06. Cesar e Cesar

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série O garoto da mesa 09

O saguão fresco, amplo e movimentado do desembarque do aeroporto de Congonhas me recepciona logo no início da tarde ensolarada que faz em São Paulo. Agora eu ando com dificuldade com minhas bagagens até o portão onde há dezenas de pessoas curiosas olhando para onde eu estou e certamente procurando alguém que estava no mesmo voo que eu. Não é preciso procurar muito para achar Livia logo adiante, com seu sorriso radiante e seu entusiasmo usual que consegue me arrancar um sorriso depois das ultimas horas não muito agradáveis em minha transição pelos ares, onde eu descobri que não sou muito fã de passar por turbulências no meio de uma área de nuvens carregadas em Florianópolis.

- aooow menino gaúcho! Bem vindo! – ela já me abraça forte, me recepcionando da melhor maneira possível.

- e aí, esperou muito?

- que nada, peguei trânsito no meio do caminho. Cheguei aqui não faz nem cinco minutos.

Ela acaba de me lembrar que trânsito é uma das coisas que vão se tornar absolutamente normais pra mim daqui pra frente. Penso pelo lado bom, pelo fato de que vou poder trabalhar melhor minha paciência.

- tá com fome?

- um pouco. E você?

- tava só esperando você. Inaugurou uma lanchonete artesanal super bacana aqui perto, com produtos orgânicos e tal. Quer ir lá conhecer?

- demorou. Agora você vai ter que ser minha guia turística por um bom tempo, cunhada.

- com o maior prazer. Tem tantos lugares que você precisa conhecer. Muita gente vem pra São Paulo e já vão direto nos lugares mais famosos, aí acabam esquecendo muitos que também são lindos, sabe?

- teu irmão já tá querendo contratar um guarda costas pra nós dois. Eu disse pra ele que eu e você iríamos pras baladas e ele torceu o nariz.

- ah o Felipe é um bundão! Ele que se aquieta lá que eu vou te mostrar o melhor de São Paulo e ele não tem nada que se meter.

- combinado, então. – digo enquanto eu não consigo deixar de me contagiar com a alegria dela ao me ter aqui. Depois de tanto tempo sinto que finalmente terei um tempo pra conhecer melhor Livia, que mesmo de longe, sempre se mostrou uma pessoa muito presente é importante não só para Felipe, mas para mim também.

Não demora muito até estarmos dentro do carro indo em direção à lanchonete que ela falou, com o rádio ligado em uma estação que esta tocando Style, e como se tudo se encaixasse, a música combina com a paisagem dos arredores do aeroporto, com a avenida que costura construções grandes e de cores cinzentas.

Assim que chegamos na lanchonete, não muito grande, mas bastante aconchegante e com um visual bem orgânico e despojado, já pegamos uma mesa perto da janela, onde o ar condicionado bate direto em nós e alivia o calor excessivo que faz hoje na cidade.

- e aí, quando você começa lá no restaurante? – Livia me pergunta depois de tomar um gole generoso de seu suco de pitanga com laranja.

- depois de amanhã.

- já? Que rápido.

- é, o Cassiano precisa ir logo pra Salvador resolver algumas coisas. Assim que eu chegar ele já vai.

- você tá ansioso?

- um pouco. Acho que eu to mais curioso do que ansioso.

- curioso?

- é, quero ver como que é o restaurante. É o maior da franquia, fica bem no meio da paulista... digo, é algo que eu fiquei pensando bastante nos últimos dias.

- eu nunca fui lá. Talvez eu vá no teu primeiro dia, pra te dar uma força. Não é a como se a Carosella fosse lá, mas acho que eu poderia te dar um oizinho. – ela fala brincalhona me fazendo rir.

- eu ia adorar que você fosse.

O garçom chega com nossos sanduíches, enquanto eu sinto que só agora me bateu a fome de verdade, depois de algumas horas sem comer. No voo os comissários passaram distribuindo lanchinhos e bebidas, mas eu não estava com vontade. Acho que depois de ser chacoalhado a uns bons quilômetros do chão e ser colocado a uma sensação de pânico é algo capaz de revirar o estômago e tirar a fome de qualquer um.

- como foi o lance da despedida? Com o Fê?

Ela acaba de me dar um soco imaginário no estômago, fazendo eu lembrar de algo que eu não gostaria de fazer tão cedo.

- bom, foi estranho. Eu tentei manter o controle o tempo todo, não deixar meu sentimentalismo deixar as coisas mais complicadas, então eu pedi pra ele não me levar no aeroporto. Nem ele, nem ninguém. Descobri essa semana que eu sou péssimo com esse lance de despedidas, sabe? Só de pensar que eu vou ficar longe deles eu já fico mal. Mas acho que você conhece o teu irmão. Ele não me ouviu e foi atrás de mim no aeroporto. Eu vi ele quando já tava dentro do finger, quase entrado na porta do avião.

- é, isso é a cara dele.

Nos dois rimos, mesmo que por dentro eu esteja me sentindo um pouco triste pela lembrança.

- mas eu não quero você triste, Edu. Você tá aqui, em São Paulo, é pra comemorar! Esse ano vai passar tão rápido que você vai até se lamentar depois. Aí vai ser a vez de se despedir de mim. – ela faz beicinho na última frase, me fazendo rir.

- você não pensa em voltar pro sul?

- hum... não. Não tão cedo. Eu me acostumei com Sampa. O caos, a correria, o estresse, de certa forma é bem prazeroso pra mim. Eu gosto, sabe?

- prazeroso?

- é, eu sei que é estranho. Todo paulistano reclama dos engarrafamentos, das filas e tal, mas essa acabou sendo nossa identidade. No fundo a gente sabe que é assim e que seria estranho se fosse de outro jeito.

- bom, se você diz, tá dito. Vejo que eu encontrei a paulista certa pra eu aprender a encarar tudo isso com bom humor.

- de nada. – ela arqueia a sobrancelha e depois dá a sua risada tão familiar e descontraída, antes de terminarmos de comer e seguirmos pra casa.

Logo ao entrar no apartamento, noto que permanece quase a mesma coisa, a não ser pelas portas, que ficaram um pouco maiores. Eu olho absorto pra tudo e antes que eu pudesse perguntar a Lívia o que era aquilo, ela parece adivinhar meu pensamento através da minha expressão facial e começa a falar.

- o Fê pediu pra fazer algumas mudanças aqui, se eu não me importasse. Como você vai ficar um ano aqui, nada mais justo que você ter pelo menos conforto pra andar aqui dentro, né?

- eu... nossa, não sei nem o que dizer. Mas vocês fizeram isso tão rápido. Quando ele pediu?

- assim que você falou pra ele que viria pra cá. Ele me disse que só deixaria você morar em São Paulo se fosse comigo, mas nem precisou falar nada, já que você mesmo sugeriu. Se não tivesse sugerido, eu ficaria brava com você.

- mas não precisava fazer tudo isso. Deve ter saído caro, ainda mais de última hora.

- Felipe fez questão de pagar, Edu. Ele se importa muito com você.

- eu sei, eu fico feliz por vocês terem pensado em mim assim, mas sei lá, uma cama na sala já tava de bom tamanho pra mim.

- eu não deixaria você dormir na sala por dois motivos:

1- isso seria muito rude

2- eu teria que desfazer a minha decoração nova e isso meu bem, não dá.

Ela aponta para os móveis novos, que eu nem sabia que eram novos, já que eu vim aqui apenas uma vez. Mas se tem algo que eu não posso discordar, é que Livia tem bom gosto. O sofá roxo em couro, com almofadas coloridas e florais, a rack amarela cheio de bonecos de biscuit do Harry Potter e um vasinho com um cacto bem amigável ao lado da televisão deram um charme bem diferente para o cômodo, deixando tudo mais alegre e realçando a bicicleta presa na parede de tijolo à vista, que foi a única coisa que permaneceu do mesmo jeito que estava quando eu estive aqui, alguns anos atrás.

- vem aqui que ainda não acabou, menino gaúcho. – ela sorri e começa a andar em direção ao corredor, fazendo com que eu a siga. Ao chegar na porta do banheiro, ela abre e me mostra as barras de apoio ao lado do vaso sanitário e dentro do box, fazendo eu ficar ainda mais surpreso.

- juro que foi a última surpresa minha e do Felipe. – ela me olha receosa, achando que eu ficaria chateado, mas eu realmente não consigo ficar assim. Eu estou na verdade bastante surpreso e feliz que eles tenham pensado nisso, no meu conforto e acesso facilitado pra mim aqui, mesmo que minha estadia seja temporária.

- obrigado Livia, de verdade.

Eu a chamo para um abraço, então seu rosto se ilumina e ela se curva para me dar um beijo na bochecha, me pegando de surpresa.

- vou deixar você descansar um pouco. Mas não muito, de tardezinha quero sair com você pra te levar num lugar.

- qual lugar? – automaticamente lembro de Felipe, que vai querer saber sempre pra onde eu vou, o que faz que eu queira rir.

- surpresa. Só sei que você vai gostar.

- tudo bem. Eu vou desfazer minha mala e me deitar um pouco então. Qualquer coisa me chama.

- tá bom. Até daqui a pouco.

Ela segue para o quarto dela e eu me viro para ir para o meu. Assim que entro meu coração se aquece ao ver a cama arrumada, com um cobertor dobrado na ponta e um porta retrato repousado no travesseiro, ao lado de um bilhete. Me aproximo para ver e solto um sorriso largo ao ver minha foto e de Felipe em minha formatura. Os dois sorrindo para a câmera e com os olhos brilhando, em um dos dias mais felizes da minha vida. Pego o bilhete ao lado e vejo que está escrito com a letra dele, um pequeno texto à caneta.

“Espero que esse tempo em São Paulo te proporcione tudo de melhor. Sei que você tem força de vontade pra ir atrás dos teus objetivos e não duvido da tua capacidade de ser alguém ainda mais incrível que já é. Essa foto é pra você me ter, de alguma forma, todos os dias perto de você. Te amo muito.

Felipe.”

Assim que eu passo meus olhos pela última linha da carta, sinto meu peito se encher em um misto de sensações fortes que o fazem se apertar. Sinto alegria por causa da surpresa; sinto tristeza porque não faz nem duas horas que eu estou em São Paulo e eu já sinto sua falta como um louco. Pego o porta retratos e o bilhete e então coloco em cima da escrivaninha de madeira branca que fica bem abaixo da janela do quarto, onde o sol invade e a paisagem urbana me prendem os olhos. Pensar que aqui é meu lar temporário ainda é um pouco engraçado, mas ao mesmo tempo eu estou multo feliz de estar aqui.

- Edu, acorda! – já são 19h da noite. – ouço Livia falando enquanto seus dedos me cutucam suavemente e meus olhos se abrem depois de um sono longo e pesado. Fico olhando um pouco confuso para os lados por dois segundos até me familiarizar com meu novo quarto, então firmo meus olhos em Livia, que já está arrumada e me olhando curiosa enquanto eu ainda estou metade dormindo, metade acordado.

- você não vai passar o dia todo dormindo, né seu louco?

- não, eu esqueci de colocar o celular pra despertar. – digo antes de bocejar e me sentar no pé da cama. – e aí, onde a gente vai?

- continua sendo surpresa. Mas eu sei que você vai gostar. Bora, se arruma que a gente tá atrasado, príncipe do Sul.

- ok princesa paulista, quinze minutos e eu estou pronto pra cair na noite. – digo entrando na brincadeira, fazendo a rir enquanto ela se levanta e me deixa sozinho para escolher minha roupa e tomar uma ducha.

Já de banho tomado, coloco minha camiseta preta, que tem um quadrado largo feito em polipiel, no canto direito dela, junto com minha calça jeans escura e meu tênis branco. Acho essa camiseta bastante conceitual e ousada, sendo algo que eu não usaria há alguns anos atras, mas hoje combina bastante com minha personalidade. Lembro que foi um presente de Marina para mim, no meu aniversário do ano retrasado. Talvez eu também esteja usando ela para ter algo de Marina comigo na minha primeira noite como residente do sudeste do país. Sair na rua e ouvir as pessoas falando “você”, ao invés de “tu”, “menino” ao invés de “guri” e com o sotaque tão diferente do meu me faz parecer um total estranho de sotaque engraçado. Mas é aí que o orgulho gaúcho bate e eu me sinto feliz de falar diferente. Agora estamos no All Black Irish Pub, um bar irlandês da Oscar Freire, o preferido de Livia na cidade. A decoração rústica combina com o clima do ambiente, com chão e teto de madeira, mesas redondas e pequenas, o que deixa tudo bastante acolhedor e luz indireta, além de uma lareira de pedra bem ao canto do salão, que obviamente não está ligada, mas serve como um toque final perfeito na estilização do lugar.

Após sentarmos em uma das mesas próximas ao balcão do bar, pedimos dois chopes, um claro pra mim e um escuro pra Livia. O ambiente ainda não está lotado, mas já há uma parcela significativa de pessoas sentadas, bebendo e conversando alegres entre si, tornando o espaço muito acolhedor e intimista.

- e então, gostou daqui?

- pra caramba.

- ponto pra melhor guia turística ever. – ela fala erguendo o copo de chope pra cima, fingido prepotência enquanto arqueia a sobrancelha, fazendo eu rir.

A noite segue bastante animada e leve, apenas eu e Livia conversando sobre a vida e bebendo o melhor chope que eu já tomei na vida, enquanto eu começo a sentir os ares paulistas começarem a me fazerem realmente bem, achando que talvez voar pra longe de Porto Alegre seja ruim apenas por ficar longe das pessoas que eu amo, mas que experimentar novos lugares pode ser melhor do que eu pensava.

__

Passo pela porta da cozinha e o ar quente usual bate em meu rosto, já elevando a temperatura do meu corpo. Fico impressionado com o tamanho do cômodo, onde há uma quantidade muito maior de equipamentos, de funcionários e, consequentemente, de afazeres. Por falta de atenção eu acabo me atravessando na frente de um dos cozinheiros, que quase derruba uma bandeja com copos e pratos vazios em cima de mim.

- me desculpa! – eu digo já cheio de mãos e dedos, tentando antecipar a queda de tudo em cima de mim, mas para minha sorte, não aconteceu. O jovem de uns 21 anos no máximo olha para a bandeja com os olhos castanhos arregalados e consegue segura-lá firme em sua mão.

- eu quem peço desculpas, me atravessei na frente. – ele se ajeita e sorri simpático para mim, ainda um pouco atrapalhado, ainda mais por quase derrubar as coisas não só em mim, mas em Cassiano também. Fico pensado no quão aliviado ele deve estar agora por ter um bom reflexo.

- quer acertar o Edu logo no primeiro dia, Murilo? – Cassiano caçoa, a voz divertida.

- ah sim, eu tinha até esquecido que era hoje. Prazer Edu. E desculpa pela correria. – ele estica a mão para me cumprimentar, enquanto eu já me sinto um pouco mais aliviado e a vontade.

- ah fica tranquilo, eu já sei com é. Porto Alegre também é correria. Claro que não igual aqui, mas já é algo, né? O prazer é meu. – estico a mão de volta, tentando parecer um pouco mais firme e confiante, afinal eu não posso parecer um bobão que sai derrubando a bandeja dos outros no primeiro dia, sendo o substituto do chef e do gerente do lugar.

Murilo se despede e sai para largar a bandeja na pia, enquanto Cassiano começa a me mostrar o restante da cozinha. Os utensílios são todos de prata, bem limpos e organizados nos vários armários que cercam o fogão industrial imenso que fica no centro da sala. Nos balcões de mármore escuro, há algumas pessoas cortando legumes e temperos para o preparo dos pratos, causado uma mistura de aromas e cores que mais parecem um presente para meus olhos e meu olfato. A grande maioria deles apenas me cumprimenta rapidamente, sem perder a simpatia, mas evidentemente ocupados demais para uma pequena conversa, o que eu entendo perfeitamente, afinal é a sede da rede, na maior cidade da América Latina.

- eu já estou sentindo saudades da correria daqui. – Cassiano fala junto com um suspiro pesado, enquanto saímos da cozinha e voltamos para o salão, ainda vazio e com grande parte das luzes apagadas, deixado apenas à luz natural da rua entrar pelas janelas e iluminar as mesas e cadeiras desocupadas.

- quando você vai?

- depois de amanhã, bem cedo. Falar nisso, eu vou fazer uma confraternização na minha casa amanhã. Quero fazer uma espécie de despedida minha e de boas vindas pra você. Se você puder ir, é claro. – seus olhos me fitam com ansiedade, esperando por uma resposta positiva.

- claro que eu vou, não perderia por nada. Só preciso me enturmar com o pessoal, não quero me sentir avulso lá.

- bem, o Murilo pareceu simpatizar com você. Ele é fechado, não é de muita conversa, mas é um bom garoto.

- ele parece ser muito bacana mesmo.

- pronto, já tem alguém pra puxar assunto lá, além de mim.

Depois que ele abre seu sorriso largo e tenta ao máximo me deixar a vontade em meu novo local de trabalho, alguém chama ele lá de dentro da cozinha.

- Edu, você me dá licença um minuto?

- claro, vai lá.

Assim que ele entra, eu começo a passar por entre as mesas, olhando os detalhes da arquitetura do lugar que até agora eu não havia prestado atenção. O teto com detalhes em gesso, os papéis de parede alegres e de cores quentes que decoram uma das paredes apenas, com o restante delas pintada de branco com alguns quadros aleatórios é muito bonitos espalhados pelo grande espaço. Francamente, acho que aqui é quase o dobro de tamanho do restaurante de Porto Alegre, no mínimo. Através das janelas imensas, consigo ver o fluxo contínuo de carros da Paulista, dando uma vista bem empolgante e privilegiada de um dos pontos mais conhecidos da cidade; o MASP. Então, a porta do restaurante se abre, voltando minhas atenções para ela. Um homem de careca, forte e de pele negra, que aparenta ter no máximo 40 anos de idade, entra no cômodo e me analisa, curioso.

- bom dia. – sua voz grossa e intimidante me deixa um pouco sem graça, mas por fora nada muda. Mantenho meus olhos firmes nos dele e meu sorriso cordial de sempre à vista.

- bom dia. Tudo bem?

- tudo ótimo. Você é o Eduardo, certo?

- isso. Prazer. – estendo minha mão para ele, que a aperta com firmeza e precisão. Ele é um homem de personalidade forte.

- seja bem vindo, Eduardo. Eu sou Cesar, gerente de caixa do restaurante.

- Cesar? Prazer. O nome do meu sogro também é Cesar. – falo em voz alta, obviamente não sendo algo que seja necessário ele saber, mas que acabou escapando de forma despretenciosa.

- ah é? Bacana. Sua namorada veio junto pra São Paulo com você?

Namorada? Como posso dizer que, na verdade, é noivo? Noivo com “o”?

- não.

- entendo. Como ela se chama?

- Felipe.

No momento em que eu falo o nome masculino, contrariando suas expectativas, vejo sua expressão facial mudar bruscamente. Como resposta ao silêncio que se instalou no lugar, eu sinto minhas bochechas ficarem quentes. Droga, eu estou corando. Por que eu estou assim? Eu não tenho vergonha de ser gay. Mas de uma hora pra outra, falar isso para ele parece ter sido algo errado. Ele se recupera e me lança outro sorriso, dessa vez um sorriso diferente, algo parecido com sua expressão ainda mais intimidante do que antes.

- bem, seja em vindo, Eduardo.

Feito isso, ele segue em direção a porta onde diz “entrada permitida apenas para funcionários”, onde eu julgo ser a parte dos armários e banheiros de funcionários, sumindo do meu campo de visão. Depois que eu ouço a porta se fechar, eu suspiro fundo. O que foi isso? Será que eu estou exagerando ou ele realmente é estranho?

Tirando dos meus pensamentos assustados, Cassiano retorna da cozinha, parecendo trazer um pouco de leveza ao ambiente que até agora estava com o peso do breve contato com Cesar.

- tinha alguém aqui? Ouvi vozes.

- ah sim, o Cesar acabou de chegar.

- então você já conheceu o Cesar. – Cassiano me olha com expectativa. A julgar por sua expressão, nosso encontro era mais do que esperado. – O que achou dele?

- parece ser bem gente boa, eu acho. – minha cara não parece condizer com o que eu acabo de falar. Pra ser honesto, ele está mais para misterioso do que gente boa, ao meu ver.

- ele pode ser um pouco intimidante às vezes. Se caso ele tiver sido com você, não dê bola.

- ah, acho que não tivemos nem a chance de termos primeiras impressões. Mas ele realmente parecer ser... hum... legal.

- tudo bem então. Vamos começar a abaixar as cadeiras então. O restaurante abre em 15 minutos.

- bora lá.

__

- tem certeza que eu estou bem? Eu preciso parecer alguém legal e confiável nesse jantar. – falo um pouco exasperado e nervoso demais para manter o mínimo de calma em frente ao espelho do guarda roupa, enquanto vejo Livia sentada no puff laranja do meu quarto, me analisando por completo. Eu me viro pra ela para que ela possa me ver melhor, então me sinto à mercê de seu olhar crítico.

- hum, talvez se você trocasse essa calça jeans pela sua outra mostarda, ficaria melhor.

- e nos pés?

- seu mocassim vinho, ué.

- não fica muito simples?

- Edu, você vai para uma confraternização informal do seu trabalho, não para uma festa de gala. Se você aparecer lá produzido demais, vão rir de você.

Levando em consideração de que minha area de entendimento é a gastronomia e não a moda, além de que Livia convive com isso e entende disso muito mais do que eu, eu bufo e aperto minha mão na testa, achando que esse jantar vai me dar mais dor de cabeça do que eu acho que valha a pena.

- vai, já separa tudo enquanto eu vou tomar um banho. Depois que eu te deixar lá eu também vou sair.

- ah é? Posso saber com quem?

- um carinha aí. – ela me olha reprimindo o riso, enquanto eu balanço a cabeça e sorrio, achando que é melhor eu não ser o cunhado intrometido.

- vou deixar você se trocar. Se precisar me chama. – ela se levanta e em poucos segundos eu estou sozinho no quarto novamente. Troco a calça e o calçado e olho para o conjunto todo no espelho, junto com a camisa preta com pontos cinza claro minúsculos no tecido, e sorrio ao pensar que Livia tinha razão. Tá realmente muito melhor agora. Borrifo um pouco de perfume e dou uma última mexida no cabelo para que ele não fique tão certinho, então vou para a sala esperar Livia terminar de se arrumar. Por sorte ela não é daquelas mulheres que demoram para ficarem prontas, então em poucos minutos ela está atravessando a sala com uma regata de seda rosa pálido, uma saia de cintura alta preta com listras brancas e um sapato aberto na frente também preto.

- uau. – eu falo com os olhos arregalados, enquanto ela sorri pelo meu elogio.

- você também tá “uau”, cunhado.

- graças aos seus conselhos de moda. Minha heroína.

- guia turística, consultora de moda... Você tá me explorando demais, Eduardo. Vou começar a cobrar pelos meus serviços.

- eu trago uma quentinha da festa pra você.

- debochado. – ela finge estar brava. – vamos lá?

- vamos.

No meio do caminho, fico impressionado como São Paulo consegue ser ainda mais linda durante a noite. As ruas largas e iluminadas, sempre movimentadas com pessoas, carros e ônibus, tudo é encantador pra mim. Não demora muito até acharmos o endereço que Cassiano me passou por mensagem. Assim que chegamos no condomínio de alto padrão no Moema, onde é possível escutar e ver os um avião passando bem perto no céu em direção ao aeroporto de Congonhas, que fica a muito pouca distância daqui, avistamos um monte de casarões enfileirados em ruas calmas e seguras, onde moram apenas pessoas visivelmente bem de vida, como Cassiano. Sua casa é uma das maiores, ficando bem no centro do condomínio, com alguns carros bem em frente e uma música não muito alta tocando de dentro de casa. Me despeço de Livia e sigo até a porta da frente, me sentindo um pouco nervoso por não estar realmente enturmado com ninguém e torcendo para que eu não fique avulso logo no início da festa, sorrindo e concordado com tudo sem ter muito o que debater por estar me sentindo deslocado.

Assim que eu entro, vejo uma sala muito bem decorada, com um sofá de madeira e com estofado em creme com almofadas em azul royal, atualmente ocupados por alguns rostos já conhecidos de ontem e de hoje, um rack envelhecido branco uma televisão exageradamente grande ligada com o cabo HDMI em uma seleção de músicas variadas, as que eu ouvi lá fora, várias pinturas e vasos de plantas ornamentais que deixam todo o ambiente bem leve e natural e um mini bar rodeado por uma ilha feita com um balcão de mármore preto e tijolos de vidro, onde Cassiano e Cesar conversam antes de me verem entrar. Eu aceno para todos educadamente e Cassiano já me chama para me juntar com eles. Eu engulo em seco ao ver o sorriso estranho de Cesar se formar ao me ver, quase que virando uma tradição em toda a vez que ele põe os olhos em mim.

- e aí gaúcho! Demorou pra achar o lugar? – Cassiano me recepciona com um caloroso aperto de mão, me fazendo sorrir mesmo eu estando um pouco tenso.

- não muito. O aeroporto deu um ótimo ponto de referência.

- você não acharia a mesma coisa se tivesse que dormir e acordar com o barulho dessas máquinas voando em cima do seu telhado. – ele faz eu e Cesar rirmos, enquanto ele por sua vez toma mais um gole de sua bebida levemente dourada do que eu acho ser whisky. Seu braço moreno forte agora é realçado pela manga curta de sua polo branca, revelando seu corpo bem definido e ficando ainda maior quando ele curva o braço para levar o copo até a boca, sem tirar os olhos de mim. Nessa hora eu sinto um arrepio percorrer meu corpo, apenas com a intensidade com que ele me olha. Era como se ele quisesse me machucar ou me beijar, ou a mistura dos dois. Não consigo discernir ao certo se ele sente algum tipo de desejo ou de raiva mortal de mim, mas seus olhos parecem lançar fogo toda vez que ele me vê.

- você quer uma bebida Edu?

- hum, o que você tem aí? – desvio meu olhar com dificuldade de Cesar e me concentro em Cassiano, que agora analisa seu pequeno estoque de marcas famosas e caras de bebidas, que vão desde martinis e vinhos até champanhes e vodkas artesanais.

- bem, não sei qual seu gosto pra bebidas, mas acho que o que quer que você goste, você vai encontrar aqui.

- hum, eu aceito um martini com refrigerante, se tiver.

- martini com refrigerante? Isso é bebida de marica, Eduardo! Qual é, ve um copo de whisky pro garoto, Cassiano. Bebida de homem. – suas palavras parecem cuspir veneno e seus olhos voltam a me fuzilar, me deixando um pouco sem graça. Cassiano parece não perceber a tensão que se instalou no ambiente e ri da brincadeira aparentemente inocente de Cesar, mas eu sei o que se passa aqui. Cesar não parece estar contente com a minha orientação sexual. Não que ele tenha algo com isso, já que ele nem ao menos me conhece direito para opinar sobre o assunto, mas parece que ele se importa mesmo com isso.

- é, acho que whisky tá bom pra mim. Bebida de homem. – eu reforço as palavras de Cesar, tendo certeza que ele veja que eu não sou do tipo de pessoa que recua com afrontamentos. Ele sorri pela minha resposta e toma outro gole de seu whisky, enquanto Cassiano elogia minha escolha e me pergunta se eu já tomei algum Chivas, mas eu estou sustentando o olhar firme de Cesar no momento, mesmo que por dentro eu esteja com um nó no estômago.

Eu agradeço Cassiano quando ele me alcança o copo com um lenço de papel dobrado em triângulo em sua base, assim como sempre vi nos filmes, então peço licença e vou até a cozinha para comer alguma coisa, mais como desculpa para sair dali do que qualquer nível de fome que eu estivesse sentindo no momento. Assim que eu entro lá, vejo Murilo pegando alguns canapés e alguns doces na ponta da mesa, sozinho.

- assaltando a fonte de felicidade antes de todo mundo? – digo ao me aproximar dele, fazendo ele me olhar e sorrir ao me ver.

- e aí Edu! Não vi você por aí antes. Chegou faz tempo?

- na verdade acabei de chegar. Tava conversando com o Cassiano e com o Cesar.

- Cesar? – ele faz uma careta ao mencionar ele, fazendo com que eu ria e fique curioso por ele compartilhar de uma opinião parecida com a minha.

- você não gosta dele?

- digamos que ele tenha uma linha de pensamentos muito difícil de se compreender.

- tipo?

- bom, ele não gosta de pessoas como eu. Então, eu não faço questão de ter a companhia dele.

- bem, nisso temos que concordar. Ele já fez questão de deixar claro que tem o famoso orgulho hetero e que gosta de tentar intimidar gays.

- ah sim, essa é a forma dele de te dar boas vindas. Foi a mesma coisa comigo.

- no meu caso, eu não tenho medo. Acho que ele já entendeu que vai precisar de muito mais do que piadinhas sem graça pra me deixar acuado.

- acho que acabei de gostar um pouco mais de você, amigo. – ele sorri de canto e faz eu rir também, então eu pego algumas coisas para comer e deixo meu copo de “bebida de homem” na mesa, já que eu odiei tomar aquele negocio forte e com álcool demais pra mim.

- e aí, o que tá achando de São Paulo?

- grande, movimentada, cinza... – ambos rimos. – brincadeira. Ela é incrível. Eu gosto de cidades grandes. A correria tem lá o seu charme.

- entendo. Você é de onde mesmo?

- bom, eu nasci em uma cidadezinha chamada São Valentim, mas vivo há quatro anos em Porto Alegre. E você, é de São Paulo mesmo?

- não. Sou de Ribeirão Preto. Fica a quatro horas daqui.

- já ouvi falar. Seus pais vieram com você?

- não. Eu vim sozinho pra trabalhar e estudar gastronomia. Segundo ano. – ele fala orgulhoso ao dar uma mordida em um canapé.

- bacana, eu acabei de me formar também. Quando você vê, já está no último ano.

Ele me analisa por uns segundos, enquanto parece formular alguma pergunta na mente.

- posso te perguntar uma coisa?

- claro.

- você nasceu assim? Ou foi depois?

- foi há alguns anos. Acidente de carro.

- que droga, cara. Sinto muito.

- a gente se acostuma. – eu lhe dou um sorriso sincero, ficando feliz por ele ser uma das poucas pessoas a não fazer muito drama ao querer tocar nesse assunto.

- sabe, o Cesar é um cara difícil de se lidar. Mas acho que no seu caso, ele pode não ter só o lance da orientação sexual como motivo pra não gostar de você.

- por que?

- ele é o braço direito do Cassiano aqui em São Paulo, sempre foi. Eles são amigos há muitos anos, se conheceram um pouco depois do Cassiano inaugurar o primeiro restaurante da franquia. Não só ele, mas todos nos pensávamos que ele seria a escolha do Cassiano pra substituir ele nesse tempo. Mas o Cassiano sempre falou de você pra todos e acabou te escolhendo. Acho que o Cesar ficou com um pouco mais de raiva de você por isso.

- então isso é implicância dele por eu ter sido escolhido, não ele.

- exato. Por isso você não deve dar bola para o que ele falar. No fundo, é tudo ressentimento.

- bom, acho que ele precisa saber controlar o sentimentalismo dele. Eu não tenho culpa se ele não foi a escolha do Cassiano.

- na verdade, ele não é um bom líder, até o Cassiano sabe disso. Ele é autoritário demais, não daria certo ele ficar no comando por tanto tempo. Ele já ficou por alguns poucos dias, mas um ano é muita coisa. – ele para e me olha por um instante. – o Cassiano confia em você, Edu. O restaurante é tudo pra ele, ele só vai ir pro nordeste porque você tá aqui, assumindo o comando.

Não que eu já não soubesse isso, mas ouvir isso da boca de Murilo, sendo alguém que convive muito mais com Cassiano do que eu, acaba sendo algo que eu fico até sem jeito de saber. E uma responsabilidade enorme, mas eu fico feliz em tomar isso pra mim é saber que eu vou tentar fazer o meu melhor, não só pra minha carreira, mas por Cassiano também. Sei que ele conta muito comigo nisso e eu não posso decepcionar ele.

Aproveito o resto da noite para conhecer um pouco melhor Murilo. Ele realmente me parece ser o meu leiteiro amigo sincero aqui em São Paulo. Acabamos contando um pouco da vida de cada um, descobrindo que ele também gosta muito de Maroon 5. Assim que ele me releva isso, meu pensamento corre para Felipe, fazendo meu coração se apertar de saudade. Eu conto para ele sobre Felipe e lhe mostro uma foto nossa em meu celular. Murilo elogia a gente e diz que formamos um casal muito bonito, até me contar que infelizmente ele nunca teve a oportunidade de namorar outro garoto, já que ele ainda não é assumido para os pais. Em partes, sua história parece bastante com a minha, antigamente. Ele é um jovem sonhador, com alguns medos e com restrições de viver quem realmente ele é, por receio do que a família pode dizer ou pensar. Veio de uma cidade do interior para a capital em busca dos sonhos, além de ter a paixão pela gastronomia.

- você precisa conhecer meus amigos. Acho que eles vão ter bastante perguntas de como é lá no sul.

- eu ia adorar conhecer eles. Não tenho muitos amigos em São Paulo ainda, então seria legal conhecer gente nova. E lugares novos, também.

- acho que a gente pode resolver isso no final de semana. A gente sempre se reúne pra sair nos sábados. Às vezes quando dá, até nos domingos.

Enquanto conversamos, Cesar chega na cozinha, fazendo nossas atenções se voltarem pra ele e pararmos de conversar por uns instantes. A presença dele sem dúvida é bastante intimidante.

- e aí Edu, se divertindo?

- bastante. E você? – sim, eu estou bastante audacioso. Acho que são os canapés, sei lá.

Ele sorri e confirma com a cabeça, vasculhando algo aleatório pra comer.

- quando você vai trazer seu namorado pra São Paulo?

- na verdade, ele é meu noivo. Mas em breve, eu espero.

- noivo? Bacana. Eu também tenho uma noiva. Linda. – ele saca o celular e me mostra uma foto dela de lingerie, tirada do espelho com ele, que também está de cueca, abraçados e posando como o casal perfeito e sexy. Eu engulo em seco, achando a ação dele bastante desnecessária, mas por fora nada muda. – Cabelos longos, pele macia, seios fartos... O que eu posso dizer? Beleza feminina é incontestável.

- com certeza. As mulheres são lindas mesmo. Pena que eu não sinto tesao por elas. Meu negócio é homem, sabe? Testosterona, corpo forte, masculinidade.

Nessa hora eu não consigo conter meu riso, enquanto vejo de relance que Murilo está imóvel e com os olhos arregalados, enquanto Cesar sorri por minha resposta, parecendo estar ciente de que eu estou o desafiando. Ele pega seu copo de whisky novamente, que estava repousado na mesa e gira em seus calcanhares, voltando para a sala. Eu sinto meu coração bater mais forte, pensando que eu claramente terei problemas com esse cara. Mas nesse momento, eu estou descaradamente feliz por mostrar que eu não vou me permitir ficar amedrontado por um homofóbico que pensa poder falar o que quer e fazer o que quer para deixar os outros sem jeito. Vejo que agora eu terei que armar um campo de batalha invisível com Cesar, mas espero que ele saiba que eu estou pronto pra brigar.

Comentários

Há 3 comentários.

Por Felipe Fernandes em 2016-02-02 14:07:01
Migo seu loko cada vez que leio sahpoha de conto mais incrivel do site eu fico mais encantado com a tua escrita vei... o capitulo ficou dahora e o Cesar... Ceeesar. esse cara vai dar muito problema pra você... era o antaginista que eu estava esperando... você caprichou na festa de boas vindas e com a livia.... ela vai ajudar bastante o Edu eu acho... amei o capitulo... esperando pro proximo... e até breve.
Por diegocampos em 2016-01-30 07:14:52
Adorei a Lívia super gente boa, e gostei muito do Murilo ele parece ser um cara bem legal ao contrário do Cesar que além de ser homofóbico parece que vai dar muito trabalho pro edu. Adorei o capítulo ansioso para o próximo.
Por Niss em 2016-01-29 15:47:46
AMÉM!! CARALEO!! AHAZOU!! Eduuu Miga sua loka! Arrebenta com a cara desse homofóbico de merda! Confesso que eu já estou amando esse Murilo haha ele parece ser um rapaz legal, gostei mesmo. Agora a Lívia?! Ela é uma outra linda! Definiu SP de uma forma maravilhosa, e sabe valorizar a cidade. Amo SP haha. Achei fofa a parte da recepção, da adaptação do apê e da carta do Felipe. Essa foi linda! O capítulo ficou maravilhoso. Estou mega ansioso pra ver essa história com o Mu e saber qual é a desse César aí. Anyway. Espero pelo próximo. Lacrastes! Kisses, Mana Nissan Linda e maravilhosa!