01. Prazer, João
Parte da série Beira-mar
- vamos Rafael! Vamos acabar perdendo o show de fogos!
- calma, to quase pronto! – digo tentando me equilibrar ao vestir a calça de linho branca com uma certa dificuldade. Vou correndo ao espelho e checo o resto. Só falta o cabelo e estou pronto. Olho sobre meu ombro para o resto do meu quarto e só então percebi o quão bagunçado ele está. Espero que entrar o ano novo com metade das minhas roupas emboladas em cima da cama não me tragam má sorte. Mais uma batida de Thayla na porta e eu protesto.
- calma, caramba!
Dou uma última olhada no espelho e me junto a senhorita impaciente que estava absurdamente linda, mais do que o normal, usando um vestido de renda branco e o cabelo solto.
- tenho pena de quem casar com você. – Thayla resmunga enquanto passa pela minha frente em direção à porta. – você consegue demorar mais do que eu pra se arrumar, Rafa. Isso não é normal.
- se isso acontecer um dia, o que eu duvido muito. E eu não gosto de me arrumar correndo, você sabe disso.
- claro que eu sei. Agora vem, vamos. Já é quase onze e meia.
Pegamos o carro e saímos para a noite clara e estrelada de Florianópolis, a última do ano. O trânsito está caótico, com filas e mais filas de carros na avenida, que se estende até o outro lado da ponte Hercílio Luz. Muitas pessoas atrasadas assim como nós querendo chegar a tempo na beira da praia para não perder o show pirotécnico, mas que não conseguem perder a emoção de chegar em cima da hora. Olho para o lado e Thayla está com a cara emburrada, mexendo no celular.
- o que foi?
- vamos ter que olhar os fogos de dentro do carro.
- deixa de ser pessimista, a fila já tá andando.
- no outro ano você vai começar a se arrumar de tarde, aí não acontece essas coisas.
Eu imito ela falando, fazendo careta, e então consigo arrancar um sorriso dela. Decido ligar o rádio do carro e está tocando Hands to Myself, da Selena. O toque suave e a voz com os “ahs” no fundo fazem eu cantarolar baixinho enquanto a fila anda devagar.
Conseguimos chegar depois de 10 minutos no nosso destino. Após ficarmos dando voltas e voltas para achar uma vaga, corremos em direção à multidão. Faltando pouco mais de dez minutos para a meia noite finalmente estamos com o restante das pessoas na areia, onde muitos estão com taças de champanhe e tirando muitas fotos. Thayla roda em seu vestido e agora descalça, assim como eu.
- olha que lindo! – ela olha pra cima e meu olhar a acompanha, enxergando vários fogos enchendo o céu de cor.
- é lindo mesmo!
Ela então olha para o lado e encara fixamente um outro homem que estava molhando os pés na beira da água.
- olha, que lindo...
- Thayla...
- acho que encontrei minha primeira paixão do ano. – ela fala sorrindo enquanto seus olhos não saem dele. Eu olho discretamente então vejo que ele também está olhando para ela, o que me faz rir. Percebo também que do lado dele há outro cara, que também olhava pra Thayla.
- acho que você vai causar uma inimizade neles, Thay.
- por que?
- porque eles estão olhando pra você, os dois.
- e eu não vi? Mas pela cara de safados dos dois eles curtem um menage. – ela fala com um sorriso safado nos lábios, encarando-os.
- seria uma experiência e tanto, né?
- ou talvez menage não seria legal o suficiente. Três e pouco. O que você acha de quatro?
- quatro, tipo eu?
- Uhum.
- vai sonhando, fofona.
- seria uma experiência única, tenho certeza que você ia gostar. E eles também. O loirinho não para de olhar pra você também. Acho que ele olha mais pra você do que pra mim.
Volto a olhar pra eles e confirmo o que Thayla diz. O loiro de regata branca com braços fortes me olha firme, com um sorriso bastante convidativo, então eu sorrio de volta.
- viu?
- vi, mas acho que não vai rolar.
- por que?
- ah Thayla, não sei. Não vim pra cá pra isso.
- que foi rafa? Tá se guardando pro seu professor gostoso?
- ah claro, com certeza.
- porque se estiver, pode ter certeza que agora ele deve estar passando a virada com outro cara. Ele só quer você pra sexo, Rafa, nada mais.
- eu sei Thayla, eu também quero a mesma coisa, então estamos quites. Não sou desses que se apaixona pelo professor. Pelo professor ou por qualquer outro cara. Se apaixonar é algo que só existe pra criar sofrimento depois.
- lá vem você com a bandeira do desapego outra vez... – ela diz revirando os olhos. – por isso mesmo, você não vai se apaixonar pelo loirinho gostoso do olho azul, só vai transar com ele, e no máximo virar amigo, pra começar. Depois, quem sabe?
- mesmo assim Thayla, sossega o facho. Depois você faz os esquemas.
Ela sacode a cabeça em desaprovação e mexe no cabelo, suspirando fundo. Então eu encaro ela reprimindo um riso e ela me olha brava. Vejo que mais tarde vou acabar cedendo e seguindo o conselho de Thayla. Não que eu vá ir pra cama com o cara ou algo assim, mas vou dar um oi. Estou nesse jogo de gato e rato com o Roger há tempo demais, e mesmo que todas as vezes que a gente se encontre role algo muito bom, não é mais algo que eu veja sentido. Mesmo não tendo nada com ele, eu meio que me privo de ficar com outros caras, enquanto ele sai com vários por aí. Acho que a virada do ano vai ser um bom motivo para eu fazer grandes mudanças na minha vida. É como aquela frase velha e clichê diz: ano novo, vida nova.
As pessoas começam a ficar eufóricas e os fogos aumentam gradativamente, então olho para o relógio e vejo que falta menos de um minuto para a meia noite. Eu começo a abrir a nossa champanhe e a tampa salta pra longe, enquanto Thayla me alcança as taças que estavam com ela e um pouco da bebida escorre por causa da pressão. Uma pequena multidão se reúne à beira mar enquanto a contagem regressiva começa.
- 5! 4! 3! 2! 1! Feliz ano novo!
Me viro para Thayla e logo lhe dou um abraço apertado, com o barulho das pessoas festejando em volta. Estamos mantendo a tradição de mais uma virada de ano juntos, apenas nos dois. Ela é a melhor amiga que alguém poderia ter, sem mentiras. E eu francamente prefiro passar datas assim com ela do que em casa com minha mãe e com meu irmão, que sempre fazem ou falam algo que eu não concordo e acaba virando em briga. Isso quando minha mãe está em casa, já que ela vive viajando pelo país todo a trabalho, então não é como se nos víssemos muitos dias na semana. Meu irmão se importa mais com academia e com mulheres do que com qualquer outra coisa na vida, até mesmo com o fato de ser o sucessor natural dos negócios da família, já que ele cursa administração e entende muito mais sobre isso do que eu, é óbvio. Então, todas as datas comemorativas que ficávamos os três em casa, o assunto deles era a empresa, o lucro, o dinheiro. E quando se trata de mim, eu sou visto como o rebelde humanitário da família, ou o famoso ovelha negra, já que eu não me importo nem um pouco com dinheiro ou status ou poder. Por isso que há mais ou menos três anos que eu passo apenas com Thayla, não só o réveillon mas todos os outros dias comemorativos, e sempre acabamos aqui, na beira da praia, com os dedos fincados na areia e felizes pela companhia um do outro. Olho para o lado e vejo a ponte Hercílio Luz acesa com uma cascata de faíscas que pendiam dela em direção ao mar, dando um show espetacular de beleza para a noite que já estava linda, com o show pirotécnico ainda fazendo bonito no céu, enchendo nossos olhos enquanto em minha mente eu automaticamente faço planos e promessas de mudanças para o novo ano.
- tá, agora passou da meia noite. Temos duas opções: ficar aqui na orla assistindo os shows e no meio do povo, oooou – nessa hora ela dá uma pausa e me olha com a cara de femme fatale que só ela sabe fazer – nos divertir de verdade logo nos primeiros minutos do ano.
Ela olha para o lado, segura de que ainda encontraria nossos possíveis parceiros para a noite na beira da água, mas não aconteceu. Francamente, sua
cara de decepção não poderia ter sido mais engraçada.
- os príncipes fugiram, Thay.
- ah, foda-se.
- algum plano B?
Ela para pra pensar, olhando para o nada em busca de uma salvação para nossa noite. Mas como estamos falando de Thayla Bastos e de uma cidade como Florianópolis num dia de hoje, a resposta não demora para chegar.
- tem uma festa do pessoal da minha sala ali em Jurerê. Bora?
- bora.
Vamos em direção ao carro animados com a ideia de passar o resto do réveillon em uma festa em Jurerê Internacional. As festas lá nunca decepcionam, e quando eu digo nunca, é nunca mesmo.
Após alguns minutos de carro, já começamos a enxergar todo o luxo típico do lugar, com Ferraris, Porsches e Lamborghinis estacionadas na frente das casas monumentais e cheias de gente festejando. O cheiro de dinheiro ali emanava pelo ares, tanto quanto o cheiro de arrogância e prepotência. Tipicamente não seria um lugar onde eu estaria em outros dias, mas é uma festa de fim de ano dos amigos de Thayla, não teria por que recusar.
Ela me guia até chegarmos em uma casa de dois andares toda em madeira envernizada e grandes janelas de vidro, com um amplo gramado separando a calçada da residência, sem muro ou cerca de proteção. A música eletrônica vinda do fundo da casa já fazia eu começar a me animar, enquanto Thayla caminha na minha frente em direção a lateral da casa, segurando minha mão e nos levando até a área da piscina, onde eu acho que há facilmente quase cem pessoas dançando, bebendo e em volta da água.
- bem vindo à verdadeira diversão da noite, meu amigo. – ela fala antes de soltar uma risada ao olhar para aquela multidão de jovens bonitos, provavelmente bastante ricos e que, assim como nos, querem se divertir muito hoje.
A primeira coisa que fazemos é ir até os amigos de Thayla. A dona da casa é uma menina com mais ou menos 1,65 de altura, com cabelos loiros e extremamente lisos, pendendo sobre a pele bronzeada de seus ombros.
- Renata! E aí. – ela chega e da um abraço na garota, seguido de dois beijos nas bochechas. – festa bombando, né?
- sim! Tem tanta gente aqui que eu não sei como coube. Mas é como aquele ditado, onde cabe um, cabe dois. – ela fala sorrindo, os olhos azuis me encarando. – e quem é o teu amigo?
- ah sim, esse é o Rafael. Lembra que eu sempre te falo?
- ah sim. Prazer Rafael. – ela estende a mão pra mim. – pena que você torce pro mesmo time que o meu. Se não eu já te pegava pra mim. Você é lindo. – sua franqueza excessiva me deixa um pouco desconcertado. Será que ela é assim mesmo ou a bebida está ajudando um pouco? – mas já que é assim, tem um monte de amigos meus aqui que adorariam te conhecer.
- valeu renata, pode deixar que eu me viro por aqui. – digo tentando ao máximo ser simpático, mas no fundo estou com meu ego ferido. Estou com tanta cara de solteiro e abandonado assim? Ou será que a língua de Thayla é grande demais? Caramba, não são nem 1:30 da manhã e já são tantas perguntas.
- bom, tem bebida lá dentro e a mesa ali no lado tem uns petiscos. A festa é de vocês.
Renata sai com seus cabelos esvoaçantes em direção a outro grupo de pessoas que pelo que eu vi, também acabaram de chegar. Sem duvida ela é uma anfitriã e tanto.
- o que foi aquilo?
- ah, a renata é assim mesmo. Dá em cima até de animais, se bobear.
- hum.
- bora pegar alguma coisa pra beber? To com sede.
Sigo ela até a porta da cozinha e deixo que ela faça a frente pra pegar os copos descartáveis e encher com Askov de blueberry e Fanta uva. Essa combinação me parece mortalmente tentadora, porque assim que eu dou o primeiro gole, vejo que já me viciou totalmente.
De volta para o quintal, começamos a nos infiltrar na festa de fato.
Estamos os dois na beira da piscina comentando sobre o beijo triplo que Renata acabara de dar em outras duas garotas dentro da água quando eu olho para o lado e por um segundo penso que a bebida está afetando minha visão. Pisco algumas vezes e olho de novo, mas lá estão eles.
- Thayla. – falo ao interromper seu monólogo sobre como se dar um beijo triplo e como se pode estender a um menage perfeito segundo seus conceitos de pessoa experiente no assunto.
- que foi?
- olha quem chegou.
Ela acompanha meus olhos e mal pode acreditar no que vê.
- nossos gatos fujões. – sua voz são sexy enquanto ela passa o dedo indicador na borda do copo. – Rafa, você acredita em segundas chances?
- não necessariamente.
- pois eu também não acreditava. Não até nesse momento. Os caras estavam lá na beira da praia, do nosso lado e a gente bobeou. Agora eles estão aqui, no nosso campo de visão novamente. Não seria coincidência demais?
- é, com certeza é bastante sugestivo.
- então bora fisgar nossos peixes.
Ela mal termina de falar e já sai caminhando em direção a eles, enquanto eu caminho um pouco mais lento, tentando decidir se isso é realmente uma boa ideia. Mas como Thayla é tenaz o suficiente para decidir por nós dois, lá estava eu na frente do loirinho forte e com sorriso safado, tentando me apresentar.
- e aí, chegou agora?
- sim, acabamos de chegar! Festa animada, né? – ele chega bem perto do meu ouvido, mais perto do que o necessário, já que a música não estava tão alta assim.
- com certeza! Você conhece alguém daqui?
- eu moro aqui. Sou irmão da dona da festa.
- ah sim. – não poderia ser mais óbvio. Loiro, olhos azuis, mesma genética boa...
- eu vi você lá na praia. Coincidência a gente se encontrar aqui de novo, né?
- muita. – dessa vez sou eu quem chega perto do ouvido dele e ensaio minha melhor voz rouca e sexy, tendo como inspiração minha melhor amiga que já está bastante entrosada com o outro carinha. – qual o seu nome?
- Diogo. – ele fala depois de um sorriso de canto. – o seu?
- Rafael.
O papo começa a fluir muito bem, até que nos quatro vamos até o quiosque perto das caixas de som, onde um garoto controlava tudo através de um MacBook. A área é bem arejada e próxima da enorme piscina, e por incrível que pareça não estava cheia de gente. Pegamos os dois sofás de palha com almofadas florais e colocamos um de frente para o outro, então cada casal ficou sentando de modo que todos interagissem entre si. Menos de cinco minutos depois Thayla e o outro cara, que depois eu descobri que o nome era Tales, já estava se beijando. Se não fosse tão rápido, não seria o jeito de Thayla de comandar as coisas. E enquanto isso, eu e Diogo continuávamos conversando e bebendo, ainda tímidos para tentar qualquer coisa, mas acima de tudo curtindo muito o papo entre nós. Agora estamos apenas eu e o casal fogoso na minha frente, que parecem ter esquecido que estão em público e estão deixando as coisas bem embaraçosas por aqui. Diogo está lá dentro pegando mais bebida pra nós dois, então eu estou sendo a famosa vela, mas nesse caso eles nem sem importam com isso. De repente vejo os dois levantarem e Thayla faz sinal de que está indo pra dentro da casa com Tales, a cara dela faz parecer que ela realmente ganhou a noite.
Diogo aparece com uma garrafa de Jack Daniels Honey em uma mão e uma de energético na outra. Ele então vai até a bancada do quiosque e pega dois copos limpos de vidro na pia e começa a servir a bebida.
- você gosta?
- hum, não sei ao certo. Nunca tomei.
- tá brincando? – ele me olha surpreso. – esse é simplesmente o melhor de todos. – como e a primeira vez, você precisa experimentar ele puro.
Ele serve o meu copo com apenas o whisky, enquanto no copo dele ele completa com energético e traz o meu copo pra mim. Isso me parece sofisticado até demais, o que me causa estranheza, pois ele não me parece ser do tipo que gosta de coisas tão refinadas assim. Ele tem mais cara de cerveja e vodka, por exemplo. Tomo meu primeiro gole e o gosto forte e doce da bebida causam uma sensação exótica em mim. Minha garganta arde, mas é uma sensação boa. Minhas pupilas se agradam com o gosto intenso da bebida e eu acho que acabo de achar uma nova bebida preferida, quase perdendo pra Askov de blueberry e Fanta uva, que estavam sendo minhas companheiras a noite toda.
- e aí, gostou?
- bastante. Você tem bom gosto pra bebida.
- obrigado. – ele diz depois de tomar um longo gole. – mas sabe de uma coisa bem interessante sobre o Jack Daniels de mel?
- o que?
- o beijo com gosto dele é muito bom.
Uau, isso sim é tomar uma atitude. Ele me pega de surpresa, já que estávamos indo devagar, quase parando.
- agora eu acho que fiquei curioso pra saber como é.
Ele então larga seu copo no chão e prova ter uma pegada e tanto ao me beijar com vontade. Uma coisa é inegável; o gosto de um beijo com Jack Daniels de mel é de fato muito bom. Outra coisa inegável é que ele beija muito bem. Apenas com o toque de nossos lábios e com sua língua pedindo passagem na minha boca, já me deu uma incrível vontade de sentir ele um pouco melhor por inteiro. Então, como se ele adivinhasse meus pensamentos, ele se levanta e me pede a mão, então quando eu vejo estamos andando pelo gramado do quintal pelas pessoas em direção à casa. Do lado de dentro, passamos pela cozinha e chegamos até a escada que fica na sala, essa por sua vez que é incrivelmente grande, clara e aberta por causa das janelas. Ele me guia pelo corredor até chegarmos onde eu acredito ser seu quarto. É bem arrumado, cheiroso e com uma cama box bem espaçosa. Sem muitos rodeios, ele me joga na cama e começa a tirar a regata, revelando um corpo bem trabalhado e bronzeado, enquanto seus olhos me avaliam e me desejam tanto quanto eu o desejo agora. Suas mãos agora descem até o botão da bermuda, livrando-se dela rapidamente e revelando sua cueca bóxer branca com um volume bem satisfatório que faz minha boca salivar na hora. Diogo está apenas usando um pedaço de pano escondendo seu membro e eu quero tanto que ele tire aquilo e me deixe ver como ele é inteiramente nu, mas ele vem até mim e me beija ainda mais intensamente, fazendo eu automaticamente tirar minha camiseta e ansiar para tirar minha calça, mas na hora que eu pego nela ele me deita na cama e deita em cima de mim, roçando seu pênis em mim, enquanto eu passo minha mão por suas costas. Nessa hora eu agradeço a Thayla por ser tão insistente e fazer eu ir falar com esse homem perfeito que nesse momento está beijado meu pescoço e me causando arrepios de prazer. Porém, de uma hora pra outra ele para de me beijar e sua expressão muda.
- o que foi?
- acho que eu não to bem.
- como assim?
- eu vou vom... – é antes de terminar a frase, ele abre a boca e despeja todo o Jack Daniels e mais outras bebidas em mim, causando um cheiro horrível e me fazendo ficar com raiva instantaneamente. Faço uma pequena anotação na minha mente, de que Diogo é aqueles caras que bebem demais e acabam vomitando na hora do sexo, mesmo que eu ache que esse percentual não seja muito alto. Seria uma situação muito engraçada, se não fosse nojenta. Eu me desvencilho dele e me ponho de pé, pegando minha camiseta em cima da cama e saindo enquanto ele tenta se desculpar.
- onde tem um banheiro?
- na próxima à direita. – ele fala visivelmente envergonhado. Assim que eu saio do quarto eu penso no quão bem ele consegue disfarçar seu nível de embriaguez, já que ele não parecia estar tão mal há alguns minutos, enquanto estávamos lá embaixo. Tiro minha calça e minha cueca e entro debaixo do chuveiro para me limpar, passando uma quantidade até excessiva de sabonete líquido em meu peito e ombro, tirando o fedor de bebida vomitada de mim e pensando que seria tao bom se ele pudesse ter segurado a onda é não ter cortado o clima justo na melhor parte. De repente imagino eu contando essa cena para Thayla depois. Ela vai rir da minha cara até o réveillon do ano que vem, sem dúvida nenhuma. Depois de limpo, me seco com uma toalha limpa de dentro do armário da pia e visto minha roupa novamente, saindo do banheiro e torcendo sinceramente para Diogo não vir atrás de mim com uma sessão interminável de desculpas. Agora eu estou descendo as escadas indo para a cozinha reabastecer meu copo e tentar esquecer o episódio vergonhoso de antes quando meu celular toca dentro do bolso da minha calça. Saco-o e olho no visor e o nome de Roger aparece para me desnortear. De todas as pessoas no mundo para me ligarem agora, Roger é uma das últimas que eu deduziria fazer isso. Como não tenho nada a perder, decido atender e ver o que ele poderia querer comigo agora, mesmo que no fundo eu saiba o que é, e que eu também quero.
- Roger?
- e aí Rafa. Tudo bom? – sua voz sexy e tentadora fazem eu sentir um calor emanar em mim na mesma hora. O filho da mae sabe o efeito que ele tem em mim.
- tudo, e com você?
- tudo ótimo, melhor agora. Te liguei pra te desejar um feliz ano novo.
- bom, obrigado, pra você também.
- queria dizer também que eu to louco pra te ver e matar a saudade.
Meu estômago se contrai quando ele fala isso, fazendo eu quase soltar um riso involuntário na hora. Ele está jogando comigo. E hoje eu também posso ser um ótimo jogador.
- saudade?
- é. Você não?
- não sei. Não parei muito pra pensar. Mas pra ser franco, eu to numa festa bem chata, sem nada pra fazer e nesse exato momento minha cueca tá ficando bastante apertada dentro da minha calça, só de ouvir a tua voz.
- hum, isso é bom. Tem algum jeito de eu resolver isso?
- sempre tem, você sabe.
- me passa o endereço dai por mensagem que daqui a pouco eu chego e a gente vê o que faz.
Desligo o telefone com meu coração palpitando forte dentro do meu peito. Mando um SMS com o endereço pra ele e vou até a geladeira pegar mais bebida, tentando acalmar meus nervos. Roger é um filho da mãe que consegue me deixar desconcertado só de dizer um oi. De repente eu fico ansioso por vê-lo, de sentir o que eu sinto toda vez que ele está perto de mim. Volto pra festa e agora o eletrônico deu lugar ao pop, com muito mais gente na piscina jogando vôlei, alguns outros se beijando na borda e outros no gramado dançando. Atravesso o quintal e volto para o meu lugar de antes, onde agora está absolutamente vazio. Cerca de meia hora depois Roger aparece caminhando lentamente em minha direção, vestindo uma camisa branca, uma bermuda cinza e um par de chinelos cafe. Seu sorriso safado ao me ver é algo que já faz minha noite começar a valer a pena.
- chegou rápido.
- vim o mais rápido que eu pude. – ele me puxa para um abraço, fazendo eu sentir seu perfume cítrico em seu pescoço. – eu não poderia demorar pra te ajudar naquela situação, lembra?
- claro que lembro.
Eu olho para ele como um leão olha para sua presa, deixando claro que dessa vez eu estou decidido a não enrolar demais.
Coloco ele pra caminhar em minha frente, enquanto eu o guio com minhas maos em seus ombros até dentro da casa. Já dentro da cozinha, sem ninguém por perto, ele se vira e me prende na parede, roçando sua bermuda em minha calça e deixando seu rosto bem perto do meu, seu hálito fresco deixando minha respiração fora de ritmo.
- você tá uma delicia hoje, Rafael.
- só hoje? – eu ergo uma sobrancelha, me fingindo de desentendido.
- você sabe que não. Você é uma delicia todos os dias. Mas hoje tá fora do comum.
- mesmo? – mordo meu lábio inferior, olhando pra ele com os olhos ardendo em brasa, então ele me beija com força, me prendendo ainda mais na parede. Minhas mãos vão até seu cabelo e brincam com ele, depois uma delas desce até as costas e entra por debaixo da camisa e alisa suas costas, sentindo sua pele quente e seus músculos se mexendo com o movimento de nossos corpos, sem parar de beijar um segundo sequer.
Começo a puxar ele pelo corredor até encontrar uma porta qualquer que possa nos dar privacidade para fazer o que queremos fazer.
Assim que entramos na sala e eu ligo a luz, posso ver de relance que é um home office, mas é difícil prestar atenção quando eu estou com Roger fazendo eu perder o juízo da melhor maneira possível, me prendendo forte em seus braços e me deixando sem fôlego. Quando eu finalmente consigo me desvencilhar dele é quando ele me deixa encostado na beirada de uma mesa de bilhar, enquanto caminha até a janela e fecha a cortina persiana, deixando-nos realmente a sós e livres de olhares indesejados do lado de fora, onde a festa ainda rola animada com a música abafada pelas paredes grossas.
Seus olhos atravessam o cômodo como se fossem um par de flechas me acertando em cheio, impregnadas com desejo e calor.
- sabe Rafael – ele fala ao começar a desabotoar sua camisa lentamente, me deixando em uma situação bastante complicada – eu quis te foder a semana inteira. Eu poderia te foder todos os dias se pudesse. Acho que, por ser nossa primeira transa do ano, precisa ser inesquecível, não acha?
- acho que você fala demais.
Agora ele está com a camisa aberta, mostrando seu corpo largo e musculoso, a fina linha de pelos que começam abaixo do umbigo e descem para a calça, sumindo pra dentro e me deixando ainda mais instigado. Ele se livra do que faltava da camisa e a joga no chão, então em poucos passos ele está na minha frente, me pressionando contra a mesa, a sua ereção rígida me apertando através de sua bermuda. Nossas bocas se encontram e é como se soltassem faíscas para todas as direções. Em um movimento rápido e certeiro ele me levanta e me põe sentado na beira da mesa, dando um passo à frente e me segurando firme contra seu corpo enquanto eu tiro minha camiseta quase que desesperadamente. Agora sua cabeça está na altura do meu tórax, onde ele se dedica a chupar meus mamilos e brincar com sua língua pela minha pele. Quando ele me libera, eu vejo que ele me deixou marcas por toda a parte por causa de seus chupões. Mas sinceramente, eu não me importo.
Agora é a vez de me livrar de minha calça, que já estava a ponto de rasgar por causa da minha ereção que só conseguia ficar mais dura a cada segundo que passava. Vejo a ponta da minha cueca molhada de lubrificação, e quando Roger também percebe ele solta um sorriso sexy para mim. Suas mãos encostam em meu tórax e me empurram pra trás, então eu entendo que é para eu me deitar e deixar que ele cuide do resto. Assim que eu me encosto na superfície aveludada da mesa, sinto ele puxar minha cueca pra baixo, liberando meu pênis pra fora e fazendo-o bater na minha barriga. Eu contraio um riso enquanto escuto o barulho da cueca sendo jogada mais adiante e então em poucos segundos sinto a mão firme e macia de Roger segurar meu membro, me causando um calafrio repentino. Mas é quando ele chega com sua boca quente e úmida e começa a me engolir que eu começo a sentir o ápice do prazer. Ele sabe dar prazer em um sexo oral como ninguém na face da terra. Sua língua brinca com a minha cabeça, subindo e descendo pelo meu membro, chegando até os testículos e se dedicando um bom tempo neles. De repente ele me pega de surpresa e me põe sentado novamente, em seguida me pondo em seus braços e me levando até o sofá de couro branco, onde ele me deita e começa a me proporcionar um show de perder a cabeça. Suas mãos vão até os botões e o zíper da bermuda, livrando-se dela e deixando-a caída em seus pés, revelando uma cueca bóxer vermelha que marcam bem suas coxas grossas e peludas, com seu pênis bem marcado pelo tecido, pendendo para o lado esquerdo. Ele pega em seu membro por cima da cueca e me faz morder o lábio de desejo, enquanto ele solta outro sorriso safado. À medida que ele desce a roupa íntima, vai começando a deixar a mostra parte de seus pelos pubianos um pouco aparados, mas mesmo assim bem presentes. Quando sua cueca desce por suas pernas abaixo, seu pênis pula e fica pra cima, um grande e grosso pedaço de carne rosada e dura feito pedra.
- você quer?
- por favor...
- não ouvi direito.
- por favor. – eu falo mais alto, o desespero em minha voz cada vez mais óbvio.
- por favor o que?
- me fode Roger.
Tudo nesse filho da mãe me deixa fora do sério. Desde o menor fio de seu cabelo curto e castanho bagunçado até os pés brancos e grandes. Agora totalmente nu, assim como eu, consigo vê-lo bem melhor, e posso dizer que a vista é espetacular. Ele entao junta sua bermuda do chão e pega sua carteira, abre-a e retira um envelope de preservativo. O barulho do envelope se abrindo é a melhor música para os meus ouvidos essa noite. Enquanto ele desenrola a camisinha em seu pênis, eu tento acalmar minha ansiedade, largado no sofá com o cotovelo apoiado e com a mão sustentando a cabeça. Ele então vem em minha direção e quando eu estou prestes a me ajeitar, ele me levanta novamente.
- hoje eu quero no chão.
Antes que eu pudesse falar algo ele me põe deitado no tapete macio do cômodo e se põe a me beijar novamente, dessa vez mais intenso, rápido e fogoso do que antes. Minhas mãos tentam chegar até suas costas, mas ele não deixa, colocando-as pra cima e segurando-as firme, deixando bem claro que ele está no comando absoluto agora. Sua língua começa a brincar em meu pescoço, me dando beijos molhados e descendo pelo tórax, chegando na barriga e estacionando em meu pênis. A essa altura eu já estou entorpecido de tesão, quase implorando pra ele penetrar logo, mas quase como se ele pudesse sentir minhas vontades no ar, ele abre minhas pernas e se posiciona, brincando com sua cabeça em minha porta. A primeira tentativa não dá certo, mas aos poucos eu sinto ele começando a entrar em mim. Eu estou com tanto tesao agora que eu não sinto muita dor, mas mesmo assim peço pra ele esperar um pouco parado dentro de mim. Quando eu sinto que me acostumei, dou sinal pra que ele comece. Então o vai e vem começa a deixar tudo mais intenso, nossos corpos quentes se esfregando um no outro, pele com pele, respirações fora de compasso, palavras excitantes dele no meu ouvido. Suas mãos ainda estão prendendo as minhas acima da minha cabeça enquanto ele aumenta a velocidade das estocadas, fazendo com que eu solte alguns gemidos baixos e eu veja o rosto de Roger ficar com a expressão dura de prazer, ele com os olhos fechados e a cabeça começando a pender pra trás, enquanto o barulho das estocadas se confunde com nossas respirações ofegantes. Ele deita seu corpo sobre o meu e volta a me beijar, entrando e saindo de mim, me enchendo e depois me deixando vazio, me levando ao céu várias vezes por minuto.
Ele se põe bem próximo de mim, rosto a rosto a menos de cinco centímetros de distância, seus olhos me queimando enquanto ele se afunda dentro de mim. Isso é demais pra mim, ver Roger me torturar desse jeito, com esse olhar desconcertante enquanto me fode. Eu me inclino pra frente e consigo fisgar sua boca, então ele solta minhas mãos e eu consigo tocar seus braços fortes, deslizando minha boca até seu queixo e dando pequenas mordiscadas. Sua barba por fazer raspa entre meus dentes enquanto ele solta um gemido baixo de prazer enquanto se afunda ainda mais dentro de mim. Quase como se fosse uma trilha sonora, The Hills do The Weeknd toca lá fora, dando um toque ainda mais sensual para a cena que acontece entre eu e Roger aqui dentro desse cômodo, impregnado com cheiro de sexo e suor. Suas costas, testa e peito estão úmidos, enquanto seu rosto está ficando um pouco vermelho de prazer. Sua mão me masturba firme enquanto trocamos gemidos mais altos. Seu corpo pesado se pressiona ainda mais contra mim, então eu vejo que ele está chegando perto de explodir dentro de mim. As estocadas ficam ainda mais fortes, sua respiração ainda mais rápida e, quando seus olhos se fecham em uma linha estreita, vejo ele estremecer e gozar dentro de mim. Só de vê-lo nesse estado de prazer eu já sinto que estou perto de gozar também. Agora minha mão está fazendo em mim o que ele fazia antes, enquanto ele ainda está tendo seu momento. Eu me masturbo mais forte e mais rápido até que sinto o prazer crescendo gradativamente dentro de mim, vindo de forma tão intensa até eu explodir e soltar esperma por meu peito e minha barriga. A sensação é tão avassaladora que eu sinto meu corpo todo tremer, enquanto sinto Roger desabar em cima de mim e me pressionar contra o tapete. Apenas o barulho de nossas respirações voltando ao normal fica entre nós aqui dentro agora, enquanto a música ainda segue abafada lá fora. Me sinto tão cansado que é como se eu tivesse acabado de correr uma maratona nesse exato momento.
Roger me planta um beijo suave nos lábios tomba ao meu lado, ficando de barriga pra cima ainda sem falar nada, voltando ao normal depois de uma das transas mais intensas que tivemos. No fundo eu sei que os dois estavam com saudade disso, do toque, do prazer, dos beijos. Faz quase uma semana que a gente não se vê direito, por causa das festas de final de ano. A escola de dança fecha uma semana antes do Natal e só abre na segunda semana de janeiro, então mesmo a gente tendo se encontrado algumas poucas vezes depois que as aulas acabaram, não é a mesma coisa.
Logo quando a gente sai para o quintal eu avisto Thayla e Tales bebendo sentados nas espreguiçadeiras na beira da piscina. Ela me vê ao lado de Roger e me lança um olhar de “má como assim?” e eu lanço outro de “pois é” então a gente começa a rir. Nos sentamos junto com eles e começamos a beber também. Roger e Tales acabam se entrosando bastante conversando sobre o turismo de Florianópolis enquanto eu e Thayla estamos sentados na mesma espreguiçadeira, conversando baixinho sobre o turbilhão de coisas que aconteceram nessas últimas horas.
- mas Rafa, e o Diogo?
- provavelmente deve estar dormindo no quarto dele agora.
- mas vocês não estavam...
- ele me levou lá pra dentro, pro quarto dele, quando chegou na hora H...
- o que? Broxou?
- não, pior. Vomitou em mim.
Thayla leva uma das mãos na boca e solta uma gargalhada, enquanto eu penso que vai ser difícil pra ela esquecer disso e que eu vou ser motivo de piada nos próximos dias por causa do ocorrido.
- e como o Roger veio parar aqui?
- ele me ligou, falou que queria me ver... Aí você já sabe.
- ele sabe muito bem como conquistar o teu cu, né?
- nossa Thayla, cala a boca. – eu falo rindo. Minha amiga fica inegavelmente mais desbocada quando esta bebada.
Ficamos conversando e bebendo por um bom tempo, até que Roger me fala que precisa ir. Eu fico um pouco chateado mas não falo nada, apenas me despeço dele e peço pra ele me avisar quando chegar em casa, não por controlar a hora nem nada, mas pra saber se chegou bem. Assim que ele sai eu acabo me sentindo um pouco deslocado com os dois, que ficam trocando carícias, bebendo e conversando enquanto eu sinceramente queria que Roger tivesse ficado. Talvez agora a gente até poderia testar outro cômodo da casa, se ele tivesse afim. O pensamento me faz rir, enquanto eu me levanto e vou até a mesa de comidas beliscar alguns petiscos e forrar o estômago, já que eu mais bebi do que comi essa noite.
Quando chega perto das 5h da manhã eu convido Thayla para irmos embora, e mesmo ela não querendo muito, ela acaba cedendo. Agora Tales já está inclusive dormindo dentro da casa, a maioria das pessoas já foram embora e o quintal está praticamente vazio, restando apenas algumas pessoas no quiosque conversando e dezenas e copos descartáveis vazios no gramado. Enquanto caminhamos em direção à frente da casa, indo até o carro, vejo que Thayla está muito bêbada, então acho melhor não deixar ela dirigir.
- Thayla, me dá a chave aí que eu vou dirigindo pra casa.
- por que?
- porque você tá bebada. Deixa que eu levo o carro.
- viado, eu to ótima. Pode deixar que eu dirijo.
- Thayla, não. Ou você me deixa dirigir ou a gente vai de taxi.
- o carro e meu, eu vou dirigir ele. – ela tenta soar firme, mas as palavras se enrolam ao sair e ela acaba rindo ao me ver encarando-a com a expressão séria.
- Thayla eu não To brincando. Dá a droga da chave.
- não vou dar. – ela coloca o chaveiro pendido na ponta do indicador, sacudindo e me mostrando enquanto sorri. – a chave é minha. Mi-nha. – e então da outra gargalhada. Ela está realmente muito bebada. Decido então não discutir e ir cuidando ela do banco do carona. Se eu insistir mais ela vai se irritar e pode querer ir sozinha, então eu vou ficar mais preocupado.
Seguindo pela rua vazia, estamos com o rádio ligado em uma estação qualquer enquanto ela pisa fundo no acelerador. Estamos em uma rua perto da Beira Mar Norte quando avisto uma viatura da polícia parada no meio fio. Meu coração gela na hora.
- Thayla diminui a velocidade, tel blitz da polícia ali na frente.
- blitz? Polícia? – ela me olha e sorri. – bora brincar um pouco Rafa?
Vejo ela trocar a marcha e acelerar ainda mais, deixando a viatura pra trás em questão de segundos. Olho para trás e vejo a viatura acender as luzes da sirene e começar a vir em nossa direção. Thayla grita e começa a rir, enquanto eu estou quase a ponto de dar uns tapas na cara dela.
- Thayla, para a droga do carro! A polícia tá atrás da gente. – eu grito irritado com ela.
- ah Rafa, não é você que é o garoto rebelde? Bora brincar de corrida com eles.
Assim que ela fala isso vejo o ponteiro do velocímetro aumentar para 110 km/h, fazendo eu me segurar firme no banco.
A rua está vazia e os sinais estão todos abertos, felizmente. Eu não sei o que fazer pra Thayla parar a merda do carro, mas eu preciso pensar em algo logo. Viramos a esquina e andamos mais duas quadras até que outra viatura da polícia vem no sentido contrário, nos cercando. Thayla freia o carro com tudo, fazendo os pneus cantarem. Antes que a viatura chegue até nos, Thayla engata a marcha ré e começa a andar com o carro pra trás de volta, passando pela primeira viatura e aumentando cada vez mais a velocidade.
- isso que eu chamo de emoção, Rafa! – ela fala ao bater as mãos no volante, e eu com o coração quase saindo pela garganta. Os carros passam por nós buzinando, enquanto continuamos a andar para trás com as duas coagidas coladas em nossa frente, parecendo mais uma cena tirada de um filme de ação. Pra ser sincero, estou odiando o fato de Thayla ter tirado a noite pra bancar a piloto de corrida em plena cidade. Ela deve estar achando que estamos fazendo parte de um dos filmes do Velozes e Furiosos, ou coisa parecida. Ela vira bruscamente para outra rua, rodopiando e parando na posição normal do carro novamente e engatando a outra marcha, cantando pneu e continuando a fuga irresponsável. O que eu posso fazer? Se eu tentar tirar ela da direção a gente vai acabar batendo. Se eu pular do carro vou deixar ela sozinha e vou acabar me machucando todo. Só sei que depois que a gente parar, antes de a gente ir pra delegacia eu mesmo vou dar uns tapas nela.
De repente, a rua que até um segundo atrás estava vazia, agora tem uma terceira viatura. Em um movimento rápido e brusco, Thayla perde a direção e segue em direção a calçada, atravessando um muro de madeiras de uma construção e invadindo o pátio da obra, só parando quando o carro bate contra uma mureta de sacos de cimento. Assim que o air bag me joga pra trás eu bato minha cabeça no banco e sinto um pouco de dor. Agora Thayla esta desacordada do meu lado, mas pelo que eu estou vendo, ela está bem. Mas se os policiais chegarem aqui e verem ela no banco do motorista, ela vai se meter em grandes problemas. Além de ser fichada e ter que pagar uma multa enorme pra sair da delegacia, da qual ela nem tem condições de pagar, os pais dela vão surtar ao ter que buscar ela lá.
Pensa rápido Rafael, pensa!
Agindo mais rápido que meu próprio pensamento, eu vasculho a chave na ignição e furo l airbag, batendo nele pra esvaziar mais rápido. Depois faço o mesmo com o de Thayla, tiro o cinto dela e começo a trazer ela pro banco do carona, depois pulando pro banco do motorista e ajeitando ela, colocando o cinto em nós dois e me preparando pra ter que aguentar a barra que eu vou ter que passar agora.
- amanhã quando você tiver sóbria eu vou te falar umas verdades bem doidas, viu Thayla?
Mesmo com a adrenalina correndo nas minhas veias e eu estar um pouco com medo das consequências de trocar de lugar com ela, eu sei que estou fazendo a coisa certa. As coisas complicariam bem mais pra ela do que pra mim.
Não demora muito para os polícias chegarem até nós e nos analisar. Eu fico quieto e de olhos fechados o tempo inteiro, fingindo estar desmaiado, pois apesar de saber que não posso adiar o inadiável, não estou afim de aguentar isso agora. A ambulância logo chega e eles começam a nós tirar do carro e nos colocar na maca, então seguimos para o hospital com a sirene da polícia e da ambulância ligadas ao mesmo tempo.
“Que final de noite perfeito esse.” – penso comigo mesmo. O ano mal começou e eu já percebi que estou com a minha cota de confusão estourada.
___
Florianópolis hoje amanhece chuvosa. Assim que eu abro meus olhos sinto uma pontada forte na cabeça e exclamo em protesto, colocando minha mão na testa. Meu estômago também não está em seus melhores dias, o que me faz lembrar como é chato estar em um dia de ressaca. Me sento na cama e relembro a loucura de ontem. Passar o dia de observação no hospital e depois ir direto pra delegacia com minha mãe para fazer minha ficha e ter que pagar minha fiança não era um dos planos que eu havia feito. Sei que ela não me deu sermão ontem na frente de ninguém e também pela situação ser seria o bastante para agravar com brigas, mas com certeza hoje ela não vai me poupar. Solto um gemido so de pensar no que eu vou ter que ouvir logo agora pela manhã. Mas como é algo que não posso adiar, me levanto e vou até o banheiro lavar o rosto e escovar os dentes, então vejo o pequeno curativo na minha testa. Dos males o menor, sai do acidente apenas com alguns arranhões. Os pais de Thayla, apesar de estarem putos comigo, disseram que ela também só ficou com uns arranhões e alguns roxos. Penso em como eles estão me odiando agora, querendo proibir ela de andar comigo e tudo mais. Suspiro fundo e então desço as escadas temendo ver minha mãe e meu irmão na mesa da sala de jantar, como de costume, com os olhares de julgamento toda a vez que eu faço algo de imaturo ou impensado. E como se eu conseguisse ser o melhor vidente do mundo, lá estavam os dois. Minha mãe já arrumada, provavelmente quase saindo para algum encontro com suas amigas ricas e refinadas da elite florianopolitana; meu irmão com sua roupa esportiva, provavelmente saindo para mais um dia na academia. Tudo tão previsível que faz eu soltar um riso ao me sentar junto com eles na mesa.
- acordou de bom humor, Rafael? – sua voz fria e julgadora tenta me reprimir, mas até ela sabe que não adianta.
- sim mãe. Bastante. Bom dia pra você também. Pra você também Leo. Você pode me passar a manteiga?
Enquanto ele me passa sem fazer mais nada a não ser rir, minha mãe me olha com os dedos entrelaçados e apoiados na boca, os cotovelos em cima da mesa.
- quando você vai crescer de verdade?
- eu já cresci, mãe. Você não vê? Eu sou adulto, muito adulto. – digo ao terminar de passar a manteiga no pão e dar uma mordida. – me passa o suco?
Ela me encara por alguns segundos e percebe que eu não estou levando a conversa a sério, enquanto eu tento ao máximo reprimir meu riso e manter o rosto livre de qualquer expressão.
- um dia você vai ver que a vida não é como você pensa, Rafael. Você vive preso nesse seu mundinho de dança, de filosofia, de rebeldia, mas a vida é mais do que isso.
- eu sei que eu fui errado mãe. Eu sei muito bem disso, tá legal? Não preciso que ninguém saia apontando o dedo na minha cara e falar o que eu faço ou não faço de certo na vida. Eu já tenho 21 anos, sei como e a vida sim.
- sim, você tem 21 anos e vive como adolescente, naquela palhaçada de filosofia, dança e ONG. É isso que você quer pra sua vida? Virar um sem futuro, vivendo de nada?
- eu faço o que eu amo mãe. Pra mim isso é tudo. Eu faço filosofia porque é o que eu escolhi seguir, eu danço porque é o que eu amo fazer, o jeito que eu tento de me expressar e eu ajudo na ONG porque eu sei que tem muita gente por aí precisando de um prato de comida ou de um cobertor pelo menos. Fica difícil você saber disso, já que você vive viajando pra lugares lindos, vivendo uma vida de luxo e status. Eu prefiro mil vezes viver dentro do meu mundo, do que no seu. Aliás, você não precisa se preocupar com o meu futuro. Você já tem o Léo né? O filho perfeito. Já não é o suficiente?
- Rafael, não fala assim com a mãe.
- não Leo, tá tudo bem. Eu já me acostumei com a ingratidão do Rafael. Ele critica tanto meu jeito, minha ausência, mas ele não se lembra de que se não fosse eu arregaçar as mangas e ir a luta, nos três estaríamos passando fome hoje. Porque se fosse depender da bondade do pai de vocês, o tão bondoso Armando, vocês hoje não teriam o conforto que vocês têm. O Léo sabe de tudo isso Rafael, por isso ele valoriza e tem interesse nos negócios da família. Já você critica, mas vive dentro dessa casa sem ajudar em nada, apenas fazendo seu discurso diplomático enquanto tem tudo do bom e do melhor.
- você tá jogando na cara agora que eu não trabalho?
- não Rafael, não distorce as coisas. – ela abaixa o tom, vendo que q conversa foi para um rumo tenso demais, mas já é tarde pra tentar consertar.
- tudo bem. – digo levantando as mãos em sinal de rendição. – se esse é o problema, eu vou procurar algum emprego hoje mesmo. Se tem algo que eu não faço questão é de viver nas tuas custas mãe. Eu posso me virar sozinho.
Me levanto com o coração batendo forte e com a raiva pulsando junto com meu sangue nas veias. Eu estou me sentindo péssimo pelo que eu fiz ontem, mas isso não muda o fato de que minha mãe tem uma ideia muito errada de mim. Ela passa tanto tempo fora que não tenta nem ao menos entender que eu não sigo os passos dela, que eu não me torno um empresário de sucesso porque simplesmente não é o que eu quero pra mim. E toda vez que ela fala mal sobre eu ajudar na ONG eu fico aborrecido. Às vezes ela parece ser tão fria pelo fato do meu pai ter ido embora e nos abandonado que me faz pensar que ela se tornou alguém sem sentimentos. Como pode alguém se transformar tanto por causa de uma decepção?
Entro em meu quarto com meu coração batendo mais forte e com uma sensação de injustiça dentro de mim. Minha mãe está me chamado de irresponsável e imaturo por uma atitude que não foi minha. Mas mesmo assim eu não me arrependo do que eu fiz. Thayla é minha amiga e eu defenderia ela quantas vezes fosse preciso, mesmo que ela tenha feito uma burrada enorme ao pegar o carro bebada. Me deito na cama e ponho minhas mãos atrás da cabeça, enquanto meus olhos estão fixos no teto e minha mente vagueia pela loucura da noite de ontem. A virada de ano, a festa, o vomito do Diogo, a transa inesquecível com Roger no home office da casa de Renata, a perseguição da polícia, a delegacia... Tudo foi no mínimo surreal.
Ouço duas batidas na porta e a raiva já começa a voltar em mim. Tanto minha mãe quanto meu irmão são pessoas com as quais eu não quero conversar agora, pois só vai me trazer mais chateação. No entanto, eles sabem que eu estou aqui, então é algo que eu vou ter que passar mesmo assim.
- pode entrar.
Para minha surpresa e para a falha da minha expectativa, não era minha mãe quem estava batendo, como eu estava quase totalmente convicto de que seria, e sim meu irmão. Ele parece estar de guarda baixa, então eu também tento dar um voto de confiança pra ele.
- e aí.
- e aí.
- tá mais calmo?
- acho que sim. A mãe que te mandou aqui? Se for não precisa esquentar a cabeça.
- não, ela não mandou. Eu que quis vir. – ele está com a voz calma, parecendo que dessa vez não iremos nos desentender, como das outras vezes. – não esquenta a cabeça com a mãe. Você sabe que ela tem o gênio difícil. E você também não facilita. – ele me analisa depois de falar a última frase, mas eu não protesto. Ele tem razão.
- eu sei. Eu sei que eu faço merda às vezes, que eu não sou o garoto exemplar dos livros, mas eu não sou esse irresponsável que ela diz, Leo. E o que ela falou lá embaixo me deixou mal, de verdade. Eu não quero que ela jogue na minha cara que eu sou sustentado por ela.
- velho, ela não disse isso. Você distorce as coisas. Ela falou tudo na hora da raiva, mas não foi isso que ela quis dizer. Você é inteligente o suficiente pra interpretar as coisas da maneira certa, Rafa.
- sim, eu sei. Mas mesmo assim eu vou procurar um emprego.
- como? Você estuda de manha, faz as aulas de dança de tarde e ajuda na ONG quase todos os dias de noite.
- eu sei, por isso eu vou largar as aulas de dança. Vou arranjar um emprego de meio período, sei lá. Pelo menos vou poder pagar minhas contas.
- você sabe que se você sair das aulas de dança você vai ficar infeliz. E eu sei que a mãe não quer isso. Se você fizer isso ela vai se sentir mal. Para de pirraça, de verdade.
Então eu olho para o estranho do meu lado que parece muito com meu irmão mais velho, mas que definitivamente não é ele.
- o que deu em você? Vindo me dar conselhos, tentar apaziguar as coisas... Você não é assim.
- pode-se dizer que eu acordei de bom humor hoje, maninho.
- ou talvez o suplemento, o frango e a batata doce estejam afetando o seu cérebro. – ele começa a rir e me dá um soco de leve no braço, se levantando em seguida e indo em direção à porta.
...
Já está quase anoitecendo enquanto eu dirijo até o prédio da ONG pela avenida
...
Logo ao entrar todos já estão pegando os sanduíches e os fardos com garrafas de água na cozinha e levando até a mini van pela porta dos fundos.
Maria, a cozinheira, está apressando a todos, como sempre.
- isso é hora de chegar, Rafael? Quase que a gente sai sem você.
- boa noite pra você também, sua linda! – agarro o rosto dela com as duas mãos e beijo sua bochecha, enquanto ela me bate com o pano de prato e sorri ao mesmo tempo.
- bora que 1 de janeiro também é dia de trabalhar, cambada! Aqui não tem moleza não. – Tarcísio, marido de Maria, também brinca com a gente, enquanto eu pego minha camiseta branca, que é o uniforme que a gente usa sempre que sai para a distribuição dos alimentos, e corro até o banheiro para trocar e ficar igual aos outros. Muitos dos moradores de rua nos chamam de anjos, por causa da roupa que usamos. Eu participo do grupo há quase um ano e não me vejo mais sem ele. Faz parte da minha rotina encontrar essas pessoas que assim como eu, não suportam ver outros seres humanos largados pelas ruas e decidem arregaçar as mangas por conta própria para fazer alguma coisa. O mais incrível é que não fizemos isso em busca de nada; nem de reconhecimento, nem se recompensa, nem nada. Apenas o fato de estarmos ajudando nossos semelhantes já basta para deitar a cabeça no travesseiro com a sensação de dever cumprido. Assim que a van estaciona quase na esquina, descemos com os alimentos e nos separamos em três grupos de três pessoas. Comigo foi dona Maria e Naiara, uma menina bastante tímida que se juntou a nós há pouco mais de um mês.
- e aí menino, como foi o teu ano novo?
- passei na delegacia, dona Maria. – olho pra ela e solto uma risada ao ver sua reação com minha resposta.
- meu Jesus. O que você aprontou dessa vez?
- tava com uma amiga numa festa, a gente bebeu demais e estávamos de carro. Aí na volta pra casa a polícia parou a gente. O resto a senhora já sabe né.
Prefiro poupar ela dos detalhes desnecessários, se não vai ser outra pessoa que vai me tacar de arruaceiro irresponsável do pior tipo, mesmo que todos eles da ONG saibam como eu sou.
- bebida e direção não combinam, meu filho. Você é adulto, sabe disso, né?
- sim, eu sei. Minha mãe me deu um sermão de uma hora hoje de manhã.
- com razão. E se não adiantar, da próxima vez pode avisar pra ela que eu te dou uns puxões de orelha.
- só deixo a senhora puxar minha orelha se depois eu ganhar um beijo. – eu me viro pra ela e faço biquinho, pedindo beijo.
- sai dai, guri. – ela sacode q cabeça em sinal de negativo enquanto ri. Dona Maria é uma mulher de quase cinquenta anos, gordinha e natural do Rio Grande do Sul. Seu coração é maior do que qualquer coisa que eu conheça, o que me serve de inspiração todos os dias. Ela também trabalhou na cantina da faculdade no ano passado, foi aí que eu conheci ela e fiquei sabendo da ONG.
- você passou a virada onde?
- a meia noite eu tava na praia com a Thayla. Depois eu e ela fomos numa festa de uma amiga dela da faculdade. – eu digo ajeitando o pote médio de plástico com os sanduíches e a água. – sabe quem foi lá também?
- quem?
- o Roger.
- ah filho, eu já te falei pra você deixar esse homem pra lá. Ele não é bom pra você.
- eu sei Maria, mas foi mais forte do que eu.
- tu sempre diz isso.
- ah Maria, ele é tão gostoso.
- mas guri! – ela solta uma risada, enquanto eu percebo que até Naiara ri da minha resposta. À medida que nos aproximamos dos primeiros moradores de rua, decidimos mudar de assunto. Maria é uma das pessoas mais mente aberta que eu conheço. Ela é quase como uma segunda mãe pra mim, além de ser uma das minhas únicas confidentes. Apenas ela e Thayla sabem do meu envolvimento complicado com Roger, e as duas sempre me alertam pra cair fora dessa. Mas mesmo eu sendo inteligente o suficiente pra saber que ele é problema, eu não consigo dizer não pra ele, toda vez que ele se aproxima de mim e como se houvesse um ímã que me puxasse pra perto dele. Sacudo minha cabeça na tentativa de fugir desse pensamento e me concentrar no que estou fazendo agora. Nós três seguimos por ruas diferentes, combinando de contornar a quadra e nos encontrar no final. Eu sigo pela rua onde há mais moradores, todos com suas caixas de papelão molhadas por causa da chuva que havia cessado no começo da tarde. Assim que alguns dos conhecidos me avistam, já abrem um sorriso ao me reconhecer. Claro que não são todos que estão conscientes o suficiente pra isso, já que alguns estão sob o efeito de drogas ou bêbados, mas há alguns que, por incrível que pareça, estão limpos. Desço a rua distribuindo um sanduíche e uma garrafa de água pra cada um e converso um pouco com eles, desejando feliz ano novo e recebendo as felicitações também. Tatiele, uma das moradoras mais antigas dali, me para e começa uma conversa aleatória e eu sei que ela apenas precisa de alguém pra conversar, já que ela é uma pessoa bastante sozinha. Ela conta suas aventuras em São Paulo, no tempo em que era bailarina e cantava música clássica, e mesmo eu sabendo que é tudo mentira, eu não consigo deixar de rir com seu entusiasmo ao contar tudo de forma bastante convincente. Depois de dar tchau pra ela, continuo descendo a rua até chegar em uma aba de uma antiga loja de materiais de construção, hoje posta para alugar, onde há algumas pessoas sentadas com seus cobertores e sacolas de comidas que ganham de pedestres ou donos dos bares próximos daqui. Distribuo os sanduíches para as pessoas sentadas em seus pedaços de papelão, estes por sua vez não muito à vontade para conversar, até que eu chego no último morador abrigado ali e vejo que ele é um rosto novo. Sentado no canto, ao lado de um sofá velho e rasgado, há um garoto de corpo esguio e com a pele suja, de cabeça baixa, parecendo estar com medo. De onde será que ele é? Não me lembro de ter visto ele aqui antes. Decido me aproximar lentamente até que ele possa sentir segurança, então aceno com a mão direita, sorrindo na tentativa de ganhar sua confiança.
- oi.
Não obtenho resposta, mas ele coloca seus olhos castanhos tristes e fundos em contato com os meus.
- você é novo aqui?
Ele apenas acena com a cabeça, ainda desconfiado, mas não transparecendo medo.
- eu me chamo Rafael, eu venho toda a semana com alguns amigos meus distribuir alimentos pro pessoal aqui. Você aceita? – estendo a mão com um sanduíche pra ele, então ele parece hesitar um pouco, mas acaba pegando.
- obrigado. – sua voz baixa e fraca me causam um aperto no peito, mas eu não demonstro nada. Há uma quantidade considerável de moradores nas redondezas e o número infelizmente aumenta com o tempo, mas esse menino me parece ser diferente. Ele me passa a sensação de sofrimento, de medo, de angústia. Eu engulo em seco e tento puxar alguma conversa.
- você chegou aqui quando?
- não sei ao certo. Acho que faz uns dois dias.
- você veio de onde?
Ele não me responde, então começa a comer seu sanduíche com bastante vontade, então eu passo meus olhos em seu redor. Bem ao seu lado eu vejo um livro bastante velho, inclusive faltando parte da capa.
- você gosta de ler? – eu aponto com o queixo para o livro, então ele olha para o lado e vê do que eu estou falando e balança a cabeça em sinal de positivo.
- qual é o livro?
- o pequeno príncipe. – sua voz agora está mais limpa e clara, parecendo que ele gosta de falar sobre isso.
- sabe que eu nunca li ele? Mas todos dizem que é bom.
Ele parece estar um pouco mais a vontade, e eu não sei ao certo o motivo, mas eu quero ficar e saber um pouco mais sobre ele. Aquela figura frágil em minha frente é misteriosa demais pra mim, e de alguma forma prendeu minha atenção.
- posso me sentar?
- uhum.
Me agacho e apoio minha mão no chão frio até que eu me ajeito e me sento ao seu lado.
- posso ver o livro?
Ele me analisa por um milésimo de segundo, os olhos grandes e assustados me fitando desconfiados. Mas depois ele se vira e pega o livro e me alcança. Eu sorrio em agradecimento e abro-o em uma página qualquer. As folhas amareladas cheias de palavras parecem ter um significado muito especial para o garoto de mais ou menos uns 17 anos, pois seus olhos brilham no escuro assim que eu o folheio.
Agora o céu está em tons de laranja, quase sem nuvens, enquanto o sol está tão baixo que parece estar tocando os prédios no horizonte. O garoto agora olha para frente, a luz do fim do dia tocando seu rosto sujo e iluminando seus olhos que parecem viajar longe daqui.
- quando a gente está triste demais, gosta do por do sol.
Eu apenas o olho sem falar nada, então ele me olha de volta e parece ter um fantasma de um sorriso em seu rosto.
- é uma parte do livro.
- ah sim. – eu falo meio que me desculpando por não saber.
- você andou se machucando?
- por que?
- está com um corte pequeno na testa.
- ah, sim. – eu passo a mão nela, só agora sentindo um pouco de dor. Eu até tinha me esquecido que com a confusão minha e da Thayla eu havia ganhado esse prêmio de brinde.
Vejo dona Maria aparecer na calçada e me avistar sentado no chão, então ela me olha um tanto intrigada.
- a gente já tava preocupada com você, guri.
- desculpa Maria, eu acabei fazendo um amigo novo aqui. – eu olho pra ele e sorrio, mas ele não fala nada. Eu limpo a garganta e então me levanto um pouco sem jeito, limpando a calça e pegando o pote com as coisas no chão. Já estou quase indo embora quando me viro novamente para ele, vendo que ele também me olha.
- foi um prazer te conhecer. A gente vai se esbarrar mais algumas vezes por aí.
Ele sorri de verdade pela primeira vez, mesmo sem mostrar os dentes, o que me faz ficar feliz. Ele já não está com medo.
- você não me disse seu nome.
- é João.
- bom, vê se não some, João.
Eu me viro e vou em direção a Maria, que me espera parada no mesmo lugar, com seu pote vazio. Começamos a andar rua abaixo e então eu dou na última olhada para trás, avistando João. Eu não sei bem o que foi aquilo, mas foi algo diferente. Ele me parece ser uma pessoa totalmente diferente das que eu conheci por aqui. Não sei se foi o livro, seus olhos grandes e castanhos ou as meias palavras que trocamos, mas João definitivamente não se encaixa aqui, como se estivesse aqui por algum motivo errado, ou por infelicidade do destino.
viva