[1x1] Quarterback

Conto de Lincon como (Seguir)

Parte da série Dança Comigo

- Lucas, já são quase sete e vinte, desse jeito vamos nos atrasar. Sabe que não posso levar mais notificações.

- Já vou seu chato.

Ser interrompido na melhor parte do sono, não é lá a melhor sensação do mundo. Levanto-me da cama e calço meus chinelos. Quando chego no banheiro minha face sonolenta chega a assustar até a mim mesmo. No espelho a imagem de um garoto quase que pálido, cabelos negros como a fuligem e olhos escuros como o grafite, feições quadradas e um cavanhaque desenhado por pêlos de uma barba rala. Este sou eu, Lucas, o sempre otimista, feliz, sonhador e motivado a desbravar e vencer o mundo. Mas não nesta manhã. A bebedeira de ontem a noite não tinha ajudado muito. Na próxima aprendo a não ouvir Olivia e vir embora mais cedo, ou pelo menos a passar a noite na água com gás e só. A garota havia ficado tão feliz de saber que iria para Boston no fim do ano que resolveu em uma noite tomar todo o estoque de tequila do estado. E para ajudar neste momento o sabor na minha boca não era o melhor de todos. Decidi que escovaria os dentes umas três vezes, só pra garantir que ninguém sairia correndo quando eu disser oi.

Na cozinha estavam meu pai, Jonas, e meu irmão, Martin, sentados tomando café enquanto minha mãe já me puxava uma cadeira e me servia os ovos mexidos. Tudo parecia gostoso de mais, mas meu estômago não parava de gritar "por favor não coma isso". Então decidi que só daria umas mordidas na torrada com manteiga e beberia meu leite.

Sobre minha família, meu pai era arquiteto e minha mãe professora na escola primária do bairro. Meu pai Jonas, alto cabelos negros e olhos tão escuros quanto os meus. Já minha mãe, Lea, alta, magra, cabelos castanhos claros ondulados e olhos tão castanhos quanto cada mexa de seu cabelo. Eu puxara meu pai e meu irmão, Martin uma mistura dos dois, os cabelos de meu pai e de minha mãe os olhos castanhos, porém escuros.

Martin comia vorazmente os ovos mexidos e isso só podia indicar uma coisa. Estávamos atrasados para a escola.

Sempre íamos de carro. Depois que meu irmão tirou sua carta meu pai ficou tão orgulhoso que deu para ele um volvo prata do qual eu morria de inveja. Mas ao menos ganhava carona para a escola todos os dias. Além do mais eu sabia que meu dia já estava para chegar. Em apenas dois meses eu fazia idade o suficiente para tirar minha permissão. E já tinha em mente qual carro eu poderia - ou não - pedir.

A escola em que eu estudava era a única escola de ensino médio da cidade. Então era de se esperar que eu fosse ver todos os jovens de minha idade ali. Eu estava no segundo ano do colegial e já tinha uma vida social toda programada, bonitinha, ajeitadinha e isso já me bastava. Boas notas, sempre elogiado pelos professores, sem namorada, por enquanto, e estudante de artes nas horas livres. Este era um componente extra-curricular para adicionar na minha carta de aplicação para Yale no ano que vem.

Me despeço de meu irmão e sigo direto para o terceiro prédio da escola. Enquanto atravessava o corredor movimentado alguém me chama.

- Ei, você está vivo? Que surpresa.

- Claro, pensou que eu morreria sem antes te enviar de vez para Boston?

Digo abraçando Olivia, a menina tão magricela que chegava a parecer anorexa.

- Seu bobo, sabe que não é para sempre. É apenas um estágio, mas quem sabe, quem sabe, algum estilista me reconheça por lá e me ofereça uma vaga efetiva como estilista sênior? Fiquei sabendo que Marc Jacobs levará uma amostra para a cidade no primeiro semestre do ano que vem. Eu não vou perder isso por nada.

Enquanto conversavamos seguimos rumo a sala de aula, onde era provável que a aula de química estava prestes a começar. Quando passamos pela minha turma me despedi de Olivia e entrei.

- Até o intervalo Olivia. Mas como pode ver, ainda estou vivo. Relaxa, não morro tão cedo. Desde que você não invente de beber as destilarias do estado novamente.

Digo rindo.

- Agora vou indo, beijo.

- Até depois Lu.

Entrei para sala e me sentei na fileira do canto onde costumo me sentar sempre. Senhor Walter entrou logo depois. De química eu entendia pouco mas uma coisa eu vi que havia de errado. Bem a frente na fileira do meio estava sentado um amigo de meu irmão, o Eduardo. O que era estranho já que ele estava no terceiro ano assim como meu irmão. Será que ele havia sido reprovado e só agora mandaram ele voltar para as aulas do segundo ano?

- Ei, psiu, Marc.

Chamo meu colega que se senta ao lado.

- Aquele não é o Eduardo, capitão do time de futebol?

- Sim.

- E o que ele faz aqui? Pensei que já estivesse no terceiro ano, junto com meu irmão.

- E ele está, mas bombou em química. Vai ter que refazer todo o conteúdo.

- Ran, devia ter imaginado. Mas e ai, como foi o fim de semana?

Sim, só para constatar hoje era segunda.

- Nada de especial, fui visitar minha avó, ela havia feito bolo de banana.

- Ahh, bolo de banana. Juro que um dia comerei o bolo de banana que sua avó faz. Você fala sempre deles.

O turno da manhã passou rápido e quando eu menos via já estava sentado com Olivia no refeitório enquanto ela me mostrava as novas bandas que tinha "descobrido".

- Olivia, você promete que não vai se esquecer de mim quando ficar famosa?

- Eu esquecer de você quando ficar famosa? Eu é quem deveria te pedir isso. Quando você virar um grande artista em dança ou em artes dramáticas eu que ficarei chorando de encantos com suas apresentações. Que você vai me chamar, claro.

- Besta, sabe que sempre terá um assento para você na plateia.

Digo rindo.

Pego uma batata da minha bandeja e passo no molho. Algum tempo depois Martin se senta na mesa comigo e Olivia, Eduardo estava com ele.

- Ei Lucas, se importa de pegar o ônibus hoje?

- Ônibus? Porque Martin? Vai aprontar oque garoto?

- Sabe que nada. É que Eduardo e eu estamos pensando em passar na casa da Elena, fiquei sabendo que a prima dela está aí e quem sabe eu não consigo dar uma moral pro meu amigo aqui.

Elena era namorada do meu irmão, os dois estavam juntos desde o começo do colegial.

- Prima da Elena?

- Sim, o nome dela é Dafine. Maior gata.

- Ahh sim, e porque pra mim você não dá essas moral? Do irmão mais novo você não lembra né?

- Dar eu até dou, mas é que a Dafine é bem mais velha que você irmão.

Foco o olhar em Eduardo que tinha um sorriso bobo no rosto. Sei, eu quem tenho que andar de ônibus pra esse bobão ficar com a menina no final. Não poderia ficar melhor.

- Tá bom Martin, mas oh, ainda estou esperando você arrumar uma dessas pra mim.

Digo rindo.

- Valeu irmão.

- Valeu Lucas.

Diz Eduardo. E os dois saem rindo e batendo papo.

- Dá para acreditar?

Digo olhando para Olivia.

Neste exato momento eu estou no ponto de ônibus parado feito uma porta e tudo no que eu penso é. "Não poderia ficar melhor." Melhor eu não saberia, mas pior sim, o céu começou a desabar e eu já estava encharcado até os ossos nesse bendito ponto de ônibus. Me perguntava como o céu lindo e azul de poucas horas se tornara nessa horrenda massa cinzenta e molhada que agora me ensopava todo. Já fazia quinze minutos que eu estava ali e nada de ônibus. Mais alguns minutos e eu pegava uma pneumonia. Por sorte alguém passa em uma mini van branca businando para mim. Era a mãe de Marc.

- Ei Lucas, quer uma carona? Estamos indo para casa. Minha mãe te deixa na esquina da sua rua.

Ahh, graças a deus.

Corro em direção a mini van e abro a porta, antes de entrar tiro meu casaco molhado e enrolo em um canto. A irmanzinha de Marc olhava para mim rindo.

- Oi Bruninha.

- Você está molhado.

Ela me diz com seus dois dentões a mostra. A menina usava chiquinhas que prendiam seus cachos loiros.

- Pois é, a culpa é do Martin.

Digo rindo.

- Ele é um bobão. Na próxima traz um guarda chuva.

- Mas e se não estiver chovendo?

- Ao menos você usa para dar na cabeça do seu irmão.

Ela diz rindo. Não consigo segurar e um sorriso também sai dos meus lábios.

A mãe de Marc me deixa na esquina de minha rua e ao menos agora não parecia chover tanto. Quando entrei em casa fui direto para meu quarto tomar um banho. O vapor da água quente embaçava qualquer coisa que fosse visível no banheiro. Vesti meu short de moletom e uma camiseta branca. Desci para a sala e liguei a TV para assistir uma das minhas séries. Minha mãe chegou pouco depois, me comprimentou com um sorriso e foi para o banho. Ela havia deixado algumas compras para que eu guardasse então aumentei o volume da TV para que pudesse ouvir enquanto guardava as coisas na cozinha. Estava quase na hora do jantar quando meu irmão chega, ouço conversas e percebo que ele não está sozinho. Eduardo estava com ele. Será que conseguiram algo com a tal da Dafine prima da Elena?

- Lucas, o que está assistindo?

Chega ele todo curioso. E eu já sabia o que isso significava.

- Estou assistindo Drácula, porque?

- É que daqui meia hora começa o jogo do Chicago Bulls e eu estava afim de ver.

Olho para ele com cara de desprezo.

- Tá ok, pode assistir, vou subir. Tenho que fazer minha pesquisa para a aula de dança.

- Valeu maninho.

Ele me dá um empurrão como agradecimento, tentei ignorar e simplesmente subo as escadas para meu quarto.

No meu quarto tudo estava calmo, não havia nada além do som da música do vídeo que eu assistia. O YouTube estava aberto no meu notebook enquanto o professor ensinava algumas técnicas de equilíbrio corporal que ajudariam muito na hora de tentar novos passos ou ritmos de dança. Estava parado sobre uma perna subindo e flexionando o joelho, concentrado quando alguém bate à porta.

- Lucas? Está aí?

Tá como se o barulho que vinha do vídeo já não me denunciasse.

- Como pode ver. Estou sim. O que é?

Era Eduardo. O que ele fazia ali?

- Sua mãe está te chamando para o jantar.

- Ok já estou indo. O jogo já acabou?

- Ainda não, Bulls dois sets a um.

Tá, eu não entendia muito de basquete então apenas sorri para ele. Continuei terminando meu treino e logo desceria para o jantar, mas o garoto continuou a me observar. Tentei ignorar um pouco, mas não funcionou. Olhei para ele, e logo ele caiu na real.

- Há muito tempo que você faz aulas de dança?

Ele pergunta.

- Desde que tinha nove anos.

O que já fazia bem tempo já que agora eu tinha 16.

- Parece ser algo maneiro, eu como dançarino sou ótimo quarterback. Acredite, não dá muito certo.

Eu sorrio e saio da posição que estava. Me encaminho rumo a ele.

- Não é só na dança, também faço artes dramáticas, aulas de desenho e pintura. É um ramo que me chama a atenção. Inclusive amanhã tenho que ir no galpão da oficina do Isaac pegar alguns materiais - Isaac era o professor de artes - tenho um trabalho para entregar na terça que vem.

- Interessante.

Enquanto conversavamos seguimos rumo a cozinha.

- E você, faz algo além de ser capitão do time de futebol?

- Eu sou bom em videogames. Isso conta?

Um leve sorriso foge pelo canto da minha boca. Olho bem para ele.

- Quarterback?!

- Quarterback.

Ele repete.

O jantar cheirava bem. A mesa estava servida de purê de batatas, bolo de carne, arroz e uma especialidade da minha mãe, macarrão ao óleo e alho. Nos sentamos e comemos. Meu pai não estava, havia trabalho acumulado na empresa e chegaria mais tarde. Depois disso eu, Martin, Eduardo e até minha mãe nos sentamos para terminar de ver o jogo do Chicago Bulls que acabaram ganhando de três sets a dois. Enquanto assistíamos minha mãe trouxe para gente uma mousse de limão que comemos até não aguentar mais.

Estava cansado e estava me levantando para ir para cama quando Eduardo salta do sofá dizendo para meu irmão.

- Então cara, acho que já vou indo, está meio tarde e amanhã temos escola de novo. Me leva até a porta?

- Levo sim cara. Espera só eu terminar minha mousse.

Corto caminho no meio da sala e vou rumo as escadas.

- Vou indo dormir gente, boa noite.

- Boa noite filho.

- Até mais irmão.

- Ei, Lucas, boa noite. Tu é legal cara, durma bem.

Paro no meio do caminho e me viro para ele. Tá, estranho que após tantos anos de amizade com meu irmão só agora ele tenha percebido isso.

- Boa noite, quarterback.

Subo as escadas e entro para meu quarto, tiro toda minha roupa e visto apenas a parte de baixo de meu pijama. Depois de deitado fiquei ali, calado pensando na vida, no dia, nas coisas. O sono estava quase me tomando quando uma última coisa vem a minha mente... quarterback.

Comentários

Há 5 comentários.

Por Sammy Fox em 2016-03-24 14:30:32
Muito bem escrito
Por Fla Morenna em 2016-03-23 14:41:26
Interessante...
Por em 2016-03-22 04:20:24
Amando a história, ansioso pela continuação. <3
Por Um alguém em 2016-03-20 16:23:43
Gostando? Muito! Está ótimo, acompanhando!
Por Nicolas2 em 2016-03-20 16:17:28
Adorei, simplesmente fantastico! Tá pra sentir que essa historia promete.