lá. Eu te amo.

Ao me separar dele, noto que nós dois estamos chorando. Passo a mão em seu cabelo, bagunçando-o.

- se cuida, ruivão.

- pode deixar, caipira.

Ele enxuga o rosto e segue para a porta de inspeção por raio x. Antes de desaparecer de nossa vista ele se vira e acena para nós. E então, não conseguimos mais ver ele após passar pela inspeção. Marina começa a chorar novamente e eu a abraço, consolando-a. A frase que Bernardo me disse continua ecoando na minha mente. Ele realmente seria capaz de largar tudo por mim? Pela pessoa que ele gosta? Então eu lembro que há alguns dias eu também largaria tudo aqui em Porto Alegre pra deixar Felipe livre de mim. Sim, quando se ama a gente faz coisas absurdas. Abre mão de coisas inimagináveis. Eu espero que Bernardo encontre alguém capaz de fazer isso por ele.

Comentários

Há 5 comentários.

Por Dougglas em 2015-12-26 11:06:53
Ain, que capítulo lindo. Desde o grupo de apoio, a surpresa do Lipe, o concurso, a volta pro trabalho e pra faculdade, o jantar de aniversário, a despedida do Bernardo. Que ele encontre alguém em Berlim, ele merece. Amando muito essa história, e cada vez mais me apaixonando. Serio. 😍😍😍😍
Por Luã em 2015-10-16 00:02:15
Oi gente! Eu sei que estou demorando um pouco mais para postar. Peço desculpas por isso, mas há dias que são corridos pra mim. Mas eu vou tentar postar o mais rápido possível, porém, sempre prezando pela qualidade (afinal, agilidade é bom, mas a pressa é a inimiga da perfeição). Eu achava que não tinha essas coisas, mas escrever também tem seus desafios! E obrigado por acompanharem. Estou mandando mais um capítulo para o site agora, espero que gostem! Abraços (:
Por Niss em 2015-10-13 01:30:15
Genteeeee..... Que despedida hein.... Bernardo!! O capítulo foi maravilhoso, o Lipe e a sua surpresa pro Edu, a volta ao trabalho, a faculdade.. O amor deles é lindo!! Espero que o Eduardo aceite a se casar. Mas eu fico confuso em relação ao Be. Espero que ele consiga alguém legal pra ele na Alemanha. Que bom que o Edu conseguiu passar pra próxima etapa da competição. Espero que ele consiga se recuperar e é muito lindo essa forma com que ele encara a vida de cadeirante. Espero pelo próximo. Kisses Niss.
Por luan silva em 2015-10-13 00:20:32
gostei muito do grupo de apoio e fiquei muito feliz por ele ter ganhado de novo e espero q ele vença a final e foi muito triste e fofo o q o bernado falou e eu tô muito ansioso pelo proximo..
Por diegocampos em 2015-10-11 08:41:13
Muito triste ver o Bernardo indo embora, espero que ele consiga ser feliz, o Felipe tá sendo muito fofo com o edu muito bom ver eles felizes já tava com saudades desses dois que bom que voltaram ansioso para o próximo.