12. Guerra declarada

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série O garoto da mesa 09

Em minha frente, tudo escuro. Estou de olhos fechados, sei que não posso abri-los pois não tenho força o suficiente para o fazer. Minha garganta parece estar queimando junto com o restante ao meu redor, meus pulmões parecem ter se diminuído na proporção de dois grãos de feijão; eu não consigo respirar, por mais que eu tente. Sinto as gotas de suor brotando na minha testa e escorrendo pelo rosto, agora encostado no chão insuportavelmente quente. Aqui, sem poder fazer nada, a merda da minha incapacidade parece ser mil vezes maior. Por que eu não consigo simplesmente fazer nada direito? Em um segundo estava tudo bem e depois, tudo em chamas. Eu poderia até sorrir da minha própria desgraça, ao pensar que todos estavam certos ao ficar preocupados; eu não sei fazer nada sozinho. Eu fui louco o suficiente para tentar provar o contrário e a minha droga de vida provou que eu não sou capaz de nada. Estou com minha jaqueta posta em meu rosto, tentando ao máximo não absorver a fumaça tóxica que paira em cima da minha cabeça, mas ainda assim sigo que inalo um ar impuro, pesado, mortal. Os últimos vestígios de força que eu havia encontrado em meu corpo para a tentativa falha de sair daqui se esgotaram, então eu sinto que estou à mercê do destino.

- Edu! Meu Deus!

Murilo! Eu poderia quase sorrir ao ouvir sua voz. Ou será que eu estou alucinando? Recebo a resposta em fração de segundos, quando sinto que sou erguido do chão. A maior surpresa pra mim no momento é em relação à força de Murilo, que parece ser muito maior do que eu poderia imaginar.

- o que você tá fazendo aqui dentro?– eu tento, mas minha voz sai fraca, baixa e rouca, um pouco antes de eu tossir compulsivamente, por causa da fumaça.

- vi que você não tava lá fora e vim te procurar. Que merda, olha isso! Você tá machucado... – seu tom de desespero é agonizante e só agora eu me atento ao ferimento na minha testa, que dói no momento em que eu coloco a mão.

- ai! Droga. – tento ver se está sangrando, e como eu esperava, lá está, meus dedos manchados de sangue.

- tá tudo bem, a gente já vai sair daqui. – sua respiração fica pesada, então ele tosse várias vezes. – merda!

Vejo em seu rosto o desespero ao se deparar com todo esse desastre. Um nó enorme se embola em minha garganta, que a cada segundo fica mais seca. Agora o ar quase não passa por ela, eu preciso manter a maldita calma se eu quiser ficar vivo. Porém, o pior é que minha traqueia e se torna tão estreita não apenas por causa fumaça tóxica, mas também por um sentimento estranho de culpa. Será que eu poderia ter sido mais atento e talvez ter evitado isso? O restaurante estava nas minhas mãos, droga! Na verdade, ainda está. Ou o que sobrou dele.

- a saída de emergência tá bloqueada!

Seu grito me traz de volta para o agora, sinto que estava quase desmaiando. Meus olhos semicerram-se e olham em direção ao móvel enorme de aço tombado na diagonal, impedindo a passagem até a porta. Droga! Merda!

vou tentar a saída do salão! Que Deus permita que não esteja bloqueada. Precisamos sair daqui, droga! - Ele fala como se fosse consigo mesmo, até mesmo porque ele deve estar pensando que estou desacordado. Agora eu poupo minhas forças, sei que não tenho muito o que fazer. Murilo caminha com dificuldade, comigo em seus braços, em meio à luz laranja incandescente, passando por escombros e móveis derrubados de forma caótica. Que ótima hora essa para eu não conseguir andar, droga! Eu queria poder sair daqui andado sozinho, sem ter que arriscar a vida de ninguém. Se algo acontecer com Murilo, a culpa que já me martiriza vai ser ainda pior.

porra!

O suporte da lâmpada fluorescente cai a poucos centímetros de nós, fazendo um barulho alto ao tombar ao lado de seus pés. Sua voz sai alta, rouca, então ele tosse, e eu me desespero. Já perdi a noção do tempo, parece que estamos aqui há mais de um dia e não sei nem se vamos conseguir sair. Pelo menos não vivos.

- vai dar tudo certo, eu sei que vai.

Sinto que seus passos se apressam, ao mesmo tempo em que ele abafa seu rosto na superfície do mesmo pano que o meu, certamente tentando escapar da fumaça que sai em meio às chamas fortes. Meus olhos voltam a ficar pesados, o ar ficou doloroso de se respirar, minha pele queima e minhas esperanças estão virando cinzas, junto com todo o resto nessa cozinha. Será que estou destinado a morrer aqui? Longe de todos? De Marina, de Felipe, de minha mãe? Não, isso não pode acontecer, não era pra ser assim. Era pra eu ficar aqui um ano e voltar pra Porto Alegre, como um profissional melhor, como uma pessoa melhor, mais independente e corajosa. Porém agora eu já não sei fazer mais nada a não ser ansiar por minha vida e pela vida de Murilo.

Meus ouvidos captam o som da porta de emergência abrindo e o vento frio do lado de fora me causar um arrepio no corpo inteiro. Santo Cristo, conseguimos! Tento mais uma vez abrir meus olhos e, com muito esforço, vejo dois bombeiros vindo da porta em direção à nós, no exato instante em que nos veem. Pareço estar metade acordado, metade desacordado. Consigo ver tudo, mas meus sentidos não me respondem, eu não consigo falar, não consigo chorar ou sorrir, apenas vejo tudo se passar em flashes rápidos e confusos.

- achei outra pessoa! – ele grita, o tom de voz rouco e visivelmente desesperado. Há uma multidão reunida próxima ao portão de carga e descarga de mercadorias, agora aberto, sendo contida por alguns bombeiros, enquanto deixamos totalmente a área coberta do prédio, saindo para a noite quente e caótica.

- aqui, precisamos de ajuda aqui! – um dos bombeiros pede, enquanto caminha ao nosso lado, chamando a equipe de resgate para prestar os primeiros socorros.

não tem mais ninguém! – outro deles anuncia, e só então eu me apego ao som da água, que tenta bravamente apagar as chamas.

"Cassiano havia confiado em mim."

Essa foi a última frase que eu pensei, antes de não conseguir mais me manter acordado.

____

Pisco alguma vezes e olho em volta, despertando de um sono conturbado. Felipe e minha mãe estão dormindo nas poltronas do quarto, desajeitados; ela com uma manta fina cobrindo suas pernas e ele apoiando a cabeça em seu próprio ombro, então eu sinto uma mistura de culpa e de alívio por eles estarem lá. Ontem eu não consegui vê-los, o efeito dos remédios estava forte quando me trouxeram para o quarto, então tecnicamente é a primeira vez que estou vendo-os. Livia me disse que eles ficaram assim todas as noites enquanto eu estava na UTI, dormindo lado a lado, na sala de espera. Estar no hospital, numa daquelas camas frias e duras me fazem sentir pior do que já estou, fazendo-me desejar estar em casa, além de me trazer lembranças ruins e indesejáveis de alguns anos atrás. O relógio quadrado em branco aponta 8:13, me faz perceber o quanto eu dormi, mesmo que essas horas de sono não tenham me ajudado em nada, nem me trazido descanso ou algum tipo de calma. Meu pensamento me joga direto no restaurante, em todos os funcionários, em Murilo. Ele recebeu alta ontem, enquanto eu ainda estava na UTI; me sinto chateado por ainda não consegui vê-lo e nem agradecê-lo por sua coragem. Ele deve estar tão atordoado quanto eu, com certeza deve estar acalmando os pais e se recuperando do trauma, mas mesmo assim queria ter o visto. Me sinto tão martirizado pelo fato de ele ter se arriscado para me salvar, ele poderia ter morrido. Eu poderia ter morrido. Talvez essa tenha sido a experiência mais perigosa e exaustiva que eu tenha passado na vida e eu não sei nem o que pensar sobre isso. Toda vez que eu tento, minha cabeça dói, o peso da responsabilidade me esmaga me faz recuar, exatamente como o covarde que eu sou.

- filho?

A voz inconfundível de minha mãe me traz um conforto e uma vontade enorme de chorar. Quero tanto um abraço seu, quero tanto ir pra São Valentim, esquecer de tudo isso e poder seguir minha vida sem nem lembrar que vim pra essa droga de cidade, quero tudo isso ao mesmo tempo, porém agora o que eu mais quero é um simples abraço. Tendo isso, sei que o resto fica bem. Forço um sorriso para ela, tentando mostrar que estou bem, mas minha tosse compulsiva me desmente na hora. Felipe se mexe na poltrona, mas não se acorda. Ela, por sua vez, se aproxima e se senta na beira da cama, passando sua mão em minha testa e me dando um beijo no rosto.

como você está se sentindo?

bem. Na verdade ótimo, se isso for a desculpa para conseguir alta agora.

Ela ri, assim como eu, então inexplicavelmente minha mente se torna um pouco menos nebulosa.

você me deu um susto tão grande, Edu. Eu sabia que não era uma boa ideia você vir pra cá, tão longe de todos nós.

isso poderia ter acontecido em qualquer lugar, mãe. - eu a contrario, mesmo sabendo que não tenho muita moral pra isso. Ela me olha, há preocupação e aflição em seus olhos pequenos por causa do sono, então eu sei que no fundo eu a magoei. Nunca ouvi seus conselhos sobre sair de debaixo da barra de sua saia, e nas duas vezes em que eu quis voar pra longe eu me dei mal. Em ambas eu a deixei em pânico, com noites mal dormidas, com o coração na mão.

eu te devo desculpas, mãe. Sempre fui tão cabeça dura, sempre priorizei minhas vontades e não ouvia o que a senhora tinha pra me dizer. Achei que minha força de vontade era maior do que a sua experiência.

Noto que seus olhos estão brilhando, as lágrimas estão aparecendo querendo descer de suas córneas, então eu também não me contenho. Ela pega minha mão com suas duas mãos e aperta-as, sorrindo e piscando para afastar o choro.

você é igualzinho ao seu pai, Eduardo. Cabeça dura, teimoso, sem tirar nem por. Perdi as contas de quantas vezes eu quis bater em vocês dois. Mas eu tenho tanto orgulho de você, meu filho. Você é capaz de ir atras dos seus sonhos, mesmo que eles estejam longe, fora do seu alcance. Você se tornou um homem maravilhoso, me enchendo de orgulho todos os dias, tanto quanto me enche de preocupação. Eu te amo meu filho, você não precisa me pedir desculpas. - ela acaricia meu rosto, limpando minhas lágrimas, que insistem em cair mesmo que eu as limpe o tempo todo.

se isso for psicologia inversa pra eu me sentir culpado e voltar pra São Valentim, saiba que não vai colar.

As risadas tomam conta do quarto, fazendo com que eu tussa um pouco mais, então eu olho instintivamente para Felipe, que dessa vez se acorda. Seus olhos se abrem lentamente e, uma vez despertos, me procuram de imediato. Eu quase posso sorrir, ele também, mas sei que há algo de errado entre nós dois, algo que precisamos resolver.

Edu..

Me mexo lentamente pra sentar na cama, enquanto ele se levanta e ajeita sua camiseta, tirando os olhos de mim por uns segundos. Sem contato visual, fica mais evidente o quão triste ele está. Posso ver o quanto ele está se esforçando pra não dizer nada, para não me perguntar nada. Felipe sempre foi assim, não consegue esconder seus sentimentos, ainda mais quando eles me envolvem. Eu não quero o julgar agora, ele provavelmente largou tudo pro alto por minha causa, mas ainda estou triste por ele mudar de conduta toda vez que eu me aproximo de algum homem que ele não conhece. Eu não sinto confiança vinda dele em relação a mim, mesmo depois de tantos anos juntos. O que eu preciso fazer pra mostrar a ele que eu não faria nada? Eu sinceramente não sei. Quando estou completamente sentado, sinto uma coceira na garganta, então começo a tossir; a droga da fumaça deve permanecer me incomodando por alguns dias, a garganta dói sempre que eu falo ou que engulo alguma coisa.

quer uma água? - minha mãe já ameaça levantar, porém eu a toco no braço, fazendo que não com a cabeça, ainda tossindo.

não precisa, eu tô bem. Vai ser assim por alguns dias.

quer que eu chame alguma enfermeira? - Felipe toma a frente, finalmente vejo seu rosto se desmanchar um pouco, a preocupação vencendo a mágoa.

não precisa, eu tô bem.

Ele então senta-se ao lado de minha mãe, pousando sua mão em meus pés e acariciando-os. Queria tanto poder sentir seu toque, nem a sensibilidade eu pude ter de volta depois daquela maldita cirurgia.

o médico disse que você está reagindo bem aos exames, já não há indícios de lesões no pulmão, acho que logo você poderá voltar pra casa.

Quando ele fala "pra casa", sei que ele quer dizer Porto Alegre. Seus olhos não mentem, sua vontade de eu ir embora de São Paulo imediatamente é clara. Sei que isso não se deve a Murilo, os problemas aqui são bem maiores do que isso. Mas mesmo assim, pra ele, meu lugar não é mais aqui. Na verdade nunca foi.

tomara. - digo isso sorrindo, um sorriso um tanto desanimado. Não sei se quero voltar pra Porto, não sei se quero ficar, não sei nem se eu ainda tenho credibilidade pra continuar no cargo.

quando você for embora, quero que você fique um tempo comigo em casa. Essas cidades grandes estão te deixando esgotado, filho.

é, eu também acho que preciso ficar um pouco longe de tudo isso, depois que eu acabar o que eu preciso fazer aqui.

O Cassiano já voltou. Veio te ver ontem, mas você estava no meio de um exame. Acho que ele vai voltar a assumir o restaurante.

Assim que Felipe me conta isso, meu coração salta em um soco. Cassiano está aqui. Claro que estaria, o que aconteceu com o restaurante e mais do que suficiente pra fazê-lo voltar às pressas.

com licença. Edu, acordou cedo!

O enfermeiro entra no quarto, me olhando com otimismo. Eu sorrio, ele é uma das pessoas que tem me dado bastante força desde que eu sai do tratamento intensivo.

acordei pra arrumar minhas coisas. Já posso ir embora?

Todos no quarto riem, enquanto ele traz minha medicação.

ainda não, amigo. Você inalou bastante fumaça, ainda está expelindo bastante secreção, apesar do seu avanço ainda vai precisar ficar hoje de observação. Só mais um dia, o que acha? Não é tão ruim assim, vai!

Eu franzo os lábios, derrotado, mas sei que é o certo. E, como não tenho escolha, confirmo com a cabeça e sorrio. Ele afere minha pressão, que segundo está boa. Logo em seguida uma assistente surge na porta, fazendo o quarto se encher mais um pouco. Ela me traz o café da manhã, e mesmo eu não sentindo fome, preciso me alimentar para receber a medicação. A moça, que se não me engano se chama Alice, pede licença para Alex e sorri para mim, permanecendo muito pouco devido ao tempo. Alex, com suas mãos pálidas e ágeis, checa os equipamentos e conversa com minha mãe e com Felipe enquanto isso. Ele realmente é bom no que faz. Depois que eu como, ele aplica minha medicação no equipo, nome que eu aprendi ontem, já que antes, pra mim, isso se chamava mangueirinha. Penso que antes de eu ter alta, Alex vai ter me dado um curso completo de enfermagem básica, e isso não me parece ma ideia. Por último ele troca o soro vazio por outro cheio e então me analisa, sorridente.

você está se saindo bem, Edu. Logo logo vai estar em casa.

Deus te ouça, Alex. - faço uma cara teatral de quem está pra poucos amigos e então, mais risadas. Olho pra Felipe, que por alguns segundos parece ter esquecido de tudo, assim como eu. No entanto, nossos olhares se cruzam e lá estamos de novo, trocando palavras não ditas.

bom, por enquanto é isso. O médico vai vir aqui depois te ver. Qualquer dúvida pode conversar com ele. Preciso ir agora, se precisar é só chamar. Se cuida, Edu!

Sorrio genuinamente pra ele enquanto o vejo seguir seu caminho para fora do quarto. Sem duvidas ele deixa a situação menos pior do que poderia ser. Meus olhos correm para Felipe, que me analisa, agora com a expressão mais suave. Eu sinto tanto sua falta, cada dia mais; sei que essa é a fase mais complicada do nosso relacionamento até hoje, sei também que eu estava ciente disso quando decidi aceitar a proposta de Cassiano, mas jamais pensei que seria tão ruim assim. Fico triste por ver que ele está tentando, de alguma forma, dizer que está magoado, ele está tentando consertar as coisas, mas eu não sei o que podemos fazer: eu não quero voltar pra lá, ele também não aprova que eu continue, o que significa que estamos em um impasse.

Minha mãe, que percebera o clima entre eu e ele só agora, pigarreia e se levanta, olhando seu pequeno e delicado relógio de pulso.

- eu acho que vou ao banheiro e depois comer alguma coisa. - ela sorri, em especial pra mim, então eu sorrio de volta, quase revirando os olhos. Ela sabe ler cada linha das frases dos meus pensamentos. Talvez, agora os de Felipe também, já que não são muito diferentes. - você quer alguma coisa, Felipe?

- não dona Helena, obrigado.

Vejo-a pegar sua bolsa em cima do balcão, ao lado da antiga e pequena TV de tubo, antes de deixar-nos a sós. Felipe se mexe um pouco, aproximando-se timidamente de mim. Ele está lindo hoje, apesar da cara de cansaço. Sua barba está desenhada, os cabelos caindo em pequenos tentáculos para o lado, sua camisa azul acinzentada com alguns amassos devido à noite mal dormida. Contudo, seus olhos, cansados e atentos a mim, já me dizem absolutamente tudo o que ele não fala.

- até quando você vai ficar?

- não sei. Até o final da semana, talvez. Falei pro pessoal que eu não tinha prazo pra voltar. Mas a gente tá no meio de um projeto pra uma empresa de eventos, uma empreitada grande...

- imagino. - a tosse aparece novamente, me fazendo sentir raiva. Meu peito, meus pulmões, minha cabeça, tudo dói.

sua mãe ficou preocupada com esse lance da tosse. Você não dormiu direito à noite toda por causa disso.

ela é preocupada por tudo - em tese, agora eu não posso a julgar, já que a situação não é das mais simples para eu pedir para ela relaxar. - imagino como deve ter sido a viagem pra cá. Ela nunca andou de avião antes.

ela nem prestou muita atenção nisso, mas sim, foi impagável.

Começamos a rir, o que faz eu pensar que estamos progredindo.

- odeio deixar as pessoas preocupadas, principalmente ela. Vocês tem tanto com o que se preocupar, ela tem o restaurante, você a agência...

- você não tem que ficar se sentindo assim. As pessoas que te amam vão estar sempre aqui por você.

- é, eu sei.

- ela não arredou o pé daqui. Foi só no hotel tomar banho e trocar de roupa ontem mo começo da noite e voltou. Eu e a Lívia tentamos convencer ela a pelo menos dormir lá, mas você sabe como ela é...

- é eu sei, eu puxei a ela nisso.

- ser cabeça dura?

Afirmo com a cabeça, reprimindo um riso, ele sorri de canto, suspirando fundo.

- você assustou muito a gente. Pensamos que você tinha... - ele pausa, guardando as últimas palavras. - quando eu vi no noticiário, meu coração parou. Liguei imediatamente pra Livia, que também não sabia de nada. Tava dormindo.

- foi tudo muito rápido... O Cassiano deve estar uma fera comigo.

- ele não tem esse direito, você foi quem mais se feriu, a culpa não foi sua, foi uma fatalidade.

- isso foi uma grande merda, isso sim.

Ele sorri, pela primeira vez nos últimos dias estamos tendo uma conversa, não uma discussão.

- você ainda vai ficar? Agora que o restaurante... bom, você sabe.

- eu não sei. É complicado, tenho que conversar com o Cassiano sobre isso, mas acredito que eu tenha que ficar. O restaurante vai estar fechado mas temos bastante coisa pra arrumar, limpar, tentar recuperar...

- todos estão sentindo sua falta lá em Porto. Em São Valentim, meus pais, o Pedro, sua tia, todos estão ansiosos por notícias, todos querem você lá. Eu quero você lá.

A última frase é enfatizada, suas córneas brilham, isso soa muito como um pedido.

- eu não posso prometer que irei embora, Fe. Eu também sinto muita saudade de todos, de tudo, mas eu tenho responsabilidades aqui.

- é, eu sei. É loucura pedir isso. - ele se levanta, indo em direção à janela, concordando não necessariamente por achar que estou certo, mas para evitar brigas. Sinto um pouco de amargura em sua frase, não chegando a ser sarcasmo, pois seu tom é triste. Parece que estamos retornando à estaca zero.

- ei... - eu o chamo, então por alguns segundos ele me ignora, observando ao cinza da cidade lá fora. Pouco depois ele me olha, indiferente. - vamos achar um jeito de fazer isso dar certo. Só preciso resolver as coisas aqui, são só mais alguns meses, talvez nem isso.

Tento passar segurança e veracidade em cada palavra que falo para ele. Preciso fazer com que as coisas não saiam erradas como nas últimas vezes em que nos falamos. Sinto que minha relação com Felipe está enfraquecida e isso é a última coisa que eu poderia querer. Ele me fita de longe, a luz de fora refletindo seu rosto cansado, desesperançoso. Será que ele está disposto a tentar um pouco mais?

- já passamos por tanta coisa juntos, Edu, mas nada se compara ao que eu estou sentindo agora. Eu preciso tanto de você comigo, esses meses estão sendo difíceis sem você do meu lado. Eu sei que esse é o seu sonho, eu mais do que ninguém sei o quanto isso é importante pra você, mas é loucura... Vendo você aqui, sei que é loucura, eu me sinto culpado por ter te encorajado a isso, você poderia ter evoluído muito estando lá em Porto, não precisava estar aqui, longe de todos, arriscando sua vida.

Por um momento, eu não sei o que dizer. Sinto que ele está pondo pra fora tudo o que ele guardara durante esse tempo, não posso interrompê-lo ou dizer a ele que está errado, pois não está. Sei que tudo isso é uma loucura, mas sei também que essa foi a minha escolha. Felipe, ao ver que eu não teria nada a falar, volta a se aproximar de mim, sentando-se do lado da cama.

- eu vou tentar, vou tentar entender, não quero ser egoísta, mas depois do que aconteceu com você nem eu, nem sua mãe e nem ninguém quer você longe. Eu quero tanto que você volte com a gente pra Porto Alegre. Você acha que pode pensar sobre isso?

Engulo em seco, confirmando com a cabeça, mas já sabendo que as chances de voltar são mínimas. Se eu desistir agora, todo meu esforço vai ter sido inútil. Voltar agora seria desistir, algo que, pra mim, seria pior do que fracassar indo até o final. Além do mais, preciso manter o mínimo de postura para que pelo menos eu possa voltar para meu antigo cargo no sul com o mínimo de dignidade.

A porta se abre, atrapalhando meus pensamentos e me fazendo jogar minha atenção para Livia, que entra tímida, os olhos atentos em mim e em Felipe. Eu lanço um sorriso para ela, que por sua vez retribuo, tentando manter sua animação usual. Só agora que paro para lembrar do que aconteceu com ela no desfile, Cesar, o transtorno alimentar... Ela vem passando por tanta coisa e, obviamente, o acontecimento dessa semana deixou todos exaustos, inclusive ela.

- e aí, moço.

- e aí, moça. Veio cedo.

- estava resolvendo algumas coisas na rua desde as 7h. - ela se move até a poltrona e larga sua bolsa, indo até Felipe e dando um abraço e um beijo no rosto. - como passou a noite?- - bem.

- fiquei melhor depois de ver dois guarda costas dormindo do meu lado.

Felipe sorri, vejo seus olhos cintilarem, leves, cuidadosos, orgulhosos.

- onde está sua mãe?

- foi comprar alguma coisa pra comer. Ela deve estar sem comer há um bom tempo, se eu bem a conheço. E você também, né Felipe?

- ele confirma com uma careta de desdém, fazendo-nos rir pela minha tentativa falha de reprovação paternal. Sei que ele presta esse papel muito melhor do que eu.

- vou aproveitar que a Livia chegou e vou ver alguma coisa pra comer na cantina.

- vai lá, se ele se desprender das algemas eu chamo reforços.

Vejo-a encarar Felipe com uma petulância engraçada, zombando de sua superproteção.

- engraçadinha.

Dito isso, Felipe parte para o corredor, sorrindo. Engraçado que como Livia, mesmo estando passando por tanto ultimamente, ainda consegue transmitir uma inexplicável alegria. Sei que ela é alguém fora do comum, alguém que não merece as coisas que estão acontecendo com ela.

Ela senta na poltrona vazia, cruzando as pernas e me olhando.

- como você tá?

- vivo. - sorrio, sabendo que isso é o que importa, mas também sabendo que não posso dizer que estou no melhor momento da minha vida.

- foi um susto enorme Edu, eu não imaginava que um restaurante daquele porte não tivesse um alarme de incêndio que prestasse.

- mas tem, Livs. Eu não sei por que raios ele não funcionou na hora. Eu nem vi ele acionar.

- bom, relaxa que o seguro vai cobrir, vai ficar tudo bem e isso vai ser só uma lembrança ruim pra ser esquecida.

Eu sorrio, seu jeito otimista me cativa, mesmo nas situações mais tensas. Essa é uma qualidade de Livia que eu admiro muito e que gostaria de ter pra mim.

- onde você tava?

- acabei de sair da delegacia. Meu advogado disse que eles já entraram em contato com Cesar e ele vai ter que pagar uma multa por causa da agressão.

- uma multa? Sério?

- pois é. - ela resmunga, colocando sua mão na testa e esfregando-a lentamente. - pelo que eu sei nem se pode mais cumprir pena alternativa pra agressões domésticas, mas segundo o Ricardo o Cesar é amigo próximo da delegada. Devem ter posto panos quentes por trás da lei.

- como sempre. - Minha indignação sai em voz alta, eu me sinto tão mal por ela agora. Esse país é uma droga, nada funciona do jeito que deveria funcionar. - vai ficar tudo bem. Ele não vai mais encostar um dedo em você.

Ela afirma com a cabeça, olhando pro vazio então volta para a realidade lentamente, me olhando.

- eu não deveria nem estar de aborrecendo com uma coisa dessas. A sua situação é bem mais grave do que a minha. Tem alguma previsão de alta?

- o enfermeiro me disse que amanhã eu já estou em casa. Não aguento mais ficar aqui, parece que faz tudo ficar pior. Felipe quer que eu vá embora com ele.

- não era de se esperar menos dele. Você sabe como ele é superprotetor.

- é, eu sei. Ele também deve estar assustado com tudo o que aconteceu, logo ele vai pensar melhor. São só mais alguns meses.

Ela não diz nada, causando um silêncio estranho de alguns segundos, o que, vindo de Livia, é algo diferente de se esperar. Ela demonstra preocupação em seu olhar, levantando-se da poltrona e sentando-se ao meu lado.

- você sabe que não precisa ficar até o final. Se você conversar com o Cassiano, ele pode colocar outra pessoa no seu lugar. O seu foco precisa ser você mesmo agora, Du. Depois do que aconteceu, você não pode ficar se preocupando com o negócio dos outros. Se você não tiver saúde, de que vai adiantar todo esse esforço?

- eu sei Li, mas eu não posso voltar atrás. É difícil de entender, sei que todos vocês devem estar me achando teimoso e idiota agora, mas eu não consigo deixar as coisas pela metade. Além do mais, se eu não tivesse em condições eu não ficaria. Mas eu tô bem, é sério.

- tudo bem, sem julgamentos. - ela se esquiva, sorrindo e me livrando de explicações.

Ficamos alguns segundos sem falar nada, um silêncio agradável se instala no quarto, porem, não por muito tempo.

- Livs, você sabe da Marina?

Ela me olha, estranhando a pergunta.

- não sei, o Felipe me disse que convidou ela pra vir mas ela disse que tinha que resolver algumas coisas com a mãe dela, sei lá.

- hum. Entendi.

Confesso que, nessa hora, me sinto magoado. Sei que ela deve ter muitas coisas pra fazer, mas ver minha mãe e Felipe aqui me faz sentir sua falta. Se ela estivesse, eu estaria feliz por completo, a minha base estaria aqui, do meu lado, então acho que, de repente, eu viria a ceder e voltar pro sul. Ultimamente não tenho falado muito com ninguém, nem com Marina, o que faz eu perceber o quão desligado de tudo eu estou. Ela sempre foi minha confidente, mas o restaurante me consumiu tanto nos últimos meses que eu coloquei todos em segundo plano.

- ei, você sabe que ela está tão preocupada quanto a gente, né?

- claro, eu sei, só que eu queria que ela estivesse aqui.

Ela acaricia minha perna, então eu sorrio, tentando espantar os pensamentos tristes. Alex surge na porta, entrando com cautela e com as mãos vazias. Isso é um bom sinal?

- vamos dar uma volta?

- você quer dizer "fazer uns exames"? Vamos lá.

Ele e Livia sorriem, então eu me ponho prontamente para descer até a cadeira feia e sem graça do hospital. Só agora lembro que a minha virou churrasco naquela noite. Apesar de estar bancando o velho ranzinza, estou feliz por sair um pouco do quarto. Ao girar para o corredor, até o ar parece um pouco diferente, apesar de eu saber que é apenas meu psicológico.

- se te anima, provavelmente esse é o último exame.

- bom, isso é uma notícia boa. Mas por incrível que pareça, não foi tão ruim assim.

- ah, não? - posso sentir ele abrir um sorriso de surpresa, enquanto guia minha cadeira, atras de mim.

- tive a sorte de sobreviver, minha família está aqui comigo, o pessoal daqui foi gente boa... Você foi um cara gente boa, também.

- fui?

- só um pouquinho. - tombo minha cabeça um pouco pra trás para olhá-lo e deixo meu polegar e indicador próximos, indicando pouca quantidade. Ele ri e balança a cabeça, negativamente.

- você é uma figura, Eduardo!

Me ponho a olhar pra frente de novo, escutando suas risadas, porem, mais ao longe no corredor, algo me faz estremecer.

- Cesar?

Ouriço-me na cadeira, jogando-me pra trás e olhando assustado para a direção do final do nosso caminho, porem, o homem negro e alto se vira e revela ser outra pessoa, muito parecida com Cesar, no entanto.

- tá tudo bem? - Alex pergunta preocupado, mas eu não consigo responder de imediato. Cesar vem atormentando tanto a mim e à Lívia que sinto estar criando algum tipo de fobia de estar perto dele. Quando ele está perto, sempre algo de ruim parece acontecer. Eu deveria ser mais corajoso, tentar não deixar tudo tão intenso pois sei que é pior, mas um pensamento me assombra toda vez que eu penso no incêndio do restaurante: Cesar estava com raiva, não havia mais aparecido para trabalhar e já havia se mostrado alguém sem controle emocional. O que impediria-o de destruir aquilo que não havia conseguido conquistar? Aquilo que eu estava tomando conta? Me assusta o fato de que ele poderia chegar tão longe, mas sei que, a essa altura, eu não me surpreenderia se ele fosse o responsável por trás disso.

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- como você se sente? Saindo da jaula?

- livre, leve e solto. - sorrio ao respondê-lo, saindo pelas portas automáticas da recepção. Felipe e minha mãe estão logo atras de mim, enquanto seguimos em direção ao carro de Livia.

- cadê a Livs?

- ficou em casa fazendo almoço. Fui mais cedo lá pra pegar o carro e ela estava inspirada. Segundo ela, "preciso impressionar um chef de cozinha mal humorado". Pra ela isso parece missão impossível.

Eu acho engraçado a parte do chef de cozinha mal humorado, enquanto Felipe segue até o porta-malas e minha mãe me olha de um jeito estranhamente feliz. Oh céus, o que é agora? Felipe se mexe pra cá, se mexe pra lá, até que vejo-o tirar do carro uma cadeira de rodas, provavelmente a mais linda que eu vi na vida.

- você não achou que ia pegar a cadeira do hospital pra levar embora, né?

- Felipe, ela é linda! Uau, obrigado.

- eu até achei uma vermelha igual à sua, mas eu achei a azul bem mais bonita.

Ele zomba de meu time por debaixo dos panos enquanto me ajuda a trocar de lugar.

- vindo de um gremista, isso não é surpresa nenhuma. Mas eu te perdoo dessa vez, porque ela é realmente mais bonita do que a minha antiga.

- você achando azul mais bonito do que vermelho? Você é um vira-casaca!

Ele se curva em minha frente e me rouba um beijo discreto e rápido, seus olhos se fixam nos meus com firmeza e entusiasmo.

- eu tô tão feliz que você está bem. Quero aproveitar tanto com você enquanto estiver aqui, vamos fazer valer todo nosso tempo perdido.

Tudo o que consigo fazer é sorrir e retribuir-lhe mais um beijo, sentindo meu coração cheio de coisas boas, todas juntas, me deixando feliz.

- não quero atrapalhar o casal glorioso, mas já tá ficando tarde e vocês estão atrapalhando a passagem de carros.

Minha mãe nos traz de volta à realidade, quando vejo que a cadeira do hospital está no meio de uma das vias do estacionamento. Felipe corre para tirá-la de lá, colocando-a em uma vaga vazia ao lado do nosso carro, então entramos os três o carro e seguimos para casa.

Chegando em frente ao prédio, sinto que grande parte do meu mal estar perante toda essa situação acaba indo embora. Me sinto em casa, seguro e voltando para a vida normal, na medida do possível. Enquanto Felipe carrega minha mochila, indo na frente, minha mãe anda ao meu lado, me contado sobre as novidades de São Valentim. Carlos está de casamento marcado com Humberto para o final do ano, o tom com o qual ela fala é de orgulho e de amor puro; posso ver seus olhos irradiarem brilho ao falar sobre eles. A cidade está um pouco menos parada agora, com a instalação de uma fábrica de papel, uma filial de uma empresa grande de Porto. Começaram a construir um shopping e um hospital maior, para minha surpresa. São Valentim já não é mais aquela cidade morta de antes, o que me faz ter orgulho.

Quando Felipe gira a chave, ele estranhamente me da passagem. Eu faço a frente, hesitante, então eu a vejo. Parada, os cabelos soltos e acobreados, passando com uma travessa de vidro com carne em direção à mesa, o sorriso largo ao me ver.

- Marina! Mas o que?!

- e aí, super homem! Pensou que eu não ia vir te dar uns puxões de orelha?

Me apresso para ir em direção ao seu abraço, como eu precisava disso! Ela deixa suas mãos livres, colocando a forma de vidro na mesa, estendendo as mãos para que eu fosse até ela. Seguro-a firme, percebendo o quanto sua presença me fez falta.

- eu senti tanta saudade.

- para de frescura, a gente se falava por Skype sempre. - ela me olha, os olhos semicerrados e em desaprovação, balançando a cabeça, enquanto eu aperto os lábios, espantado por ainda me surpreender com seu jeito insensível.

- Marina sendo Marina. E Eduardo sendo Eduardo. - Felipe brinca, acendendo um mar de gargalhadas.

- você, dona Livia, é uma mentirosa dissimulada!

- foi por uma boa causa, cunhado.

As duas se olham, exalando cumplicidade e eu as condeno; desde quando formou-se um complô contra mim?

- Marina, o Edu estava inconsolado que você não estava lá.

- na verdade ela veio com a gente. - Felipe me revela, então eu a olho, espantado. Ela dá de ombros, fingindo não ser grande coisa. Ela tem a incrível mania de se esconder por trás de sua casca grossa.

- mais uma vez e você pode pedir música no Fantástico. Sua queda por hospitais já está ficando comum.

- espero que nunca precise pedir essa música.

Rimos mais um pouco, antes de eu olhar para a mesa farta posta logo adiante. Posso afirmar que estou vendo um dos maiores banquetes da minha vida.

- vocês duas fizeram isso?

- eu dei mais pitaco do que ajudei. Descasquei e cortei algumas coisas, fiz a salada... O resto foi a Marina.

- duvido. Do jeito que ela é enrolada, ou ela tá fazendo isso desde as 8 da manha ou ela pediu delivery.

Ela me olha, abrindo a boca, fingindo incredulidade.

- estou desde as 8:30, tá? E outra coisa. - ela me puxa, aproximando-me da mesa. - você acha que seria fácil eu achar delivery disso?

A mesa, não para meu espanto, está espetacular. A seleção de cores, a diversidade de aromas, tudo se encaixa em algo que só Marina poderia fazer em conjunto com Livia.

- não conseguiria achar um churras o genuinamente Gaucho tão fácil no delivery.

- aqui em São Paulo, não seria impossível.

- mas o meu churrasco não. Isso você precisa concordar, caipira.

Parece que temos alguém bastante convencido por aqui. Mas de fato, eu senti falta da comida da minha terra. E de fato, o churrasco de Marina é algo fora do comum.

- a dica do pão de alho e do molho barbecue foi minha. - Livia conta, orgulhosa, enquanto eu olho tudo, abismado.

- molho barbecue? De fato, o São Paulo já prevalece em você, Livia.

- engraçadinho. - ela faz uma cara azeda pra mim, sorrindo logo em seguida.

- o arroz branco foi ideia minha. Tava tudo muito gourmet. - Felipe brinca, entrando na onda.

E de fato, parece que a criatividade das duas entraram em um exótico consenso. Temos carne bovina ao molho barbecue, que deixou a carne mais escura, avermelhada e perfumada; porco assado, com a pele dourada e o meio bem passado, atiçando meu paladar; asinha de frango com mostarda e orégano, receita que eu lembro de minha tia fazer muitas vezes quando eu era pequeno; salada de maionese e pão de alho, ideias de Livia, que com certeza deve ter um toque especial dela. Aqui, no meio dessa variedade exagerada de comida, vejo que há o ingrediente principal: o amor. Tanto esforço envolvido, tantos sorrisos ao nos juntarmos à mesa, celebrando o fato de eu estar vivo. Isso me enche de alegria e de força pra encarar qualquer situação que eu tenha pela frente, com o restaurante, com Cesar, com as decisões que eu preciso tomar e com todas as minhas responsabilidades, tanto aqui em São Paulo quando em Porto Alegre.

- e a Bárbara, tá bem?

- tá sim, ela queria muito ter vindo mas precisou resolver algumas coisas no trabalho.

- uma diretora comercial realmente não tem muita folga.

Felipe solta assim, no ar, esperando minha reação.

- Marina, ela conseguiu? Caramba!

- pois é, assumiu o cargo semana passada. Nem ela acredita muito, a ficha ainda não caiu.

- ah, eu fico tão feliz por ela! Quero dar os parabéns pessoalmente logo!

Não posso deixar de olhar para Felipe, que certamente entendeu aquilo como uma referencia ao que havia me pedido.

- você acha que volta mais cedo pra Porto?

- não sei, Mari. Provável que sim, mas não sei ao certo quando. Nem falei com o Cassiano ainda.

O vestígio de esperança que estampava o rosto de Felipe agora transforma-se em frustração. Ele detém-se apenas a tomar um gole de seu suco, olhando para Marina.

- quem aí quer sobremesa?

Minha mãe faz todos se alvoroçarem, enquanto se levanta para ir até a cozinha. De fato, ela consegue me salvar até quando não é sua intenção. Felipe e Livia conversam sobre alguma outra coisa, animados, então eu pego na mão de Marina, acariciando-a.

- e você, quando volta?

- amanhã, Du. Queria ficar mais, mas meu pai fez uma cirurgia eu vou lá ver ele. Tenho alguns compromissos lá no bistrô, também.

- você tá gostando?

- ah, é melhor do que a vaga temporária, mas ainda pagam mal.

- logo você acha alguma coisa boa, Mari. Sabe que tem potencial pra isso.

- é, eu sei. Mas do jeito que estão as coisas, acho que a tendência é piorar... As melhores vagas já estão preenchidas, nossa área só é boa pra quem tem padrinhos no mercado, ou quem consegue se sobressair.

- não é assim tão ruim também, vai. A gente entra sabendo que não vamos ter a segurança de um médico ou de um engenheiro, mas criamos coragem e seguimos mesmo assim. - arranco-a um sorriso, o que pra mim já é ponto positivo. - se nada der certo, vamos abrir nosso próprio restaurante. Já imaginou?

A ideia lhe causa diversão, sua risada é tão familiar, tão divertida, me causa uma sensação gostosa dentro do peito.

- você é um caipira sonhador, mesmo.

- espero que tenham guardado espaço pra sobremesa!

Dona Helena chega com uma forma arredondada de vidro, o cheiro de morango invadindo o cômodo, fazendo-nos esquecer por alguns instantes do assunto sério que estávamos tratando.

Felipe e Livia retornam, atraídos certamente pelo cheiro.

- opa! Não sei nem se tem espaço, mas vale a pena tentar.

- é só falar em sobremesa que o Felipe da sinal de vida. - caçoa Livia, fazendo o irmão fazer cara feia.

Enquanto comemos, conversamos sobre tudo, havia tanta coisa para se falar, para contar, estamos tendo um momento que eu tanto precisava e nem percebia; desacelerar, não ter nada na mente, deixar os problemas e as lamentações de lado e aproveitar um simples almoço rodeado de pessoas queridas.

Durante a tarde, Felipe sai para uma reunião de última hora com o diretor de uma empresa, pelo que sei estão negociando uma parceria de negócios de longo prazo. Minha mãe está deitada no meu quarto, enquanto Livia foi resolver algumas coisas na rua. Estamos eu e Marina na sala, eu deitado em seu colo e ela mexendo em meu cabelo.

- eu tô preocupado...

- com o que?

- lembra daquele meu amigo? Murilo?

- sei. O que tem?

- até agora ele não deu sinal de vida. Tentei ligar pra ele antes mas ele não atendeu, eu acho isso estranho.

- estranho por quê?

- sei lá, vai que ele esteja pensando que eu fui culpado pelo incêndio. Todos lá já estão, mas ele é o mais próximo que eu posso chamar de amigo no restaurante, achei que ele não me julgaria. - o tom amargurado de minha voz não esconde minha decepção. Será que Murilo vai virar as costas pra mim? Justo quando eu mais preciso?

- talvez ele esteja descansado, Du, nem deve ter visto o celular. Ou deve estar ocupado, sei lá. Não tem motivo pra ele ou qualquer outra pessoa achar que você é culpado pelo que aconteceu. Você não chegou na cozinha jogando gasolina e depois jogando um papel pegando fogo.

- você tem uma imaginação bem fértil. - digo, depois de imaginar a cena e não conseguir conter o riso. - mas você tem razão. Talvez eu esteja ficando paranóico demais.

- com certeza.

- por isso eu e você vamos dar uma volta.

- o que? Agora?

- é, agora. Não acho justo você ficar trancada aqui sem conhecer nada de São Paulo na sua primeira vez aqui.

- você sabe que a recomendação médica e de repouso total.

- que se exploda a recomendação médica. - me levanto, entusiasmado. - vem, vamos nos arrumar.

- Eduardo, você é birutinha...

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O táxi nos deixa em frente ao jardim botânico, vejo o sorriso estampado no rosto de Marina ao olhar aquele mar verde de folhas acima de nossas cabeças, o ar ficando diferente, ela descobrindo o que todos de fora descobrem ao chegar aqui; São Paulo não é só prédios, cinza, correria. E esse lado de São Paulo é o que eu quero mostrar pra ela agora.

- que lugar lindo!

- você ainda não viu nada! Tem duas estufas enormes com plantas raras, exóticas... tipo você!

Ela revira os olhos e eu a puxo pra perto, seguindo lado a lado ao entrarmos no portão. É um dia de sol, apesar de não estar muito calor, o que faz as pessoas saírem pra aproveitar o verde da cidade. O jardim está cheio, crianças, idosos, jovens sentados rindo e conversando alto, o lugar por si só tem uma energia muito boa.

- geralmente quem vem para São Paulo já é levado pra conhecer o Ibiraquera, mas eu acho isso meio clichê. Lá é lindo, não me leve a mal, mas sei lá, por que o jardim botânico fica pra trás?

- revoltas de um novo paulista... já vi que o Rio Grande te perdeu, hein Eduardo?

- nem pensar! O Parque da Redenção continua sendo meu lugar preferido do mundo. Ele e a cachoeira de São Valentim.

Seguimos pela entrada do parque, meu peito carregado de felicidade de ter minha melhor amiga comigo.

- o que você acha que vai acontecer? Agora que o restaurante vai ficar fechado por uns tempos?

- não sei, a reforma vai demorar. Talvez eu fique pra ajudar a limpar, organizar as coisas novamente, ajudar o Cassiano a recuperar algumas coisas... não tenho ideia do que ele tem em mente. - eu pauso, olhando em volta. - Felipe pediu para eu pensar sobre a possibilidade de voltar pra Porto com ele. Mas eu não quero e nem posso largar tudo assim.

- ele só tá preocupado em te deixar longe, ainda mais depois do que aconteceu. Na verdade, todos nós estamos.

- é, eu sei que foi um susto grande, mas é uma oportunidade de ser levado a sério, sabe? Ainda mais agora, eu sinto que preciso ficar e ajudar a consertar as coisas.

- olha Du, eu poderia muito bem dizer que você deveria voltar, ficar com a gente e ter sua antiga vaga de volta, mas eu sei que você não estaria cem por cento feliz. Você lutou por essa vaga, está se esforçando pra fazer tudo da melhor maneira possível, então eu acho que você deve seguir o seu coração agora.

- você acha que o Felipe ficaria muito bravo se eu ficasse?

- eu acho que vocês precisam conversar sobre o assunto. Vocês são um casal maduro, todo esse tempo de namoro e de noivado fez vocês criarem experiência e maturidade pra poder passar por algo assim.

- eu espero que sim.

- Edu, você é o amor da vida dele, e ele é o seu. O que vier pela frente é fichinha. E caso você decidir ficar, eu vou estar sempre com ele, aconselhando, dando força pra ele passar por esses meses numa boa. Eu sei como é ter alguém que a gente ama longe. Bernardo tá lá do outro lado do mundo há anos, ele sempre foi meu melhor amigo desde que eu me conheço por gente.

Olho pra ela, os olhos surpresos e ciumentos.

- aí depois veio você, pra disputar o cargo páreo a páreo.

- muito que bem. - rimos, então eu olho para as estufas ao longe, tão lindas, claras. - sinto saudades do Bê.

- eu também. Não sei por que ele não volta pra cá, com a experiência que ele teve, conseguiria um ótimo emprego aqui. Ou talvez pudesse tentar uma transferência.

- não é assim tão fácil. E apesar de tudo, ele tem o Fabrício lá.

- não que isso seja grande coisa. - ela arqueia as sobrancelhas, fazendo uma cara engraçada.

- normalmente eu te julgaria, mas dessa vez você tem toda a razão.

- eu sempre tenho razão. É inútil você tentar dizer que eu estou errada.

- iludida.

Estamos ambos dando risadas quando eu olho para frente e vejo um carrinho de sorvete, nossa salvação para um dia que ficava um pouco mais quente a medida que circulávamos pelo lugar. Ao redor do carrinho há algumas crianças, todas felizes e falando alto. Nos aproximamos do simpático senhor de boné e bigode avantajado, Marina me falando algo sobre os últimos jogos do internacional, de tabela, campeonato, coisas que eu até me familiarizo, mas que não entendo tanto quanto ela, que é fanática. Estamos na fila, quando um menino de uns 10 ou 11 anos me olha, curioso. Estranhamente ele sorri, simpático, então não tem como eu não retribuir.

- cadeira legal.

- ah, cara, valeu! - eu falo alto, o tom de voz mais fino. Por que fazemos isso quando falamos com crianças ou com animais?

- as rodas parecem a da minha bicicleta. Eu trouxe ela, tá com a minha mãe. Você quer ver?

- claro! Mas vamos pegar nosso sorvete primeiro. - eu sorrio, surpreso por sua espontaneidade.

- nós podemos apostar uma corrida!

- cara, eu não posso aceitar, você vai ganhar de mim fácil, vou sair em desvantagem! - faço-o sorrir, a medida que a fila vai diminuindo a nossa frente. - como é o seu nome?

- Gabriel. E o seu?

- Eduardo. Prazer, Gabriel. - estendo a mão, para fazer o cumprimento do tapa e do soco.

Então, antes que eu pudesse fazê-lo, um homem se agacha ao lado do menino, me fazendo estremecer.

- filho, o que eu te falei sobre falar com estranhos?

- pai! Esse é o meu amigo, Eduardo.

Os olhos de Cesar queimam ao pairar sobre os meus. É uma mistura de raiva, de surpresa e de excitação.

- eu quero ir na mamãe pegar minha bicicleta. Posso?

- eu levo ele, se quiser.

A mulher, jovem aliás, de no máximo uns 21 anos, se aproxima mais, fazendo com que eu a note. A mulher da foto, do celular de Cesar, porém com um rabo de cavalo, roupas mais simples e uma mochila pequena com estampa de super heróis na mão.

- por favor, Aline. - a testa de Cesar está suada, seu rosto está inteiramente tenso, fazendo eu sentir meu coração martelar minha cabeça, ecoando as batidas dentro de cada neurônio meu. A mulher da foto de Cesar, aquela que ele chamou de noiva, é babá de seu filho. Não pode ser!

Quando ela se afasta com o menino, Cesar olha para mim, o êxtase quase palpável.

- eu não quero você perto da minha família.

- na verdade eu nem sabia que você tinha família, Cesar. Pra mim, era só você e a sua noiva, que na verdade não é sua noiva.

Ele se aproxima rápido de mim, pegando no meu braço.

- seu desgraçado!

- tira a mão dele, filho da puta. - Marina intervém, enquanto eu me solto instintivamente de suas mãos. - você se acha muito macho, né?

- quem é você? Segurança do Eduardo? Será que você é tão inútil que não pode andar mais sozinho?

- sou alguém que se importa com ele, cara, e se você encostar a mão nele de novo, você fica sem nenhum dente nessa sua boca imunda.

- esse tipo de mulher é o pior. Acham que tem algum tipo de poder. Essas são as melhores pra bater, pra domesticar.

Vejo Marina avançar, cega de raiva, mas eu a detenho. Agora, algumas pessoas começam a nos olhar. O circo está armado.

- Marina, não vale a pena, calma! Não vale a pena.

- eu vou te pegar, cara!

- depois de fazer o que ele fez com a Lívia, eu não me surpreendo mais. Só fico triste, muito triste, Cesar. Pela sua mulher, pelo seu filho, ate pela babá. Porque tenho certeza que em algum momento elas já sofreram nas suas mãos. E gente como você não tem medo, ainda mais quando é protegido por essa polícia podre, que trabalha apenas quando convém e faz o trabalho só quando não tem nenhum conhecido envolvido.

- você é tão bobo, Eduardo. Sua mentalidade ingenua é engraçada, é tão ridículo, mas é engraçado de ver. Só pode ser um viadinho mesmo.

Suas palavras me doem, mas no meu rosto nada transparece.

- você é nojento. - Marina o encara, repudiada.

- Gente assim a gente vence aos poucos, Mari. A gente vai cercando, vai observando, vai descobrindo os podres...

- eu já te avisei, se você chegar perto da minha família...

- o que? Você vai me matar? Meu santo é forte, Cesar, acabei de sair de um incêndio sem nada de grave, graças a Deus. Incêndio esse que, pra mim, foi totalmente criminoso.

- criminoso? Quem colocaria fogo no próprio local de trabalho? Pra mim isso foi falta de responsabilidade na gestão. Sempre avisei o Cassiano que não era uma boa ideia colocar alguém despreparado num cargo dessa importância. Mas não é mais problema meu, mesmo. Eu pedi demissão ontem, não acho que a situação do restaurante irá se resolver tão fácil e eu não preciso estar numa situação dessas. Vou atras do meu futuro com as minhas próprias pernas. - seu sorriso debochado faz meu corpo ferver.

- algum problema por aqui? - o segurança chega, o cenho franzido e o tom de julgamento por estarmos causando confusão em um lugar público.

- não, já está tudo resolvido.

Ele se vira e faz seu caminho, enquanto eu e Marina o observamos ir embora. A sensação de impotência é enorme, queria acabar com sua raça, queria acusá-lo e pedir para levá-lo direto para a delegacia, mas sei que não é assim. Com certeza ele conhece outros policiais que lhe dariam uma pena miserável e lhe soltariam logo depois.

- desgraçado! - eu grito, fechando os olhos com força e sentindo minha cabeça latejar. Ponho minha mão em minha testa e esfrego, a raiva preenchendo cada milímetro do meu corpo.

- ele é muito pior do que eu achava.

- ele é. Mas a vez dele vai chegar. Ele acha que vai fazer tudo o que quer, mas eu vou pegar esse filho da puta. E se eu descobrir que ele tem algo a ver com o incêndio, eu faço questão de caçar ele até o fim do mundo de for preciso. - sinto minha voz fluir ao mesmo passo que minha coragem. Sei que não estou blefando; eu recuei uma vez, falhei e Caio acabou fazendo o que fez. Agora, Cesar se torna alguém que apresenta perigo constante, fazendo eu perceber que preciso me defender de todas as maneiras. Portanto, se é guerra que Cesar quer, é guerra que Cesar terá.

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