03. Propostas

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série O garoto da mesa 09

Agora eu estou sentado na frente de Bernardo, que está tomando uma taça enorme de sorvete de champanhe com pedaços de cereja, enquanto me conta sobre seus planos de viajar para Nova York no próximo ano. Porto Alegre lhe recebeu tão bem de viagem que não chove desde que ele chegou. Hoje foi meu ultimo dia de trabalho antes das férias. Já é um motivo mais do que o suficiente para se estar animado. Como se não bastasse isso, hoje também é um daqueles dias em que o sol está exuberante no meio das nuvens, não deixando nenhuma desculpa para sair do trabalho e ir direto pra casa. O sol ainda nem se pôs e estamos em uma sorveteria artesanal no centro histórico da cidade, nossa primeira parada de muitas hoje.

- eu fico tão feliz que você está bem instalado lá em Berlim, Bê. Essa mudança toda fez muito bem pra você.

- no começo foi complicado, Edu. Senti muita falta de tudo aqui. Da família, dos amigos, de Porto Alegre em si... Quase voltei na primeira semana, não achei que iria suportar.

- mas você conseguiu. E viu que lá tinha um futuro brilhante te esperando.

- é, você tem razão.

- o Fabrício parece ser uma pessoa legal. – tento ao máximo fingir que o que eu falo é verdade, embora eu só consiga sentir coisas não muito agradáveis quando falo dele.

- ele é uma pessoa complicada. Não era, no começo. Agora ele tem se mostrado bastante ciumento, impaciente... Não sei o que fazer.

- você acha que ele tá assim por algum motivo em especial?

- desde que eu falei que a gente viria pra cá, ele já ficou ouriçado. – ele sorri, parecendo se divertir com algum pensamento privado. – acho que ele tem ciúmes de você.

Quando ele fala isso, ele me olha, parecendo que sabe que eu também sei disso. Eu não consigo mentir para ele.

- eu sei. Ele não conseguiu esconder isso muito bem na formatura.

- aconteceu alguma coisa no banheiro, aquele dia?

Meus olhos abaixam para a minha taça de sorvete, enquanto meus dedos circulam ao seu redor, perseguindo as gotas da água que derreteu por causa do calor.

- ele te falou ou te fez algo?

- não, Bê. Por que a pergunta?

- porque você voltou estranho de lá, assim como ele.

Dou uma longa suspirada, tentando achar algo pra falar que não deixe as coisas complicadas para o Fabrício, mesmo que ele mereça um pouco.

- acho que ele só tem ciúmes da gente, mas eu entendo. Temos uma conexão muito forte, Bernardo, e ele é seu namorado, é normal que ele aja assim.

- eu sei, ele sempre teve. Mas achei que ele não agiria assim aqui. Ele precisa se controlar, sabe?

- não esquenta com isso. Cadê ele, falando nisso?

- agora? Deve estar no avião, voltando pra Alemanha.

- tá falando sério?

- to, a gente se desentendeu ontem e ele quis ir embora. Eu não insisti, se era pra ficar com esse clima, é melhor ele ter ido mesmo.

- vocês não brigaram por minha causa, brigaram?

- não foi por sua causa, Edu. Foi pelas atitudes imaturas dele desde que a gente chegou. Quando eu e a Marina fomos jantar com você e com o Felipe, ele não quis ir e ficou de birra porque a gente foi sem ele. Aí na formatura ele ficou com aquela cara à noite toda, deixando todos constrangidos. Eu estou sem paciência pra isso, de verdade.

- dá um tempo pra ele repensar, logo ele vai ver que tava errado e vai pedir desculpas.

- é, você tem razão. Mas não foi pra isso que a gente saiu, né? Não quero discutir problemas conjugais agora. – ele me lança um sorriso descontraído, fazendo o clima relaxar automaticamente. – como tá o restaurante?

- tá bom. Bastante agitado, mas é bom assim. Eu nem vejo o tempo passar. A Marina te contou quem foi lá esses dias?

- não, quem?

- Paola Carosella. – minha voz sai orgulhosa, lembrando do encontro insano que a gente teve.

- não brinca! E aí, como foi?

- ela pediu algum prato de sugestão do chef, aí eu cuidei de tudo, pra impressionar ela o máximo possível.

- e aí? Ela gostou?

- pediu para o gerente chamar o chef e parabenizar. – eu lanço um sorriso um pouco tímido, pois não quero parecer metido, mas eu precisava compartilhar isso com Bernardo. Só de pensar nisso, meu peito explode de alegria.

- Eduardo, que incrível! Nossa, tipo, caramba! Paola Carosella? Caralho! – ele está eufórico, visivelmente orgulhoso de mim, fazendo eu rir junto com ele.

- é, eu sei. É insano.

- você tem um dom incrível, meu amigo. Você não cozinha apenas com as mãos, você cozinha com o coração. Tá aí a chave do seu sucesso.

- eu tento sempre ser o mais competente possível, sabe Bê? Me esforço muito em sempre deixar tudo bom o suficiente, e eu amo o que eu faço.

- eu ainda vou te ver sendo um dos chefs mais renomados do país. Eu tenho certeza disso.

- Deus te ouça, meu amigo.

Enquanto ele me olha com o mesmo sorriso de sempre, vejo que mesmo mudando tanta coisa nas nossas vidas nesses anos, ele continua o mesmo melhor amigo ruivo, cheio de sardas, descontraído e sentimental de sempre, só que mais adulto. Nossa relação parece ter se fortificado com a distância, pois ele teve que aprender a separar a confusão de sentimentos que ele sentia por mim para poder enxergar que o que se passava na verdade era uma amizade muito forte, então as coisas se resolveram.

A porta da sorveteria se abre por entre o ombro de Bernardo e eu vejo Marina e Felipe entrando sorrindo e conversando. Apesar de estar com um sorriso no rosto, Marina está com a expressão triste, e eu sei bem o motivo.

- combinaram de chegar juntos, hein?

- encontrei a Marina aqui na frente. – Felipe toma a frente enquanto chega ao meu lado e me planta um beijo breve nos lábios. – como vocês estão?

- estamos bem, chegamos não faz muito tempo também.

- e você Mari, tá legal?

- ah, sim, só um pouco pra baixo por causa da Barbara. Acho que eu nunca vou me acostumar com essas viagens. Ficar longe dela é um saco.

- eu sei como é. Amanhã eu vou estar sentindo isso também.

- você tá de férias, por que não vem comigo?

- ah não, Fê. Você vai a trabalho, não é muito legal eu ir junto. Do mesmo jeito você vai estar correndo pra lá e pra cá, nem vamos aproveitar juntos.

- bem, você que sabe.

- traz alguma lembrancinha de lá pra gente, cunhado. – Marina se pronuncia, divertida. - e não é qualquer lembrancinha. Quero um chaveiro do Cristo Redentor.

- pode deixar. Mas agora eu estou morrendo de vontade de provar esse sorvete daqui. Bora pegar os nossos, Mari?

- demorou.

Eles se levantam e seguem em direção ao buffet variado de sabores, enquanto eu os observo.

- você e o Felipe não mudam.

- como assim?

- o mesmo brilho no olhar, mesmo depois de todos esses anos, o companheirismo. Vocês são o verdadeiro sentido de amor verdadeiro, meu amigo.

Meu coração se aquece em ouvir isso. Ver que as pessoas têm essa imagem de mim e de Felipe é algo tão incrível, pois eu sei quanta coisa passamos para ficar juntos, e mesmo com todas as dificuldades, nos o fizemos da melhor forma que conseguimos.

De volta à mesa, me impressiono com o tamanho da taça de sorvete de Felipe, que tem todas as cores possíveis, com bastante calda de chocolate, e quando eu falo bastante, é bastante mesmo, e alguns doces e confeitos por cima. Uma grande bomba calórica que parece estar muito bom.

Depois de saciarmos nossa vontade de doce, seguimos em nossos carros pelas ruas já escuras da cidade em direção a um bar de música ao vivo, não tão longe dali. Esse é o bar preferido de Bernardo e estamos indo até lá para ele matar a saudade antes de voltar para Berlim, o que será em poucos dias. Meu coração se aperta só de pensar que ele vai embora de novo. O tempo com ele aqui parece voar. Não é justo ter alguém que a gente goste tanto morando tão longe assim. Mas eu prefiro não pensar muito sobre isso agora, apenas quero aproveitar ao máximo enquanto ele está aqui, em terras brasileiras ainda.

Há uma banda tocando covers de Clarice Falcão, Skank, Paralamas do Sucesso, entre outros ícones da nossa música. É um repertório bastante variado e que anima todos que estão nas mesas, sabendo as letras de todas as canções. É um clima muito nostálgico e acolhedor, regado a chopp, para mim, para Felipe e para Marina, e a caipirinha, para Bernardo. Estamos beliscando alguns petiscos também, enquanto a noite ainda está no início.

- já estou sentindo falta do Brasil, antes mesmo de ir embora.

- você não pensa em voltar, algum dia?

- penso muito sobre isso, Edu. Eu amo Berlim, mas eu sei que o meu lugar é aqui. Perto de vocês, perto da minha família. A saudade dói muito, às vezes.

- então por que você não volta?

- ah... não é tão simples assim, né? Estalar os dedos e mudar tudo de uma hora pra outra, mesmo que eu quisesse. Eu estou com aquela oportunidade na Volks, não posso perder isso.

- essa é a parte complicada de ter que se fazer escolhas na vida, Bê. A gente nunca vai conseguir estar cem por cento em harmonia com tudo, sempre terá algo que poderia estar melhor. Mas a gente tem que saber que a vida é assim, sabe? É um grande labirinto, onde tem que escolher muito bem em qual corredor vai entrar.

- eu escolhi um corredor bem longe, hein?

- pra caramba. – eu sorrio e lhe dou um soco leve no braço, em sinal de cumplicidade. É visível a angústia de Bernardo em querer ficar aqui, mas ele tem uma vida feira na Alemanha. Será que vale a pena desistir a essa altura do campeonato? Eu só espero que qualquer que seja a decisão dele, ele tome-a com calma e sabedoria. No fundo, queria muito que ele voltasse, mas eu não sei se é o melhor pra ele. E sinceramente, essa é uma decisão que só ele pode tomar.

___

Passo a toalha pelo cabelo molhado do banho, feliz por tirar o suor do corpo e trocar a calça jeans calorenta por meu calção confortável. Ainda não são nem 11 horas da manhã, mas eu já sai e voltei de casa. Deixei Felipe no aeroporto logo cedo, e eu sei o quanto isso me deixa angustiado, embora isso tenha se tornado cada vez mais comum, agora que ele é o cabeça lá da agência. Já perdi as contas de quantas vezes ele teve que passar dias fora de casa em convenções e eventos fora da cidade, mas sempre é algo complicado pra mim. Depois de me despedir dele, fui até o mercado e depois ao banco, para resolver algumas pendências da minha conta corrente. Aproveito meu dia de folga para fazer tudo, menos descansar. Estou indo em direção ao quarto para pegar uma camiseta quando ouço meu telefone tocar, então me apresso para atender. Na tela, o nome de Cassiano me faz ficar apreensivo. Ele me ligando? De uma hora pra outra? Isso definitivamente não é normal.

- alô?

- alô, Edu?

- oi Cassiano, tudo bem?

- tudo sim. Desculpa te incomodar na tua folga, eu liguei pro restaurante e o pessoal me disse que hoje era o seu dia. Você tem algum compromisso para o almoço hoje?

- a princípio não. Aconteceu alguma coisa lá no restaurante? – não consigo esconder o tom de preocupação em minha voz.

- não, lá tá tudo tranquilo. Eu só preciso conversar sobre alguns assuntos com você. Podemos nos encontrar meio dia, no Outback do Barra?

- claro. Te espero lá.

- tudo bem, abraços, garoto.

Desligo e já fico pensando em diversas possibilidades. Será que eu fiz algo de errado? Não estou conseguindo segurar as pontas na ausência do Bruno? Eu espero que não seja nada demais.

Como já estou de banho tomado, apenas preciso escolher alguma roupa para o encontro repentino. Passo meus olhos pelas divisórias do guarda roupa aberto e pego minha polo vinho, uma calça jeans clara e meu tênis casual. Resgato meu relógio prata da gaveta, já que são muito raras as vezes que eu o uso, mas provavelmente me dará um ar mais sério, apesar de ainda parecer informal. Acho que isso deve servir. Depois de me arrumar, pego as chaves e a carteira e sigo para o shopping, um pouco adiantando demais, mas prevenido o suficiente.

Assim que passo pelas portas imponentes de vidro do shopping, fico aliviado por não haver uma multidão de pessoas, como eu imaginava. Se tem algo que eu não suporto, é transitar em shopping lotado. Isso me causa níveis absurdos de estresse. Olho para meu relógio, que ainda apontam 11:45, mas já decido subir para pegar uma mesa. O garçom acaba de me dar o menu quando Cassiano surge, elegante como sempre, mas com um sorriso que tenta, sem sucesso, esconder algo de errado.

- você chegou cedo! – ele diz enquanto aperta minha mão. – como vai, Edu?

- bem, e você?

- também. Viagem um pouco cansativa, tudo muito às pressas, mas estou bem.

- que bom. – lhe dou meu melhor sorriso, embora também esteja na expectativa de saber o que aconteceu.

- você tá com fome?

- um pouco. Vamos pedir?

- vamos, claro.

Ele acena para o garçom e pede uma salada Caesar com peito de frango, enquanto eu fico com as tradicionais cebolas douradas com molho. Depois que o garçom volta a se retirar, Cassiano parece estar um pouco mais relaxado do que quando chegou.

- Pablo me falou sobre a Paola. Meus parabéns, Edu. Isso é algo admirável.

- ah, sim, obrigado Cassiano. – digo um pouco sem jeito. – até agora aquilo parece loucura.

- você conseguiu impressionar a Paola Carosella. Isso é um feito para poucos. Pablo está muito orgulhoso de você.

- sério? – arqueio as sobrancelhas, em espanto. Deixar Pablo satisfeito assim também não é um feito muito fácil.

- sério, e eu também. Sempre soube do seu talento, rapaz. Não foi à toa que eu fui atrás de você.

- bem, obrigado, de verdade. Significa muito pra mim.

O garçom retorna com nossas bebidas, interrompendo-nos por alguns instantes, e eu sabia que essa seria a brecha que Cassiano usaria para chegar no assunto em questão pelo qual ele me chamou aqui.

- bem. – ele introduz antes de tomar um gole de seu suco de laranja. – eu vim até Porto Alegre pra conversar com você sobre um assunto importante.

Quando ele fala isso é me olha firme, a expressão ilegível, meu estômago se embrulha.

- eu fiz alguma coisa de errado?

- não! Não é nada disso, por favor. – ele diz, sorrindo, me fazendo suspirar descaradamente de alívio. – na verdade, tem um problema lá em São Paulo. Um problema muito grande, pra ser sincero. – ele volta a tomar seu suco, antes de coçar abaixo de seu queixo, onde a barba recém aparada já começa a aparecer.

- estamos abrindo mais três restaurantes no nordeste até o meio do ano. Um em Recife, outro em Salvador e outro em Natal. Eu já estava organizando isso há alguns meses, mas só agora que as coisas estão andando. Mas eu estou com um problema em relação a isso.

- qual? – pergunto honestamente sem saber onde eu poderia me encaixar nessa história.

- eu vou ter que ficar um ano lá, organizando e comandando tudo até que eu ache alguém para ficar. Você sabe como eu sou exigente em relação às pessoas que trabalham na franquia, então eu não vou poder escolher qualquer um para ocupar o lugar. Mas pra isso, eu vou teria que deixar a unidade de São Paulo sozinha durante esse um ano. O que, francamente, é impossível. E é aí que você entra.

Eu simplesmente pisco pra ele, esquecendo de como se fala. O que ele quer dizer com isso? Vendo que ele não teria uma resposta, mesmo que o que ele tenha dito não fosse uma pergunta, ele prossegue.

- eu tenho essa proposta pra você. Acredite, eu sei que parece loucura, mas eu não tenho mais ninguém a quem recorrer. Todos os gerentes das outras filiais estão atarefados, seria impossível eles deixarem tudo para assumir o de São Paulo. E eu não posso deixar essa oportunidade passar. São três unidades no início, mas se tudo der certo, podemos abrir o dobro disso no ano que vem.

- Cassiano, eu... nossa, eu não sei o que dizer. Você quer que eu assuma o restaurante em São Paulo?

- por um ano. Eu sei que parece muito tempo, mas não é. Passa rápido.

- você acha que eu sou qualificado pra isso? – digo ainda com o corpo tenso, com a voz irregular.

- Edu, você conseguiu impressionar Paola Carosella. De você, eu não duvido mais nada.

Confesso que ouvir isso de Cassiano me deixou realmente feliz, mas ainda assim acho que isso é loucura. Comandar o restaurante principal da franquia, em São Paulo? Tudo bem que eu estou comandando a cozinha da unidade daqui de Porto, mas caramba, é totalmente diferente.

- Cassiano, é uma proposta absurdamente boa, mas eu preciso pensar. É muita responsabilidade. – sinto minhas bochechas quentes. Eu estou muito tenso.

- claro, eu não estou pedindo uma resposta imediata. Conversa com o Felipe, pensa a respeito, e se possível no final da semana me dá o veredito. Mas eu espero, sinceramente que você aceite. Eu preciso da sua ajuda, Edu.

Essa última frase apenas me quebra por dentro. Acompanho Cassiano quando a franquia de restaurantes estava em seu começo, onde tudo era incerto e parecia loucura. Quando tudo começou a dar certo, eu vibrei com ele, vi os resultados florescerem com ele. Eu entendo que numa situação dessas, ele recorra a mim. Mas caramba, assumir um restaurante, mesmo que temporariamente, é insano.

- eu vou te dar a resposta até o fim da semana. E obrigado pela confiança, Cassiano. Isso pra mim vale muito.

- você sabe que é um dos meus braços direitos. Se eu não confiar em você, em quem mais?

Então, como se fosse ensaiado, o garçom vem com sua bandeja abarrotada, trazendo nossos pratos. Agora eu sei que, apesar do meu estômago parecer estar vazio, pois ele está se revirando o tempo todo, eu não estou com fome. Quem poderia pensar em comer quando se tem uma bomba no colo, recém jogada pelo seu chefe, e que tem tempo limite pra desarmar? Bem, comer não é nem de longe uma das minhas principais preocupações agora.

Depois de ficarmos mais algum tempo conversando, Cassiano fala que ainda precisa passar no restaurante pra falar com Pablo. Me despeço dele e ele me relembra de pensar com calma sobre a proposta, então ele segue para o sentido oposto do meu, me deixando sozinho com meus pensamentos desgovernados. Um ano em São Paulo? Mas e o Felipe, onde fica nisso? E o nosso casamento? Ah droga, estou passando mal. Preciso tanto falar com Felipe, mas numa hora dessas ele deve estar no avião, chegando no Rio. Não posso importunar ele com isso agora, vai tirar sua concentração. Sigo de volta para casa ainda com um mal estar e um pouco de dor de cabeça. Nem o rádio ligado em uma estação qualquer consegue aliviar meu cérebro turbulento. Passo pela sala e jogo as chaves na mesinha da entrada, que caem ruidosamente pelo vidro enquanto eu sigo até o banheiro pra lavar o rosto. Essa é a oportunidade da minha vida. Eu vou estar no comando de uma unidade da franquia do Cassiano. Isso faz com que eu suba de nível na minha breve carreira na gastronomia, me trazendo boas referências pra mais tarde. Boas não, ótimas. Eu, com menos de 25 anos, já vou ter tido a experiência de comandar um restaurante. Esse é o patamar alto que eu achava que não conseguiria chegar tão cedo, se eu chegasse. Mas eu tenho uma vida toda planejada aqui, tudo pronto pro meu casamento, eu não sei o que fazer.

O celular toca no meu bolso assim que eu termino de enxugar o rosto e de sair em direção à cozinha. É Bernardo. Preciso tanto conversar com ele sobre isso.

- alo, Bê?

- fala caipira, tá fazendo o que?

- acabei de chegar em casa. Tinha ido almoçar com o meu chefe.

- olha, que funcionário exemplar. – sua voz sai divertida do outro lado da linha, quase conseguindo me arrancar um sorriso, se não fosse por toda a situação tensa. – eu to indo buscar a Marina no trabalho agora, o que você acha da gente fazer uma janta, nos três, como nos velhos tempos?

- é uma ideia ótima. To precisando mesmo me distrair um pouco.

- certo, a gente te encontra aí daqui meia hora. Vamos no mercado comprar algumas coisas. E sou eu quem vai cozinhar, não adianta tentar negociar.

- bem, se você faz questão. Vamos ver se você realmente sabe cozinhar.

- isso me soou como uma afronta, então acaba de ficar pessoal. Eu vou arrasar na tua cozinha, vacilão.

Finalmente ele consegue fazer eu sorrir. Ele percebe e sorri também.

- eu vou me arrumar então, daqui a pouco a gente chega ai.

- tá bom, até já já.

Desligo e me sinto um pouco melhor. Mesmo se eu não tivesse essa decisão difícil de fazer, minha noite já estaria predestinada a ser um saco sem Felipe, sozinho aqui em casa. O tempo passa rápido e logo o interfone toca, com o porteiro anunciando que os dois estavam me esperando. Desço até o térreo, cumprimento-os e seguimos até o supermercado.

Agora estamos com um carrinho pequeno abarrotado de coisas, andando pelo longo corredor de bebidas. Há dezenas de marcas de vodkas, cervejas, whiskys, martinis e afins. Sobre essa parte, Marina fica responsável. Ela pega uma garrafa de vodka de frutas vermelhas e outra de vinho tinto seco, cada uma embaixo de um braço, já que o carrinho estava cheio e se caso alguma delas caísse, o prejuízo seria grande. A garrafa de vinho, segundo o Bernardo, seria parte do jantar, me fazendo ficar mais curioso.

- você tá quieto. – Marina me tira dos meus pensamentos, que agora estavam longe, mais precisamente no Rio de Janeiro. – aqui é a depressão tour? Eu, você, sofrendo pela ausência dos nossos amados. Não dá gente. Daqui a pouco só falta começar a tocar Hello nos altos falantes aqui desse mercado, aí tá tudo completo. Eu hein. – ela acaba fazendo uma cara de indignada muito engraçada, fazendo eu e Bernardo nos entreolharmos.

- já acabou, Jessica?

- é, Jessica? – ele imita a pose da menina no meio do corredor, fazendo todos em volta olhar. É oficial, eles não batem bem da cabeça, de jeito nenhum. Uma senhora idosa que passava por nós nos olha com os olhos arregalados, então começarmos a rir.

- agora sim, bem melhor. – Marina fala olhando pra mim, que ainda estou sorrindo pelo episódio de antes.

Estamos indo para a fila do caixa quando meu celular vibra no bolso. Eu desbloqueio e vejo uma foto enviada por mensagem, de Felipe. Ele está de braços abertos, imitando a pose do Cristo Redentor, que está atrás dele. Logo abaixo, a frase “queria você aqui comigo.” Me faz suspirar.

- ele tá no Cristo. – eu digo sorrindo, então mostro a foto para os dois. Enquanto a moça do caixa passa as coisas, eu fico pensando em como vou contar pra ele sobre a proposta de Cassiano. Como será que ele vai reagir? Eu não tenho ideia. Mas com certeza eu não vou falar agora. Quero conversar pessoalmente, depois que ele chegar de viagem.

Seguimos para o meu apartamento tendo uma conversa animada sobre a ideia de Marina de cortar o cabelo e fazer uma tatuagem. Ela quer dar um up no visual e está decidida decidida a radicalizar. Depois de debatermos sobre, chegamos na garagem do subsolo e depois subimos com as sacolas pelo elevador.

Logo ao chegarmos Bernardo vai para a cozinha, anunciando que vai fazer um espécie de “jantar alemão no estilo Bernardo.”

- eu aprendi algumas coisas lá em Berlim e fui aprimorando até ficar do meu jeito. – ele diz enquanto descasca algumas batatas, sentado na banqueta.

- culinária internacional? Arriscada? Você sabe que eu sou exigente pra comida. – eu finjo um ar de superioridade, sem sucesso. Ele começa a rir e eu desarmo a cara. Marina está responsável de cuidar do som, com seu pen drive recheado de musicas bem diversificadas. Agora está tocando Called Out in the Dark, do Snow Patrol, e estamos todos reunidos ajudando o chef Bernardo a descascar as coisas para o jantar. A primeira coisa que ele termina de fazer são as panquecas feitas de batata, muito comum lá na Alemanha, eu já havia ouvido falar sobre. Depois, ele começa a preparar uma costeleta de porco, espremendo um limão e deixando descansar enquanto corta uma cebola. Depois de dourar a carne na frigideira, ele coloca as cebolas para dourar e derrama o vinho junto, formando uma espécie molho aos poucos. O cheiro já começa a abrir meu apetite. Por último, ele prepara um arroz com pedaços de maçã verde e gengibre. No final, está tudo tão bonito e cheiroso que eu realmente duvido que tenha sido Bernardo que tenha cozinhado aquilo. Será que é a Palmirinha disfarçada por baixo daquele cabelo ruivo, gente?

- tenho que admitir, você me impressionou. Tá tudo com uma cara ótima. – eu falo impressionado enquanto ele coloca as coisas na mesa de jantar.

- tudo o que precisei foi um pouco de pratica.

- vejo que meu posto de chef esta ameaçado, agora mais do que nunca.

- ah eu não ousaria tirar seu trono, majestade. – ele faz reverencia, fazendo eu e Marina rir.

Se a cara já estava ótima, o sabor está melhor ainda. A panqueca de batatas, agora coberta com alguns pedaços de pimentão verde, é uma das coisas mais simples e saborosas que eu provei. A carne com o molho de vinho é suave e marcante ao mesmo tempo, mas o que realmente me impressionou foi o sabor improvável do arroz com maçã verde e gengibre. Enquanto o doce da maçã faz o contraste com o restante dos temperos, a gengibre deixa uma leve ardência na garganta, que não incomoda, mas que marca presença.

- olha, meu irmão, você tá de parabéns. E eu quero bater na tua cara porque tu não cozinhava assim quando morava comigo. Antes era só miojo s ovo frito, agora essas comidas chiques aí? To é revoltada.

Todos nós rimos e então terminamos de comer, enquanto Bernardo está visivelmente orgulhoso de ter feito algo que lhe rendeu tantos elogios. Eu sei como é isso, cozinhar para outras pessoas e esperar que saia bem, e quando sai e recebe elogios, ficar feliz. É uma sensação de dever cumprido.

Já com a barriga cheia, vamos para a sala e começamos a decidir quais filmes iríamos assistir pelas próximas horas. Optamos por três clássicos de serial killers; Sexta feira 13, A Hora do Pesadelo e O Massacre da Serra Elétrica. Todos de 20 ou 30 anos atrás, com produções simples, mas que viraram filmes cult. Começamos com o Jason, para pegarmos leve, mas embora eu estivesse me distraindo com o filme, ganhado alguns bons sustos, eu não conseguia parar de pensar na proposta. Eu preciso tanto conversar com eles sobre isso, meu peito está pesado, eu preciso por isso pra fora, desabafar.

Tudo fica ainda mais complicado quando eu recebo um SMS de Felipe, perguntando como nós estamos, e falando para nos comportarmos.

“Estamos no meio de uma sessão de filmes. Acabamos de jantar e preciso dizer que Bernardo cozinha muito bem. Tenho uma concorrência forte aqui. Estou com saudades.”

Menos de um minuto meu celular volta a vibrar.

“Nunca vou me acostumar a ficar longe de você. Estou contando os dias pra te ver de novo, meu amor. Te amo, boa noite e até amanhã.”

Meu coração se parte em mil pedaços com essa ultima mensagem de texto.

‘Nunca vou me acostumar a ficar longe de você.’

Ah Felipe, se você soubesse o quanto eu estou mal por ter que decidir entre investir na minha carreira e ficar um ano longe de você ou ficar do seu lado e perder uma oportunidade de me tornar um nome de peso no ramo que eu amo. Se você soubesse que passar dois dias longe não é nada perto de passar 365 desses mesmos dias, e que é nisso que eu estou pensando o dia todo, mas que mesmo assim eu quero muito ir, pois significa muito pra mim, mas que ficar longe de você esse tempo todo vai ser horrível pra mim. Me agarro forte na almofada do sofá e tento não pensar nisso agora, tento acalmar meus pensamentos e meu coração, pois de nada vale sofrer por antecipação.

Acabamos de assistir o filme e Marina ainda está revoltada por saber que o assassino do primeiro filme não é o Jason, e sim a mãe dele. Entre vários “minha adolescência foi uma farsa” e outros “que louca que ela é”, ela coloca o filme do Freddy pra carregar, enquanto Bernardo se levanta do sofá e anuncia que vai preparar pipoca de microondas, mas eu interrompo os dois.

- gente, eu preciso falar um negócio pra vocês.

Eles percebem minha cara séria e então param de falar.

- o que houve, caipira? – Marina é a primeira a falar, já preocupada.

- hoje de manhã, depois que eu larguei o Felipe no aeroporto, o Cassiano, lá de São Paulo, me ligou. Eu até comentei com o Bernardo sobre isso.

- é, eu lembro. Mas aconteceu alguma coisa?

- aconteceu. Ele me fez uma proposta.

Eles me olham surpresos, mas não falam nada, então eu prossigo. – ele vai ter que ficar fora durante um ano, resolvendo algumas coisas sobre a inauguração de três restaurantes no Nordeste. Aí ele me pediu para assumir o restaurante de São Paulo.

- cê tá brincando? – Marina me olha boquiaberta, em seguida vindo me abraçar, mas assim que ela me envolve com seus braços e eu apenas lhe retribuo com um dos meus braços em sua volta, sem nem sorrir ou demonstrar alguma alegria, ela estranha.

- você não tá feliz?

- to, claro que to. Caramba, ele quer que eu gerencie o restaurante principal da franquia por um ano. Mas você sabe o que isso significa.

- o que? – ela estava ainda se recuperado da euforia rapidamente interrompida, que eu acho que ela realmente não esteja pensando direito.

- eu vou ficar um ano em São Paulo, Mari. Longe de todos vocês, longe do Felipe.

- ah Edu... – sua expressão muda, e ela se senta do meu lado, quieta.

- ele me deu tempo pra pensar, mas eu sei o quanto eu quero ir, mas eu vou ter que deixar minha vida toda aqui pra isso. O que mais me deixa triste é sobre o casamento. Vamos ter que adiar tudo. Eu até imagino como Felipe vai ficar.

- ele vai ficar triste, com certeza, mas ele vai entender.

- entender ele vai ne, mas vai ficar triste.

Agora Bernardo também senta do meu lado, fazendo eu ficar no meio dos dois, e então ficamos em um breve silêncio. Eu sei que não há nada a ser falado agora, a não ser aquelas palavras clichês e genéricas que não servem pra nada, tipo “você vai saber o que fazer, não se preocupe.” Por sorte eles não são assim. Bernardo me pesca para um abraço silencioso, de lado, fazendo eu repousar minha cabeça em seu ombro em seguida e Marina se deita em meu colo.

- é o seu futuro, Edu. Oportunidades como essa não vão surgir o tempo inteiro, talvez até essa seja a única, nessa proporção. Você precisa agarrar.

- um ano pode parecer tempo demais, mas você vai estar tão atarefado lá que quando perceber já está na hora de voltar.

- é Bê, mas é como fica a minha relação com o Felipe? Eu nunca me relacionei a distância, já fico mal por passar dois dias longe dele, quem dirá um ano.

- vocês podem se vê uma vez no mês, avião tá aí pra isso, encurtar distâncias. Eu sei que não é a mesma coisa que se ver todo dia, mas já alivia a saudade, né?

- é eu sei, mas a ideia de relacionamento à distância me assusta. Seria como namorar um holograma, você vê mas não pode tocar. Isso é estranho demais. Ainda mais agora que estamos noivos, eu não sei o que fazer, droga. – agora eu estou sentado novamente, colocando as mãos no rosto e fechando os olhos com força, tentando achar alguma solução para isso, mas eu sei que não tem. Se eu me decidir por um caminho, terei que abrir mão de outro.

- antes de tomar qualquer decisão, você precisa conversar com ele. Só aí você vai saber o que fazer. – Marina encosta sua mão em meu ombro, enquanto eu tiro as mãos da cara e dou um longo e pesado suspiro. Eles têm razão. Antes de tudo, eu vou conversar com Felipe sobre isso. Só aí que eu vou ter clareza o suficiente pra decidir.

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Quando terminamos de assistir o último filme já são quase 4h da manhã. Como nenhum de nós três temos que acordar cedo, isso não é um problema. Sinto que eu consegui me distrair um pouco, em meio aos sustos, à pipoca e aos assuntos aleatórios breves entre alguma cena ou outra. Depois que o Leatherface faz aquela espécie de dancinha, girando pra lá e pra cá com a serra elétrica pro alto enquanto a mocinha do filme escapa na caminhonete, eu dou um bocejo e sinto que já está na hora de ir pra cama. Após dar boa noite e esperar que eles subissem para o quarto onde eles iriam dormir, sigo para o banheiro, escovo os dentes, faço o cateterismo, que ainda me irrita pra caramba, e por fim vou para a cama. Falar em cama, ela parece grande demais sem Felipe agora. Me transfiro da cadeira para ela e faço questão de deitar do lado dele hoje, enquanto me afundo em seu travesseiro e sinto seu cheiro impregnado lá, então meu coração bate acelerado novamente. Dizem que com o passar dos anos os relacionamentos se tornam mais brandos, mais ordinários, sem ter muito esse lance sentimental como se tem no começo. Mas no meu caso eu discordo. Mesmo estando com Felipe há quatro anos, eu sinto um misto de sentimentos intensos tão forte quanto em nosso primeiro mês de namoro. Claro que as coisas se acalmaram, ficaram mais tranquilas e a gente acabou amadurecendo. Não é como se a gente ainda tivesse 17 anos e estivéssemos no colegial, tomando banho de cachoeira ou nos beijando escondido no fundo da biblioteca, mas ainda assim há muito daquele mesmo velho amor. É com meu pensamento lá onde ele está que meu sono me envolve e eu acabo fechando meus olhos, entrando diretamente na terra dos sonhos, desejando que a noite passe rápido e que amanhã eu veja-o novamente.

O calor intenso e o clima ensolarado estão dando lugar a um céu coberto de nuvens cinzas hoje. Já estou de pé esperando Marina e Bernardo para levar ele no aeroporto e também para encontrar Felipe lá. A diferença dos voos dele é de pouco mais de uma hora; Felipe logo chega e então Bernardo vai. Me sinto triste em pensar que ele já vai ter que voltar pra Berlim. O pouco tempo em que ele ficou foi tão bom, mas foi tão curto. Pelo menos conseguimos matar a saudade. Assim que Mari me avisa que está esperando lá embaixo, eu desço e encontro eles já com uma expressão cabisbaixa, em tom de despedida antecipada. Toda vez é assim. A tristeza da despedida é proporcionalmente igual à alegria do reencontro, quando se temos alguém que amamos que mora longe. Será que vai ser assim quando eu estiver em São Paulo, em relação a Felipe? Tenho quase certeza que vai ser ainda pior.

- bora? – Bernardo está com os cabelos ruivos molhados e em um tom acobreado por causa do reflexo do sol.

- bora.

- só de pensar em quanta coisa que eu tenho pra resolver por lá assim que eu chegar, nem da vontade de ir.

- garanto que eu e a tua irmã não nos imperaríamos de dar meia volta e ir até uma padaria tomar um bom café da manhã e te prender aqui no Brasil, pra nunca mais sair.

- eu também queria muito, mas não posso.

- só espero que não demore tanto pra você voltar pra cá da próxima vez, né? Você esquece que tem família aqui. – Marina fala em um tom de ressentimento, mas sabemos que ela está apenas caçoando.

- estou pretendendo vir até a metade do ano de novo, em algum feriado prolongado.

- avisa a gente direitinho, aí a gente combina melhor pra onde ir. Faltou lugares pra te levar dessa vez, aí a gente compensa na próxima.

Eu me viro pra ele, que agora está no banco de trás, e ele confirma com a cabeça.

- ah Bê, deixa só eu te pedir um favor? – Marina se pronuncia, a voz calma.

- claro Mari.

- não traz o Fabrício da próxima vez. Todos agradecemos.

Eu não consigo me conter e começo a rir junto com ela, e vejo que ele também.

- não tenho muita certeza de que ele vai querer vir, mas mesmo que queira, eu não trago. Ele só me deu dor de cabeça aqui.

Marina ergue as mãos pro céu, rapidamente é claro, já que está no volante, então rimos novamente. Tenho a leve impressão de que Bernardo e Fabrício não estão bem, e Bernardo já não está mais paciente com as atitudes dele. Espero que ele veja quem é esse cara e se livre dele, pois como eu mesmo já falei pro Fabrício no banheiro aquele dia, o Bernardo merece coisa melhor.

Depois de estacionarmos o carro, seguimos pra dentro do aeroporto, onde uma pequena movimentação se formava nos guichês das companhias aéreas do terminal 01. Não consigo esconder minha ansiedade ao olhar toda hora para o painel com as informações dos voos. O de Felipe ainda está com a previsão de chegada para daqui a vinte minutos. Para passar o tempo, ficamos sentados conversando e observando as pessoas. É tão estranho pensar que em um lugar como esse há tantos encontros e desencontros todos os dias, tantas pessoas que chegam e que vai embora. É como se aqui fosse uma espécie de santuário. É nessa hora que eu lembro de uma frase que eu vi escrita em algum lugar um tempo atrás, que acabou me marcando.

‘A vida é a arte do encontro, embora haja muitos desencontros pela vida.’

Então, quando a voz no alto falante anuncia algum voo abrindo check in, eu me desperto de meus devaneios, indo novamente até o painel, então meu coração bate mais rápido. Ele está chegando.

- gente, o avião do Felipe está quase pousado. Vamos pro desembarque?

Eles concordam e então pegamos o elevador até o andar debaixo, enquanto eu travo uma luta com meu coração para ele se acalmar. É como de eu não visse ele há 2 meses e não 2 dias e tudo o que eu quero agora é sentir seu abraço.

Após mais alguns minutos, a sala do outro lado da porta em minha frente começa a ficar cheia. Pessoas surgindo por trás da parede, seguindo direto para o outro lado pegar suas malas na esteira. Nessa hora eu já não consigo mais controlar a ansiedade e fico com meu pescoço pra lá e pra cá tentando achar Felipe no meio da multidão. Até que, andando em direção ao portão de desembarque, lá está ele. Com sua pequena mala de viagem em sua mão direita, com seus olhos castanhos impacientes procurando através do portão, até que nossos olhos se encontram.

Ele caminha a passos largos até passar pela porta, contornar a grade de proteção e me dar um abraço apertado, fazendo meu coração se aquecer quando eu sinto seu toque.

- senti sua falta.

- eu também.

Então, sem me importar com os olhares em volta, a gente se beija. Um beijo breve mas intenso, demonstrando a saudade que um ficou do outro. Depois de nos desvencilharmos ele cumprimenta Marina e Bernardo, e então seguimos até a parte da praça de alimentação para tomarmos um café enquanto não chega a hora do Bernardo embarcar.

- e aí, como foi no Rio? – Marina pergunta depois de Felipe se sentar com uma bandeja com uma xícara de capuccino e um pão de queijo.

- foi bem corrido, mas pelo menos pude visitar o Cristo. É ainda mais lindo pessoalmente. Quero te levar lá pra conhecer logo, não foi a mesma coisa sozinho. – nessa parte ele olha pra mim e me cutuca com o braço, sorrindo, e eu sorrio de volta.

- eu e o Be fomos com nossos pais quando a gente era pequeno. Lembra, Be? Você tomou caldo e saiu correndo chorando.

- você tem uma memória ótima, Marina. – ele fala fingido estar irritado, então todos rimos.

- mas algo que eu não gostei de lá foi o calor excessivo. Passei mal no primeiro dia. Até achei que ia pegar um bronze lá, mas nem isso deu.

Felipe nos conta mais um pouco sobre o Rio antes de Bernardo anunciar que ja estava na hora de ir. Nessa hora, o meu rosto e o de Marina já muda de feição, enquanto voltamos até a parte dos guichês das companhias, seguindo para o da Tam. Depois que ele faz o check in, meu coração se apeeta ao ver ele se despedindo de Marina.

- se cuida, Bê. Quando chegar em São Paulo me avisa, a mesma coisa em Londres e em Berlim. Vou ficar esperando.

- pode deixar, Mari. E você se cuida aqui também.

- não demora pra voltar, de verdade.

- vou tentar fazer o máximo pra voltar antes do final do ano. E você ainda tá me devendo uma visita em Berlim. Todos vocês, né? – ele olha para mim e para Felipe, então a gente sorri e concorda com a cabeça.

- é sobre aquilo que eu te falei no carro, sobre o Fabrício...

- não precisa pedir desculpa.

- eu não ia pedir. Eu tava falando sério, não traz ele não.

Ele não se contém e sorri sobre isso, assim como todos nós. Então, é a minha vez de dar tchau.

- lá se vai o menino europeu de novo. – digo abraçando-o.

- vou sentir saudades, caipira.

- eu também, Bê. Se cuida lá. E reforçando o que a Marina disse, não demora pra voltar.

- pode deixar. Se cuida você aqui também. – ele passa a mão pelo meu cabelo, bagunçando-o, então ele chama Felipe para um abraço. Esse momento é tão significativo pra mim, pois eles realmente resolveram suas diferenças. Depois das recomendações de sempre, Felipe se separa dele e volta para o meu lado, enquanto ele segue em direção da sala de embarque. Depois que ele desaparece de nossa vista, vejo Mari deixar escapar uma lagrima. Vendo isso, eu envolvo meu braço em volta de sua cintura, e Felipe passa o dele em seus ombros, formando uma espécie de abraço coletivo.

Já dentro do carro de Marina, seguimos em um silêncio um pouco desconfortável, mas totalmente compreensível para a situação. Dentro da minha mente, eu penso em Bernardo e sobre como falar com Felipe. Sinto que não consigo esperar, preciso conversar com ele sobre isso logo e tirar essa angústia do meu peito.

- estou com fome de comida, o que você acha da gente parar no shopping pra comer? – a pergunta de Felipe pra mim me faz voltar ao aqui e ao agora, mas mesmo eu tentando disfarçar ele percebe que eu não estou bem.

- aconteceu alguma coisa?

- eu estou com vontade de dar uma volta na redenção antes. O que você acha?

- mas eu to com bagagem aqui é tudo, meu amor. Pode ser depois?

- é que eu queria muito ir agora.

- você que sabe.

- Mari, você se importa de deixar a gente lá?

- claro que não. Borá lá. – ela me olha através do retrovisor e eu sei que ela percebeu que a gente vai conversar sobre a proposta. Seguimos até o parque e então ela nos deixa lá. Agora estamos caminhando em direção à beira da água, contornando as poucas pessoas que estão aqui também. O céu está um pouco mais claro agora, mas ainda está nublado.

- lembra quando eu te falei que a cachoeira lá de São Valentim era meu ponto de paz?

- ele concorda com a cabeça, me olhando sem falar nada, então eu prossigo. – então, aqui é como se fosse a minha cachoeira em Porto Alegre. A redenção é meu ponto de paz, o lugar onde você me pediu em casamento... Esse lugar me traz bons sentimentos, boas lembranças.

Eu paro pra olhar para a água, pensando em como eu poderia falar isso, embora eu queira despejar de uma vez e pedir para ele me ajudar a resolver isso.

- o Cassiano veio pra Porto Alegre quando você tava no Rio.

- sério? E aí?

- a gente almoçou juntos. Ele pediu pra conversar comigo. Eu fiquei preocupado que era algo relacionado ao restaurante, algo que eu poderia ter feito de errado e o Pablo tivesse falado pra ele.

- e?

- não era isso. Ele me parabenizou pelo lance da Paola. Mas também me disse que vai ter que viajar pro nordeste pra abrir mais três restaurantes.

- nossa! Três de uma vez só? A franquia tá crescendo. – ele me olha entusiasmado, e isso só deixa tudo um pouco mais difícil de concluir.

- mas isso significa que ele vai ter que deixar o comando do restaurante de São Paulo por um ano. E foi aí que ele me pediu para ir pra lá assumir por esse tempo.

Ele me olha ainda sem falar nada, o sorriso de antes ainda está lá, mas agora mais apagado.

- um ano?

- é. Eu ainda não confirmei nada, ele me deu o tempo que fosse necessário pra pensar, mas levando em consideração que ele viajou de São Paulo até aqui só pra conversar comigo, eu preciso dar uma resposta logo.

- você vai aceitar, né?

- eu não sei, Felipe. E a gente?

Agora ele abaixa a cabeça e fica em silêncio durante alguns segundos, antes de voltar a me olhar, seus olhos um tanto tristes, mesmo tentando não demonstrar.

- a gente dá um jeito. Você não pode recusar.

- ah Fê... – sinto que eu vou chorar, mas ele se agacha e me abraça antes disso.

- você sabe que isso chegaria um dia. Porto Alegre ficou pequena demais pra você, Edu, assim com isso Valentim era pequena há uns anos atrás. Você não pode fechar essa porta.

- do jeito que você fala, eu vou me mudar definitivamente pra lá. É só um ano, depois eu volto pra cá, voando, literalmente. Não me imagino vivendo em outro lugar a não ser aqui, com você.

- eu sei. E eu to tão orgulhoso de você agora. – ele afaga a maçã do meu rosto com seus dedos. – comandar o restaurante de São Paulo? Isso é incrível, meu amor. Meus parabéns.

Ele me beija e eu sinto uma lágrima sua descer pela minha bochecha.

- você tá chorando.

- é de orgulho.

Eu sei que ele é um péssimo mentiroso. Santo Cristo, o que eu faço? Ele está me encorajando, e eu quero tanto ir, mas eu sei que a gente vai sofrer demais longe um do outro. Eu queria tanto recusar e continuar aqui, vivendo do jeito que eu vivo, que já é bom o suficiente, mas essa oportunidade é tão boa pra minha carreira. Agora eu não consigo suportar e também estou chorando, chorando de angústia por não saber o que fazer. Queria tanto poder ir e levar ele comigo, mas seria egoísmo demais fazer ele largar tudo por mim, ainda mais por algo que é temporário. Por hora, tudo o que eu quero agora é continuar nesse abraço que parece me confortar um pouco de todas as dúvidas que pairam na minha cabeça e torcer para que eu consiga fazer a decisão certa.

Comentários

Há 4 comentários.

Por Mirandinha em 2016-01-06 17:10:12
Lūa eu amo a série garoto da mesa 9 acompanho todos os capitulos, essa foi a minha primeira série q eu li nesse site no início do ano passo, e amei, e não demora muito para postar não muito ansioso aki
Por Sirferrow em 2015-12-31 12:24:41
Essa história é shoow!!! Nessa temporada eu to sentindo qua as coisas estão demorando um pouquinho pra acontecer, um pouco maçante, mas nada que prejudique a história. Espero que próximo capítulo n demore mto!!
Por diegocampos em 2015-12-31 03:07:30
Muito bom, gostei muito de ver a reação do Felipe em relação a proposta do edu espero que a relação deles continue forte mesmo um longe do outro. Fiquei muito triste pelo Bernado Jr embora de novo espero que ele volte logo e concordo com a Marina que seja sem o Fabricio kkk espero que ele consiga um cara melhor. Ansioso pelo próximo e concordo com o niss sua descrição na culinária e incrível.
Por Niss em 2015-12-31 02:43:42
Ah gente... Senti um aperto no coração agora... É incrível esse amor deles dois!! Parece que agora vão ter que passar por uma prova e tanto né?! Um ano... Nossa! É uma decisão complicada, mas que tem que ser tomada... Espero que nada afete no relacionamento deles, de verdade... Acho que todos esperam isso né... Enfim.. Lá se vai o bê de novo, poxa! Espero que ele volte logo, e sem o Fabrício, pfv... Essa Marilinda é diva, hahaha, disse na cara mesmo pra ele não trazer o Fab... Hahaha. Bom, fiquei feliz pela parte da descrição dos voos tá? Hahaha Só não esperava a identificação da cia, mas ficou muito bom. Agora um elogio, você fala da minha descrição nas viagens, mas a sua descrição na culinária é incrível! Hahaha Dá até pra imaginar o cheiro e o gosto, muito bom. Espero pelo proximo capitulo. Kisses, Mana Amazônica Guarani.