02. Adeus, UFCSPA

Conto de Luã como (Seguir)

Parte da série O garoto da mesa 09

Dou uma suspirada longa ao passar lentamente pelo corredor da minha ex sala de aula. Já estou vestido com a minha beca e a colação é só daqui a quarenta minutos, então estou tendo uma sessão nostalgia intensa nesse momento. Estou me presenteando com isso, já que é a última vez que eu entro aqui como aluno. É tão estranho pensar que tudo passou tão rápido. Agora eu me sinto com a sensação de dever cumprido, terminando uma etapa tão importante na minha vida.

- recebi sua mensagem. – a voz inconfundível de Marina atrás de mim faz eu soltar um sorriso. Eu precisava dela aqui pra compartilhar esse momento comigo.

- precisava vir me despedir daqui. Queria fazer isso com você. – minha voz sai bastante emotiva, enquanto eu estendo minha mão, chamando ela pra perto de mim.

- fiquei preocupada, você sumiu de lá.

- não podia me formar sem andar por esses corredores uma última vez com você.

Agora eu faço sinal pra ela me empurrar pelo corredor, do jeito que eu nem lembro que ela fez no dia que eu retornei as aulas depois do acidente. Ela mais que prontamente se coloca atrás de mim, com aquele jeito protetor de melhor amiga, e então começamos a andar em sintonia. Olho para fora da janela, onde o céu nos presenteia com uma vista espetacular de uma lua cheia, rodeada por estrelas cintilantes. É sem duvida uma noite perfeita.

- lembra quando o professor Ramiro nos passou uma prova totalmente diferente do que ele nos passou em aula, aí a gente saiu da sala e foi reclamar lá na reitoria?

- lembro, todo mundo saiu da sala e foi junto com a gente. Achei que seriamos suspensos por isso. – falo sorrindo ao lembrar. – e aquela vez que a professora Laisa fez aquela avaliação prática com a gente e a gente colocou açúcar ao invés de sal só pra provocar?

- bem, ela mereceu né?

Entre tantas lembranças, bate um aperto no peito. Caramba, como eu vou sentir saudades desse lugar. Só agora que eu me toquei disso.

- nunca vou esquecer quando eu me atravessei na sua frente sem querer.

- queria te matar aquele dia, pensei que tinha te machucado. Ou arranhado o carro. Me preocupei mais o meu carro, óbvio.

- babaca.

Depois de alguns segundos rindo, um pequeno silêncio se instala. Estamos refletindo. Eu sei que ela também está, pois temos uma conexão mental forte que nem eu sei explicar.

- foi ali que nossa amizade começou. – agora eu me viro e olho pra ela, que também me fita emotiva.

Olho para o relógio e vejo que estamos quase atrasados.

- melhor a gente se apressar. Daqui a pouco vai começar a colação.

- bora se formar, caipira? – ela levanta a mão para um cumprimento.

- bora lá, ruivona. – eu respondo seu cumprimento, andando ao seu lado logo em seguida para o auditório.

__

Quando chega a vez de nossa turma, um a um dos meus colegas começam a entrar no corredor do auditório até que somem da minha vista. À medida que a fila anda e a minha vez vai se aproximando, eu fico com os músculos do estômago contraídos em ansiedade. A conclusão de uma etapa tão importante pra mim, que é a faculdade de gastronomia. Mesmo com toda a confusão que foi minha vida logo no primeiro ano, eu fico orgulhoso de mim mesmo por não ter desistido, mesmo com tantos motivos para eu fazer o contrário. Quando anunciam o meu nome no auditório, eu entro olhando para toda aquela multidão nas cadeiras, a maioria deles virados olhando pra mim, mas eu sei que dessa vez não é por causa da minha cadeira de rodas. Por incrível que pareça, eu sou apenas mais um dos estudantes que estão se formando hoje, sem nada de diferente, e me sentir tão igual a eles me faz ficar tão bem.

Desço pela rampa lateral até a primeira fileira, onde meu lugar está reservado. A reitora abre a cerimônia fazendo um belo discurso motivacional.

Um a um, todos os formandos sobem ao palco pra receberem seu certificado de conclusão, cumprimentar os professores e a reitora e posar para uma foto. Para minha surpresa, quando chega a minha vez, Marina se põe de pé do meu lado e me ajuda a subir a rampa de acesso ao palco para que eu possa fazer tudo sem problemas, devido à falta de “tração 4x4 do meu veículo”. Ao pegar o canudo na mão, a sensação de missão cumprida é muito satisfatória. Poso ao lado da reitora para a foto estampando um sorriso largo no rosto, e logo depois eu caço minha família pela multidão. E lá estão, minha mãe e Felipe, Bernardo, César, Paula, Bárbara e Fabrício. O olhar de orgulho de minha mãe e de meu noivo aquecem meu coração e me fazem ficar ainda mais feliz. Esse é um momento épico, que me proporciona um misto de sensações incríveis dentro do meu peito.

Depois de todos os formandos estarem com os diplomas, fazemos a famosa jogada dos chapéus para o alto, formando uma chuva azul logo em seguida, quando todos se encontram e caem no chão. Marina está bem ao meu lado e me dá um abraço forte, e eu respondo. Esse é o adeus oficial a UFCSPA.

Assim que as pessoas começam a se dispersar, Marina se põe em minha frente, mostrando orgulhosa seu canudo. Eu faço o mesmo, então ela me dá um abraço caloroso.

- parabéns, caipira.

- parabéns, ruivona.

Quando nos desvencilhamos, vejo nossas famílias bem em nossa frente. Os pais de Marina, Bernardo e o Fabrício, que até então eu não tinha visto, se põe a abraçar ela, enquanto minha mãe vem ao meu encontro.

- que orgulho, meu filho! – seu tom de voz é emotivo, enquanto recebo um beijo na testa e um abraço. Penso no quão orgulhosa ela realmente deve estar, pois até algum tempo atrás eu ajudava ela no restaurante, apenas como alguém que amava culinária, mas que não tinha nenhum conhecimento profissional. Mas a paixão pela cozinha é de família, e no meu caso foi tão forte que eu decidi escolher isso pra vida.

- agora sim, um chef formado! – a voz inconfundível se Felipe me tira dos meus devaneios, enquanto eu envolvo ele em meus braços, sentindo seu perfume enquanto cheiro seu pescoço. – parabéns, meu amor.

- obrigado, Fê.

César e Paula também me parabenizam brevemente, até que chega a vez de Bernardo. Quando ele me abraça, olho sobre seus ombros para Fabrício, que me fuzila com os olhos. Isso me deixa um pouco desconcertado, já começando a achar que a teoria de Marina está certa. Mas pra eu saber de verdade, eu preciso confirmar falando com ele pessoalmente, e essa é a hora. Ele vem me parabenizar, enquanto eu o analiso. Fabrício é alto, lá pelos 1,85 de altura, com a pele bronzeada e os olhos castanhos escuros, cabelo bem curto e ondulado da mesma tonalidade.

- o famoso Edu! – não posso deixar de notar o sarcasmo bem escondido em sua voz.

- pois é! Prazer, Fabrício! – tento ser o mais cordial possível, na esperança de minha primeira impressão não deixar transparecer a pequena tensão no ar. Talvez tudo seja apenas coisa da minha cabeça.

- o prazer é meu. – ele me estende o braço para um cumprimento simples. Então ele se posiciona de volta ao lado de Bernardo enquanto os pais de Marina me parabenizam, mas eu ainda estou tentando decifrar Fabrício. Definitivamente há algo nele que está errado. Sua expressão alegre parece esconder alguma irritação, mas eu não sei dizer ao certo.

Nos separamos em nossos carros e seguimos para a festa, em um salão no bairro Independência. Logo quando chegamos já avistamos a rua repleta de carros e o som abafado do lado de dentro do prédio.

Logo ao entrar já consigo ver muitas das mesas ja ocupadas. As luzes roxas refletem na decoração de todo o lugar, com cerca de 30 mesas com toalhas de seda em branco e prata e alguns arranjos de orquídeas delicados. Mais ao fundo há um telão e um DJ bem ao lado tocando uma seleção animada de musicas. Nossa festa de formatura estava rolando oficialmente. Fomos até nossa mesa marcada e pegamos nossos lugares. Todos estão muito entrosados e alegres, mas eu estou vendo que o clima entre Bernardo e Fabrício não está dos melhores. Os dois mal se olham. Será que aconteceu alguma coisa? Bem, não serei cara de pau o suficiente pra perguntar. Em briga de marido e marido, ninguém se mete pra sair ofendido. Então eu decido relaxar e aproveitar a minha festa de formatura, afinal é pra isso que eu estou aqui. No telão, uma montagem com fotos de uma das turmas começa a passar, então eu vejo um aluno ir até à frente de todos com uma folha. Agora começa a parte dos discursos. O da nossa turma ainda vai demorar um pouco, então eu decido ir ao banheiro. Aviso Felipe, que pergunta se eu quero que ele va junto, e eu digo que não é necessário. Tomo meu caminho e vou direto para a minha cabine particular, que é como eu gosto de chamar a cabine adaptada. Quando saio, levo um susto ao ver Fabrício lavando as mãos, bem em minha frente. Seus olhos alcançam os meus através do espelho e nenhum dos dois fala nada por milésimos de segundo, mas é como se fosse por mais tempo.

- você me assustou. – digo com um sorriso educado. Ele não fala nada, então eu tento outra aproximação. – e então, tá gostando da festa?

- pra ser sincero, ela tá um saco.

- ah sim. – eu engulo em seco. Prevejo uma conversa monótona.

- bem, pelo menos dizem que a comida é boa.

- tenho certeza que é.

- e então, o que tá achando do retorno ao Brasil?

- bem – ele dá uma risada e se vira pra mim. – acho que nem deveria ter vindo. Eu vejo que o Bernardo está pouco à vontade comigo aqui.

- por que você acha isso?

- porque ele não consegue te dar toda a atenção desejada.

Acho que eu pisco rapidamente sem saber bem o que dizer. Ele está com ciúmes meus e de Bernardo. Poderia ser mais óbvio?

- eu acho que ele está conseguindo manter o equilíbrio, Fabrício. A gente não se via há bastante tempo, e somos melhores amigos, então eu acho justo que estejamos aproveitando pra matar a saudade.

- ah sim, claro! Eu entendo perfeitamente, Edu. Não me leve a mal, eu não quero ser aqueles namorados chatos que ficam em cima dos amigos do parceiro, achando que eles vão querer roubar ele de mim. Até mesmo porque eu me garanto o suficiente pra isso.

Sinto minhas bochechas quentes e meus punhos se fechando. Eu não quero ser desagradável, mas não vou deixar ele insinuar coisas sobre mim.

- eu não sei se você notou, Fabrício, mas eu também tenho um parceiro, aliás, um ótimo parceiro. Eu não preciso tentar roubar o Bernardo de você. Aliás, ele já é meu, muito meu. Meu melhor amigo, e só.

- só por que ele não quis, né? Preferiu ir embora e eu aposto que isso te deixou destruído. A famosa história do melhor amigo apaixonado que se separa quando um deles vai embora.

- muito pelo contrário. Eu incentivei ele a ir embora pra buscar a felicidade dele. Pena que ele tenha uma visão distorcida de felicidade. – falo isso claramente me referindo ao baixo nível de parceiro que Bernardo escolheu.

- ou talvez você tenha inveja que ele tenha escolhido alguém que não seja aleijado.

As palavras dele rasgam minha garganta, querendo ter forças pra voar dessa cadeira direto pra cima dele e fazer um belo estrago em sua cara, mas isso arruinaria a minha noite e a noite de todos.

- pode ter certeza que se tem algo que eu não sinto de você, é inveja. Mesmo te conhecendo há menos de um dia, tudo o que eu posso sentir de você é pena. Posso não andar, mas eu tenho certeza absoluta que eu sou muito melhor por dentro do que você. Tenho um bom coração, e pra mim isso é tudo. Tenho autoconfiança, estou quase casado, formado no que eu amo e rodeado de pessoas que eu gosto. Sabe, pode ter certeza que o fato de eu não andar não me incomoda nem um pouco. Além do mais, tenho um melhor amigo lindo, muito lindo – enfatizo essa parte só pra deixá-lo com mais ciúmes – e que eu tenho certeza que não vai ficar muito tempo com você, pois ele merece mais.

Falo isso e abro caminho sem deixar Fabrício nem ter q chance de responder. Não sei por quanto tempo mais eu consigo aguentar meu sangue fervendo nas minhas veias. Saio pela porta com o rosto quente, com os olhos úmidos mas não o suficiente pra chorar. Simplesmente não vale a pena.

Ao retornar para a mesa, eu tento ao máximo disfarçar e exibir um sorriso impecável, mas as palavras de Fabrício me doem muito. Não que elas sejam verdade, nem de longe. Mas ouvir aquilo me deixou realmente mal. Por sorte, estão todos prestando atenção no discurso de um aluno da outra turma, então só tive que contornar a situação por Felipe, que obviamente viu que eu não estava muito bem.

- só to com um mal estar, acho que é fome.

- você não comeu antes de vir, ne?

- não.

- eu acho que já serviram alguns petiscos na mesa do buffet, quer que eu pegue algo pra você?

- não, pode deixar que eu pego. – eu sorrio e afago sua mão. Eu não gosto de omitir coisas do Felipe, mas se eu lhe falasse o que houve no banheiro ele com certeza acabaria com a festa toda, dando uma surra em Fabrício, e não é isso que eu quero. Chamo Marina para ir comigo e ela também está me avaliando. Será que eu conseguiria escapar do olhar de raio x dela?

- o que você tem?

Não, claro que não conseguiria.

- como assim?

- você voltou estranho do banheiro.

- só to com um pouco de fome. Vou resolver isso agora.

- Uhum, você pensa que me engana? Eu vi o Fabrício indo pra lá. Ele te fez alguma coisa?

- não, por que ele faria?

- porque ele é um idiota cego de ciúmes.

- mas não, ele não fez nada. – digo desviando o olhar dela, pois seria demais mentir olhando olho no olho.

- Eduardo, você não consegue fazer isso.

Ela me analisa enquanto eu pesco alguns canapés e coloco em meu prato. É difícil lidar com a tenacidade de Marina.

- houve um desentendimento lá dentro, nada demais.

- eu sabia. O que ele te fez?

- Marina, não foi nada demais.

- Eduardo, se você não me falar eu pergunto pra ele, e pode ter certeza que se eu ter que perguntar pra ele, as coisas não vão ficar legais por aqui.

Eu olho pra ela e vejo que seu rosto está tomado pela raiva. Às vezes a superproteção de Marina é irritante. Eu sei me virar muito bem sozinho.

- ele só teve um ataque de ciúmes por causa do Bernardo. Eu entendo ele.

- e o que ele te falou?

- bobagens, Marina. Podemos deixar isso pra lá?

Ela suspira forte e me olha, visivelmente frustrada. Então ela balança a cabeça em desaprovação.

- to vendo que vou ter que perguntar pra ele.

Eu reviro os olhos, vendo que não tenho como me sair bem com Marina.

- ele insinuou que eu sou apaixonado pelo Bernardo e me chamou de aleij... – eu seguro a língua, mas é tarde demais.

- te chamou de que? – agora ela parece estar cuspindo fogo.

- de nada, Marina.

- de aleijado? Foi isso que ele falou?

Eu não respondo, apenas olho para o lado, fitando o vazio e tentando achar algum jeito de apaziguar as coisas.

- ele vai se arrepender de ter vindo pra cá.

Ela está quase saindo de volta pra mesa quando eu lhe seguro pelo braço.

- Marina, não. Essa é a nossa formatura. Não faz isso, por favor.

- ele acha que vai te ofender assim e ficar numa boa? Mas não vai mesmo. Quem ele pensa que é?

- o namorado do seu irmão. E se você fizer confusão aqui, o Bernardo vai ficar chateado.

Ela para por uns instantes enquanto se acalma aos poucos, suavizando a expressão facial.

- tudo bem. Deixa ele pra mim.

- Marina, não vale a pena estragar nossa noite por isso. Apenas relaxa, tá legal?

- Uhum. – ela faz uma entonação alegre, enquanto pega alguns salgadinhos sem nem olhar pra mim. Não, ela não vai relaxar. Eu não deveria ter abrindo minha boca.

De volta à mesa, Marina se senta e fuzila Fabrício com os olhos, que já estava de volta logo depois de nós sairmos pra pegar os petiscos.

- e então Bê, lá em Berlim tem muito homem bonito? – Marina joga seu veneno, enquanto meus olhos correm diretamente para Bernardo, que parece um pouco sem jeito, e para Fabrício, que espera ansioso pela resposta.

- por que essa pergunta, Mari? – ele responde embaraçoso.

- apenas curiosidade. Tem ou não?

- tem.

Fabrício se remexe na cadeira, desconfortável, e eu reprimo o riso.

- é, dizem que os alemães são muito bonitos mesmo, fortes, másculos... Você tem alguma raiz alemã, Fabrício? – ela está com as mãos entrelaçadas embaixo do queixo, mais debochada impossível.

- não. Sou brasileiro puro, o que eu acho melhor ainda.

- ah isso é verdade. O povo brasileiro é bastante caloroso, bem humorado. Você tá morando lá faz tempo? Por que esses aspectos eu não vejo muito em você. Você parece mais fechado, como os alemães.

O clima da mesa fica pesado igual aço, e eu agora espero que Marina saiba a hora de parar.

- acho que eu vou no banheiro. – Fabrício exibe um sorriso amarelo ao começar a se levantar.

- de novo? Você foi agora a pouco, cunhado!

- Marina, o que você tem? – Bernardo parece não entender nada.

Ela me olha e eu suplico pra ela parar com tudo isso com os olhos.

- nada, Bê. Só to um pouco indisposta.

Ficamos em silêncio por alguns minutos, ate que outra turma começa seu discurso, distraindo todos, ou pelo menos aliviando o clima tenso.

Depois de todos os discursos dos alunos, o buffet é finalmente servido. O incidente com Fabrício ainda atordoa minha mente, mas eu tento deixar pra lá. Essa é uma noite de comemorações e não de chateações. Depois de me servir, voltamos para a mesa e comemos, todos interagindo entre si. Bem, quase todo mundo. Fabrício está com a cara fechada e Bernardo parece aborrecido. Acho que ele já percebeu que há algo de errado. Aliás, todos perceberam. Um tempo depois o DJ começa a tocar uma música animada e alguns corajosos tomam a frente para a pista de dança.

- Edu, bora?

- ah Marina, agora?

- por que não? Vem Bê! – ela puxa Bernardo, que vai se levantando sorrindo e aliviado a expressão tensa de seu rosto. Eu puxo Felipe junto e Bárbara vem logo atrás.

Somos os 5 na pista, dançando cada um à sua maneira. Bernardo não tem muita coordenação pra dançar e acaba soando muito engraçado, fazendo a gente rir muito por conta disso. Bernardo chama Fabrício para se juntar a nós, e automaticamente eu e Marina torcemos o nariz por isso, discretamente, é claro. Apenas a gente entende nossos olhares. Quando ele chega, ela me olha tipo “o que esse cuzão tá fazendo aqui?” e então eu olho de volta tipo “não sei, só ele não tá vendo que tá avulso, esse ridículo.” Aí, a gente ri. Eu chego perto de Bernardo e convido ele pra dançar, e eu sei que no fundo eu faço isso só pra deixar Fabrício com mais ciúmes ainda. Ele dá as mãos pra mim e gira minha cadeira, sorrindo feito criança, e de repente é como se fosse nos velhos tempos. Fabrício parece estar profundamente irritado, fala algo no ouvido de Bernardo e volta para a mesa, fazendo companhia para minha mãe e os pais de Marina.

- o que houve? – pergunto no ouvido de Bernardo, por causa da música alta.

- ele disse que tava com os pés doendo, foi sentar um pouco.

- hum. – eu sei que isso é mentira, ele está é com doendo cotovelo por eu estar perto do namorado dele, mas isso pra mim pouco importa.

Agora estranhamente está tocando Holy Ground, e eu digo estranho pelo fato de não ser muito conhecida, mas ela é simplesmente perfeita pro momento. Acabo gostando um pouco mais do DJ por causa disso.

Nossa noite vai caminhando de uma forma nostálgica e alegre, colocando na pista de dança toda a felicidade de se estar em ótimas companhias em uma data tão especial.

- Patricia, cadê o cominho? – um dos cozinheiros grita do outro lado da cozinha.

- não tá na despensa?

- não.

- eu tinha colocado lá hoje de manhã.

- tá aqui, gente. – eu passo pela entrada da cozinha e pego o pote grande com o tempero, que estava no balcão perto das facas.

- nossa Edu, graças a Deus você chegou. Tá tudo uma loucura aqui. – Patricia parece atordoada, com a testa molhada de suor devido à alta temperatura.

- mas agora não são nem 10h da manha gente. O que aconteceu?

- o Ricardo faltou, a gente tá ferrado.

- faltou? Ele avisou o por quê?

- não. A gente tentou ligar mas o celular tá desligado.

- maravilha. – eu rosno, bufando. O que quer que tenha acontecido, poderia pelo menos avisar, nem que fosse agora de manhã mesmo. – tá tudo sob controle aqui?

- mais ou menos. – Alex se pronuncia, tirando as panelas do armário grande em aço escovado.

- tá. Vamos fazer assim. A Pati fica com as saladas, o Marlon com as carnes, a Betina fica com as sobremesas e eu e você ficamos com o restante, pode ser?

- por mim tá fechado.

- então vamo lá, galera! Vai dar tudo certo.

Tento esconder meu receio sobre Ricardo ter faltado. Ele é um dos melhores da equipe, sem dúvidas. Não poderíamos nos dar ao luxo de estar sem ele justo hoje, que a cidade está mais lotada devido à abertura da Bienal. Pelo local ser relativamente perto, o restaurante acabou se tornando referência aos turistas que vem apenas para a exposição. Já consigo prever o caos que o restaurante vai estar hoje.

Quando Pablo chega, é inevitável ele notar que estamos com um a menos. Seus olhos percorrem a cozinha toda e veem todos nós trabalhando duro, mas algo estava faltando. Algo não, alguém.

- onde tá o Ricardo?

Eu e Patricia nos entreolhamos por alguns instantes, antes de eu tomar a frente.

- ele faltou, Pablo.

- conseguiram falar com ele?

- não. Telefone tá desligado. – eu encolho os ombros.

- que maravilha! Além do Bruno estar de férias, o Ricardo resolve faltar. – ele passa a mão pelos cabelos, nervoso. – vocês acham que dão conta?

- mas é claro. – falo confiante, me sentindo até ofendido por ele duvidar da nossa capacidade. Mesmo estando capenga, nossa equipe ainda é muito boa.

- tudo bem então. Edu, vem cá. – ele gesticula com a mão, saindo da cozinha. Eu saio pela porta tirando meu chapéu, olhando pra ele, que me espera perto de uma das mesas.

- eu preciso que você coordene essa equipe como nunca hoje. Hoje é um dia de bastante movimento e estamos com duas pessoas a menos.

- Pablo, fica tranquilo. Eu já coordenei o que cada um vai fazer. Vai ser duro, mas a gente consegue. – tento lhe tranquilizar com um sorriso.

- eu sei que você não me decepciona. Vai lá garoto, comanda essa cozinha, é tua!

Eu aceno com a cabeça e não consigo conter meu sorriso. Entro de volta e coloco as mãos na massa.

Não são nem meio dia ainda e o movimento de clientes é surreal. Os pedidos não param de chegar.

- Edu! – Pablo entra na cozinha suando na testa. – você não vai acreditar quem está aqui.

- calma Pablo, quem? – falo limpando minhas mãos sujas de tempero em um pano.

- Paola Carosella.

- quando ele fala isso, meu coração para por um milésimo de segundos.

- Paola? Carosella?

- ela tá aqui, pediu um prato de sugestão do chef! Edu pelo amor de Deus, impressiona essa mulher!

Pablo sai atordoado da cozinha e me deixa com uma bomba nas mãos. Agora eu preciso impressionar ele, que é gerente desse restaurante, e ninguém menos que Paola Carosella. Sugestão do chef, de um chef que nem chef oficial é. O medo e a insegurança resolve me esbofetear, enquanto eu tenho que manter a calma de todos que estão eufóricos com a notícia. No pouco tempo que eu estou substituindo Bruno, não havia acontecido nada parecido. Mas é por isso que tenho que fazer melhor ainda do que eu costumo fazer. É o nome do restaurante que eu estou carregando nas costas.

“Calma Eduardo, pensa”

Bem, vamos lá. Pelo que eu sei dela, menos é mais. “É melhor pouco de algo muito bom, do que muito de algo mais ou menos.” É com essa frase dela que eu me baseio no que fazer. Decido como entrada algo leve e fresco. Pego alguns pães de forma e coloco para torrar, enquanto preparo um pate de atum, gergelim e tomate seco. A ideia de servir algo simples demais me assusta, mas eu prefiro seguir meus instintos. Para o prato principal, escolho lombo de cordeiro ao molho de mel e hortelã, acompanhado de uma salada de pimentão amarelo, o pouco que ainda tinha, manga, repolho roxo e alface, temperado com páprica, toque de limão e sal, claro.

A entrada é levada pra ela, e quando eu termino de fazer o tempero. Feito isso, coloco o lombo para assar e mesmo todos me falando que querem ajudar, decido fazer isso sozinho. Caso não dê certo, só haverá um a quem culpar, exclusivamente eu. Começo a planejar os pasteis assados de Romeu e Julieta como sobremesa enquanto o resto fica pronto. Preciso focar no tempo, não posso deixar ela esperar muito tempo. Mas ao mesmo tempo, não posso apressar demais e estragar tudo. Eu estou suando muito mais que o normal. Depois que está tudo pronto, decoro o prato principal e peço pra que levem pra ela também. Então me dedico totalmente para a sobremesa. Corto o queijo e a goiabada e coloco dentro da massa do pastel e então coloco tudo no forno. Só quando eu paro pra analisar o forno que eu sinto meu coração bater descompassado. Santo Cristo, eu preciso me acalmar. Tomo um copo de água gelada e volto para a frente do forno. Quando os pasteis estão dourados, eu tiro de lá e pego um para teste. Abro-o e vejo o queijo derretido se encontrando com a goiabada, e o cheiro me faz gritar de felicidade. Deu certo. Peço para levarem a sobremesa pra ela e tento não ficar pensando muito em sua reação. Volto minhas atenções para os outros pedidos e ajudo meus colegas, mas minha mente não consegue sossegar. Será que ela gostou? Será que eu acertei nos temperos? Ficou muito simples? Que droga, é muita pressão. Acabo cortando meu dedo com a faca, enquanto picava alguns tomates pra uma salada, o que me faz levar o dedo direto na boca e chupar para aliviar a dor. Sinto o gosto do sangue e vou direto para a pia lavar com água corrente. Se concentra, Edu!

Depois de colocar um antisséptico e um band-aid, volto ao trabalho. Meu dedo dói um pouco, mas eu não me importo.

Pablo entra novamente na cozinha, a cara tensa, o olhar indecifrável, e eu não sei o que fazer.

- o que foi? Ela não gostou? Ficou ruim? Aí droga. – eu já lamento por antecedência.

- Edu, ela quer conhecer o chef da cozinha. – Pablo parece tão sem reação quanto eu, que ao ouvir isso arregalo os olhos e fico sem saber o que dizer.

- ela... ela... o que?

- vem guri, não deixa ela esperando lá! – ele se aproxima alvoroçado e eu desperto do meu transe, pegando nas rodas e as levando em direção a porta. Quando eu saio, me espanto com o tanto de gente que tem aqui dentro. Ficando na cozinha a gente não consegue ter uma noção real do que se passa, e isso aqui tá lotado. Acompanho Pablo por entre as mesas, contornando as pessoas e pedindo licença para as pessoas, que moviam suas cadeiras mais pra frente pra eu passar. Eis que, na mesa ao lado da janela imensa que revela a avenida movimentada, está ela, Paola. Linda como sempre, me olhando com seu sorriso largo. Já posso surtar de felicidade e pular nos braços dela?

- Paola, esse é o Edu, nosso chef. – Pablo me apresenta orgulhoso, enquanto eu estendo a mão para cumprimenta-la.

- oi Paola, prazer. – minha voz sai um pouco trêmula, combinando com as minhas mãos. Caramba, isso é irreal.

- oi Edu! Prazer em te conhecer.

- o prazer é meu. Aí Jesus, eu to nervoso.

Minha confissão faz ela rir. Eu deveria ter dito isso? Lógico que não. Um chef de verdade não demonstra nervosismo. Merda.

- eu te chamei pra te parabenizar pelo prato. Foi tudo muito sutil, leve mas muito saboroso. Você tem um senso para temperos incrível. E as combinações foram tão excêntricas, tão ousadas, mas tudo combinou tão bem. você é corajoso.

- obrigado Paola, é uma honra enorme ouvir isso de você.

- faz tempo que você se dedica a gastronomia?

- faz, desde adolescente eu ajudava meus pais no restaurante deles. Me formei em gastronomia há algumas semanas.

- isso é ótimo. Você tem talento, garoto.

- obrigado, dona Paola. – eu tento manter minha voz firme, mas é em vão.

Me despeço dela é simplesmente não consigo cair na real. Eu acabei de falar com Paola Carosella, uma das chefs de cozinha mais renomada não só do Brasil, mas do mundo. Isso é insano.

- espera só o Cassiano saber disso, ele vai à loucura! – Pablo me acompanha pelo caminho até a cozinha, falando orgulhoso. Entro novamente na cozinha e todos explodem em perguntas, animados por saber que agora nosso restaurante está em um conceito elevado para a gastronomia nacional.

- você não acha que tá tudo muito branco e prata? – eu me olho na frente do espelho e me sinto um grande saco de farinha ambulante com esse terno claro de poliéster, a camisa branca de algodão e a gravata prata, tudo muito pálido, combinando com minha pele alva.

- você queria o que? Casar de preto?

- não bem isso, mas... sei lá.

- tá perfeito. É seu casamento, Eduardo. Você é o noivo. Noivos se vestem de branco.

- tá, eu sei. – falo ao olhar mais um pouco para o espelho. O terno me deixa realmente bem.

- como estão os preparativos? Tudo certo?

- tudo sim. Só falta fechar o buffet, mas os pais do Felipe conhecem uma empresa boa.

Me viro pra ela e percebo ela me olhando com o cotovelo apoiado na perna, a mão sob o queixo, o olhar sentimental.

- meu irmão mais novo se casando. Nem dá pra acreditar.

- pois é. O tempo voa. – eu estufo o peito, levantando as sobrancelhas. Realmente, o tempo têm voado ultimamente. E eu fico feliz por ela me chamar de “irmão mais novo”. Isso parece muito intenso.

- já escolheu seu vestido?

- ainda não. Semana que vem vou sair pra arranjar algo. Vai comigo?

- claro. – falo ao me aproximar dela e lhe estender a mão.

- sabe aquela mesma preocupação que você estava nas vésperas do seu casamento com a Barbara, aquele dia lá em casa?

- lembro. O que tem? – nossas mãos ainda estão juntas, balançando.

- parece que chegou a minha vez.

- tá com medo?

- não diria que é medo, mas é tão assustador a ideia de me casar cedo, mesmo que seja com o Felipe.

- mas vocês não combinaram de esperar até depois da formatura justamente pra isso? Pra estarem prontos?

- é, eu sei. Mas é que agora chegou a hora, sabe? Dá um frio na barriga. – eu dou de ombros.

- tá. Agora vou fazer a mesma coisa que você fez comigo aquela vez. Fecha os olhos.

Eu sorrio e faço o que ela fala.

- agora pensa como você acha que sua vida vai ser daqui a um ano. Nem precisamos ir tão longe dessa vez.

- tudo bem.

De olhos fechados, flashes de pensamentos de começam a se formar na minha mente. Memórias não vividas, como por exemplo eu sendo o chef da cozinha lá do restaurante, indo pra lá e pra cá cheio de tarefas; eu fazendo uma especialização em Paris, estudando em uma escola de gastronomia renomada; eu casado com Felipe, mais fortes e unidos do que nunca...

Abro os olhos e só então sinto a força desse teste, o mesmo que eu fiz com ela há alguns anos.

- espera aí, abriu os olhos por que? Ainda não acabou.

Eu franzo o cenho, curioso, mas volto a fechar os olhos.

- agora eu quero que você imagine a sua vida no passado, sem o Felipe.

“Ao sair da despensa, coloco meu avental e vou para fora da cozinha ajudar a atender o pequeno público que já estava lá. Já havia escurecido, e eu nem havia percebido. Enquanto pego minha bandeja, Carlos passa por mim bastante ocupado com sua bandeja cheia, e me pede gentilmente para atender o cliente na mesa 9. Ao chegar, me deparo com um homem de uns 30 anos, com uma mulher, a qual eu julgo ser sua esposa. Lhes desejo boa noite e alcanço o menu do restaurante, enquanto espero eles se decidirem o que pedir [...]”

O pensamento me embrulha o estômago. E se não fosse o Felipe que estivesse naquela mesa, aquele dia? E se não tivéssemos nos conhecido? Abro os olhos imediatamente um pouco atordoado. Uma pequena vontade de chorar emerge dentro de mim, mas eu espanto isso.

- e então? – Marina me fita curiosa.

- eu... não foi muito legal imaginar isso. – eu abaixo a cabeça, ainda um pouco abalado.

- se o seu amor pelo Felipe é maior que seus medos, você não tem pelo que temer. Vai firme, meu amigo.

Eu olho pra ela novamente e sorrio. Eu nunca tive dúvida em relação a isso. Só a angústia pre-casamento que me pegou de guarda baixa. A verdade é que se eu não tivesse descoberto o amor com Felipe, não seria certo. Desde quando eu o vi, é como se meu coração soubesse desde o início o que a gente se tornaria um para o outro. É essa a maior prova que eu tenho de que apesar de todos os pesares, me casar com Felipe é a coisa mais certa que eu farei, é o passo mais firme na minha vida que eu vou dar, pra mim isso já é tudo.

Comentários

Há 3 comentários.

Por diegocampos em 2015-12-25 16:07:17
Capitulo muito bom foi ótimo ver a formatura do edu, esse Fabricio e um isssuportavel achei ótimo o que a marina fez com ele, espero que o bernado consiga coisa melhor. Muito ansioso para o próximo espero que de tudo certo no casamento
Por BielRock em 2015-12-16 16:54:03
Mas gente como eu amei esse capítulo e já odiei o Fabrício. Amei o veneno da Marina, foi tão eu *-* tive saudades do Fê hoje, ele nem apareceu muito, mas foi ótimo mesmo assim. Amei a formatura e amei amei oque a Marina fez para o Edu não ficar com medo do casamento. Em falar no casamento, eu super hiper mega ultra ansioso. Beijos e até.
Por Niss em 2015-12-16 00:34:18
Gente!! Como eu adoro a Marina!! Hahaha de verdade ela é linda! Tem o jeito proprio, eu adoro o jeito dela de proteger, de se preocupar, de fazer piadas, de defender o Edu! Ela é simplesmente a minha preferida, eu espero ter uma Marina na minha vida. Affs e esse Fabrício, me poupe... Ainda teve coragem de dizer aquelas merdas pro Edu, e ainda bem que este rebateu a altura. Hahaha arrasou com a cara do Fabrinsuportável. Foi um misto de emoção com aflição e ansiedade... Claro e a parte da Marina que foi bem engraçada hahaha. O Edu já vai casaaaaaaar!!! Hahaha me deu um frio na barriga nessa parte do final por causa daquela "indecisão" mas ainda bem que a Marilinda salvou tudo hahaha. Eles são todos uns lindos, menos o Fabrinsuportável, espero que o Be encontre alguém melhor pq ele merece. Foi maravilhoso esse capitulo. Espero pelo proximo. Kisses, Mana Nissan.