Capítulo 02 - Primeiro Ano Parte 2: Na Festa
Parte da série Poderia Ser
Eu ainda pensei naquela conversa por muitos dias. Em cada horário de aula, cada intervalo que eu o procurava ver onde ele estava e, surpreendentemente, ele me cumprimentava com um aceno de cabeça, cada ensaio da apresentação que antecederia a festa na qual ele havia "prometido" me ver, cada noite fria antes de dormir debaixo do meu cobertor.
Quando o dia finalmente chegou, minha ansiedade se fazia mais pelo momento de vê-lo do que pela apresentação em si. Apresentações nunca me deixavam nervoso como à maioria. Ainda mais quando era algo de dança, que eu definitivamente adorava fazer. Era quando eu esquecia do universo e me entrega, me expressava para o mundo, sem me importar com opiniões, muito menos críticas.
O espetáculo era uma performance da história de "Adão e Eva". O elenco de dançarinos era enorme, e eu fazia parte do ato das Trevas, à frente da coreografia. Antes de entrar, eu via uma plateia lotada naquele teatro simples da cidade que vivíamos e me surpreendia com aquela quantidade de gente ali, aquela cidade definitivamente não era uma cidade de gente muito culta.
Depois da dança da Cobra, a hora da nossa entrada chegou e ali me fechei para o mundo e me abri para os movimentos. Nossa coreografia era de movimentos fortes, precisos e abertos, exigindo também muito expressão facial. As luzes me impediam de ver qualquer pessoa que nos assistia, se gostavam ou não, mas aquilo não importava. Eu entrei em um estado de êxtase. A coreografia, que ao todo tinha 10 minutos, tinha se desenvolvido por apenas uns dois ou três até o momento e para mim parecia se estender por horas infinitas. Chegou o momento da luta quando Eva, representada pela Ana, entrava em cena e éramos nós dois no centro, uma coreografia só nossa que os outros bailarinos nos acompanhavam e intensificavam a dramaticidade do momento. Os movimentos exigiam de nós muita precisão e sintonia, e a cada mísero segundo que dava certo, eu vibrava e me sentia mais confiante por dentro. Em seguida, quando Eva era tomada, Adão entrava e Eva se juntava a nós para seduzi-lo, vencê-lo. Então, nós que fazíamos parte das Trevas saímos do palco e ficaram só eles dois para o momento final da apresentação, entrando apenas alguns bailarinos no fundo com uma coreografia complementar.
Ao final, as luzes foram se apagando e todos nós subimos ao palco para os agradecimentos. As luzes se acenderam novamente e as palmas invadiram tudo ao nosso redor, firmes, fortes, unidas, ininterruptas e incansáveis. Depois de uns dois minutos ali, a nossa coreógrafa e diretora geral agradeceu brevemente a presença de todos e fomos para os camarins trocar de roupa. Não havia uma exata divisão entre camarim masculino e feminino - pelo menos não uma que se respeitasse, até porque, ali dentro se sabia que a muitos dos meninos eram gays, só não se tinha certeza de quais, e eu, claro, ainda não tinha me assumido nem mesmo para meus amigos -, então a Ana e eu ficamos no mesmo camarim. Ao chegar lá, enquanto as pessoas com quem ela cruzava a cumprimentavam e parabenizavam, ela se aproximou o mais rápido possível de mim, saltitante, e me abraçou.
"Foi muito lindo." Ela disse, sorrindo.
"Com certeza. Você estava maravilhosa."
"Nós dois estávamos, Ju."
Eu não tinha muitos amigos nem no grupo de dança nem no colégio, mas poderia considerar que a Ana era a minha melhor amiga. Ela estava no mesmo ano que eu, mas, devido à quantidade de alunos, éramos de turmas diferentes. Estudávamos em um dos dois melhores colégios particulares de ensino médio da cidade e haviam um número absurdo de estudantes lá, mas não era difícil saber quem era quem pelo menos de vista, o que chegava a ser um pouco arriscado, por isso eu tinha decidido não contar à ninguém, nem mesmo a ela. Não sei, eu confiava nela, mas não totalmente. Nada com ela especificamente, apenas sempre tive muita dificuldade em confiar nas pessoas, já tinha me acostumado a amigos me traírem e isso se tornou uma espécie de defesa minha. Mas eu sabia que ela era uma boa pessoa, sincera e que gostava mesmo de mim. Chegava a ser estúpido isso, mas talvez eu não quisesse admitir nem para mim mesmo quem eu era.
"Então, animada para a festa hoje?" Perguntei a ela.
"Ah, sei lá."
"É seu aniversário, ué. Todo mundo vai estar lá por você."
"Todo mundo vai estar lá por causa de todo mundo que vai estar lá, não necessariamente por minha causa."
Nós dois rimos e fomos trocar de roupa em cantos separados. Por mais que não houvesse uma divisão estrita dos camarins, havia o respeito suficiente pelo espaço de cada um e as meninas muitas vezes faziam uma espécie de vestiário humano umas para as outras enquanto se trocavam. Eu fui para um canto da sala cheio de cadeiras onde provavelmente ninguém prestaria atenção em mim e fiz o mesmo ritual que sempre fazia na frente dos outros para trocar de roupa. Eu tinha vergonhado do meu corpo e não gostava de mostrá-lo, odiava até mesmo ficar sem camisa - um dos motivos para, quando criança, ter aumentado meus problemas respiratórios para não precisar fazer educação física por um bom tempo; o outro motivo era apenas porque eu odiava futebol, mas sempre que era baleado, eu brincava.
Eu estava de cabeça baixa, então não percebi quando se aproximaram de mim. Eu já tinha tirado o figurino pela metade e vestido rapidamente a camisa com a qual iria para a festa da Ana. Estava terminando de tirá-lo quando ouvi uma voz:
"Parabéns."
Levantei a cabeça rapidamente, tomando um susto e me assustei ainda mais ao ver que era o Daniel. Definitivamente eu nunca imaginaria que o veria ali. Ele sorria para mim e me estendia a mão. O mais constrangedor para mim e que me deixava com ainda mais vergonha e ainda mais paralisado era o fato de ele estar ali na minha frente enquanto a única coisa que eu vestia além da cueca era a minha camisa - que, felizmente, era um pouquinho maior, então me cobria mais, mas não tanto também.
Eu levei a mão até a dele e não sabia muito o que tinha acontecido ali. Eu não sabia de que forma ele pretendia me cumprimentar, eu estava afobado e o que começou com um aperto de mão que se deslizou e não se firmou moveu-se para um movimento estranho que era sinal de como nossas mentes não estavam em concordância naquele momento. Me dei por vencido e ele riu em silêncio.
"Obrigado." Eu disse. "O que você está fazendo aqui?"
"A Ana é namorada do meu irmão. Eu tinha que vir ver a apresentação, né."
"Ah, sim. Eu tinha me esquecido completamente disso."
"Sua memória é como a minha então, hein?" Ele continuava sorrindo. "Acho que não, senão você não teria lembrado toda aquela coreografia. Você foi muito bem."
Eu não sabia o que dizer. Não acreditava que ele pudesse ter reparado em mim. Por mais que, em um certo momento, eu tenha me destacado dos outros por ter uma protagonizado uma coreografia com a Ana, mas foi um momento muito breve, por mais que para mim tenham sido segundos mágicos e eternos. Eu apenas não respondi nada e ele continuou falando.
"Escuta, vem no carro com a gente." Ele pediu. "Vamos só eu, meus irmãos, a Ana e a minha mãe dirigindo. Como você é magro tem espaço pra você."
"Ah, tudo bem. Eu só tenho que terminar de me vestir."
Ele olhou para baixo e meu instinto foi logo colocar as mãos à frente do corpo, mas não tinha percebido até ali que eu já estava assim.
"É verdade." Ele riu. "Eu vou esperar por vocês lá no carro."
"Okay."
Por alguns segundos, eu fiquei ali, imóvel, vendo-o caminhar de costas. Tudo aquilo tinha sido muito rápido, mas eu havia registrado cada segundo, cada momento, cada detalhe dele, do que ele dizia, do que ele fazia, para poder acreditar que ele era real, que aquilo era real. Eu tentava me convencer de que eu estava me iludindo, que aquilo não queria dizer nada, mas falhava nisso a cada momento que o via, que ele falava comigo e tudo me fazia acreditar que era possível, tão possível que, na minha mente, chegava a ser até óbvio.
Assim que lembrei de onde estava, terminei logo de me vestir. A Ana já estava pronta, então pegamos nossas coisas e fomos saindo. Todo mundo ainda a cumprimentava, confirmando também a presença no aniversário dela, e alguns falavam comigo também, então demoramos um pouco até conseguir chegar no carro. O Diego, irmão do meio do Daniel, estava de pé, encostado no carro e se aproximou da Ana, pegando-a no colo e parabenizando-a com um beijo logo em seguida. Eu apenas continuei andando, vendo o Daniel que também estava na porta. Na minha cabeça, eu deseja que ele fizesse o mesmo, mas tinha consciência de que aquilo não aconteceria, então apenas respondi o sorriso dele com o meu meio sorriso tímido de sempre e levei as minhas coisas para o fundo do carro. Ele abriu o porta-malas, pegou a mochila da minha mão e colocou lá para mim. A Ana veio logo atrás e o Diego colocou as coisas dela para ela.
Então entramos no carro. A mãe deles e o irmão mais novo, Lucas, estavam no carro e nós os cumprimentamos. O Lucas parecia ter uns 10 anos, enquanto eu imaginava que o Diego tinha 16. Eu não me importava muito em saber a idade deles, na verdade. O único que eu sabia quantos anos tinha era o Daniel, que faria 18 dois meses depois do meu aniversário de 14 (mesma idade da Ana, a propósito), que estava bem próximo. quando eu pensava nessa nossa diferença, eu me sentia realmente estúpido. Afinal, na adolescência qualquer diferença parece enorme. Apenas anos eu confirmaria a minha ideia de que diferença de idade não tinha qualquer importância, quando se cresce isso perde o sentido. Mas, naquele momento, fazia.
Como o Lucas já estava na frente, sentamos todos atrás. O Daniel era um pouco forte e o Diego mais ou menos como ele, mas eu e a Ana éramos magros, então, com um pouco de aperto, caberia. De qualquer forma, ela foi no colo do Diego, o Daniel se sentou no meio e eu fiquei ao lado. Eu olhava pela janela, evitando olhar para ele e me virando apenas para responder quando falavam comigo, mas tudo o que eu pensava ali era em ele estando do meu lado. Eu podia sentir o calor do corpo dele, que, para mim, ele parecia pressionar um pouco mais do que o necessário ao meu em cada curva. Nossos braços se esbarravam, mas eu tentava me mover o mais minimamente possível, ocupando também pouco espaço ali dentro. O caminho me pareceu logo e eu permaneci tenso por todo ele, mas chegamos finalmente e logo abri a porta. Ele veio atrás de mim e fechou a porta.
O Daniel fez a mãe dele, Marcela, confirmar que me levaria em casa depois, então deixei minha mochila no carro junto com as coisas da Ana. Entramos nós quatro, enquanto a Marcela estacionava o carro com o Lucas ainda com ela.
"Nossa, já tem bastante, gente." A Ana exclamou.
O lugar era um espaço reservado para eventos bem espaçoso e estava muito bem decorada. A música, quase não ouvida do lado de fora por conta do isolamento acústico, era alta e potente lá dentro, fazendo nossos corpos vibrarem em seu ritmo involuntariamente. Havia um DJ, muitas pessoas na nossa faixa de idade dançando e, em um canto um pouco mais distante da entrada, mesas que eram ocupadas, em sua maioria, por pessoas mais velhas que provavelmente eram parentes, conversando entre si como se estivessem em um ambiente completamente separado.
À medida que fomos entrando, muita gente ia se aproximando, dando os parabéns à Ana e se juntando a nós, sendo dois deles amigos meus também, Caio e Jéssica. Eles eram bem extrovertidos e comunicativos e me sentia à vontade com eles, então aproveitei a oportunidade para abandonar o grupo e ir com eles dançar. Olhei para trás um momento e vi o Daniel olhando para mim, mas no mesmo instante uma menina que eu não conhecia se aproximou dele. Eu já estava na pista de dança com o Caio e a Jéssica, dando meus passos automáticos no ritmo da música demonstrando a minha imensa timidez em eventos como aquele, mas eu continuava o observando. Ele e a menina conversavam. Ela se atirava nele, chegava mais perto escancaradamente. Eu não sabia dizer o que ele estava pensando, o que ele achava de tudo aquilo, mas não precisei refletir muito sobre isso. Logo em seguida, ele mesmo a beijou. Eu apenas virei meu rosto e abaixei a minha cabeça o mais rápido que pude, tentando inutilmente evitar que aquela imagem ficasse gravada na minha memória.
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Está o segundo capítulo, gente. Espero que gostem.
Agradeço ao ThiagoAraújo e ao LipEmanuel por comentarem, fico feliz que tenham gostado, breve aparecerão personagens com os nomes de vocês. =] Continuem acompanhando.
Até o próximo. ;)