Um dia quase sem fim

Conto de J.N.S. como (Seguir)

Parte da série Ligados ao Passado

Nuno permaneceu sentado no sofá durante toda a cirurgia de Ender. A sensação que sentia era de estar parado no tempo, cada respiração sua se tornara uma eternidade. Os seus pensamentos iam tão a fundo no seu subconsciente que seus sentidos haviam, simplesmente, adormecido. Todo o som costumeiro do hospital já não estava presente, as luzes das lâmpadas que iluminavam o corredor apenas tremeluziam como uma chama fraca de uma vela. Tamanha era sua distração que nem percebera o gosto de sangue que sentia em sua boca, devido ter mordido seu lábio com uma força além da que estava habituado.

Ele somente começou a despertar de seus próprios pensamentos, depois de alguém dar uma leve sacudida em seu ombro. Ao olhar em direção a pessoa que o sacudia, pode ver que alguém falava com ele, mas tudo que escutou foram fragmentos de palavras.

- [...] cirurgia finalizada [...] alguns problemas [...] manter em sedação [...] observação [...] UTI [...] o conhece?

Nuno percebeu que aquela estranha pessoa havia terminado de falar e esperava uma resposta sua, e por mais que tenha conseguido ordenar os fragmentos e compreender que a cirurgia havia acabado e que devido as intercorrências, a equipe optou por manter Ender em sedação, e que ela iria ser encaminhado para a UTI para observação. Nuno ainda não conseguia articular suas palavras.

- Tudo bem, Dr. Bernardo! Pode deixar que eu converso com ele. Pode prosseguir com o encaminhamento. Depois entro em contato com você.

Nuno estava absorto demais para reagir, mas ao ouvir a voz de Nívea, sentiu uma onda revitalizante preencher seu corpo. Isso foi o bastante para que pudesse ao menos esboçar um sorriso em direção ao cirurgião.

- Obrigado Bernardo! Pela sua preocupação comigo e pelo seu excelente trabalho durante a cirurgia.

- O que é isso rapaz? Não há de quê. Na verdade, me senti nostálgico com essa cirurgia. Me lembrou do meu primeiro plantão... Presenciei um caso similar. Eu era bem jovem na época, sabe? Então...

- Desculpe Dr. Bernardo, mas acho que seu trabalho ainda não acabou – Nívea o interrompeu.

- Bem... Sim... Claro. Melhor eu ir mesmo, até depois.

Nívea sorriu em direção ao médico de forma claramente forçada. Ela era conhecida pelo seu temperamento nada amigável enquanto algum trabalho não era concluído. Quando o médico estava longe o suficiente ela se sentou ao lado de Nuno, que ficou olhando a cena que já estava acostumado a presenciar.

- Sabe Nívea? Acho que é exatamente por isso que ninguém nunca coloca seu nome no amigo secreto ou em qualquer outra festividade que realizamos – Nuno sorriu para ela enquanto se recostava no sofá.

- Se festa salvasse vida eu teria escolhido a carreira de promotora de eventos... – Nívea retrucou.

- Você faria um enorme sucesso animando velório – Nuno olhou para Nívea esperando mais algum comentário áspero como resposta. Porém ela apenas o olhou por cima de seus óculos.

- Deixamos nossa troca de farpas para outro momento. Temos assuntos mais importantes para tratar agora – ela falou enquanto depositava sua mão direita sobre o joelho de Nuno – E outra, se eu não tivesse interrompido aquele homem, ele ainda estaria aqui falando de sua história. Acredite!

- É difícil imaginar que vocês dois já tenham tido um caso – Nuno estava tentando desviar a atenção de Nívea com assuntos que ele acreditou que a irritaria. Entretanto, ela apenas se limitou a dar de ombros, com uma expressão de quem diz “Todo mundo erra em algum momento da vida”.

- Sem enrolação! Quem é o rapaz? – Nívea olhou diretamente para os olhos castanhos com tons purpura de Nuno.

- Já vi que não vou conseguir fugir de você...

- Que bom que percebeu.

- Como eu já disse o nome dele é Ender Aiyra...

- E o conhece desde a infância... Disso eu me lembro. Sou velha, mas não tenho Alzheimer – Nívea interrompeu – Quero saber os, “mas”.

Nuno arqueou suas sobrancelhas e suspirou.

- Nossos pais eram colegas de trabalho. Desenvolviam e promoviam algumas tecnologias voltadas para a área da saúde. Bem... Isso antes de meus pais morrerem. Após isso os negócios ficaram a cargo do pai de Ender e do meu tio, já que ele foi colocado pelo testamento como supervisor das minhas ações até minha maior idade. Isso foi quando eu tinha uns 12, 13 anos. Nem lembro ao certo, mas a realidade é que o conheço desde quando era criança... Sempre estávamos na casa um do outro e isso se manteve até cerca dos meus 16... – Nuno hesitou, tentando recordar-se um pouco mais – Não... 17 anos. Após isso, eu me mudei para outra cidade e não o encontrei mais ou mantive contato.

- Até agora – complementou Nívea.

- Ate agora... – repetiu Nuno.

- E qual foi o motivo de ter cortado sua relação e contato com ele?

Nuno deu de ombros.

- Não me recordo, simplesmente aconteceu e pronto – Tudo o que passava na cabeça de Nuno nesse momento era “Não insista, não insista, não insista”.

- Certo... – Nívea optou por não insistir. Ela estava começando a sentir a tensão que Nuno estava ficando, apenas pelos músculos de sua mandíbula que indicavam que ele estava trincando os seus dentes – Enfim... Eu me informei com a equipe que o realizou a cirurgia dele, e ele vai ficar por mais ou menos uma semana em observação. A previsão é de que ele acorde em quatro ou cinco dias, isso dependerá dos resultados da tomografia. Apesar de nenhum dano físico ser visível no seu crânio e face, ele perdeu muito sangue o que pode ter causado algum dano cerebral. Espero que até lá você esteja preparado para lidar com isso. Você sabe que nossos problemas pessoais no ambiente de trabalho são secundários. Não espere que irei interceder por você mais uma vez, meu tempo de ser babá de iniciantes já passou.

Apesar das palavras de Nívea serem ríspidas, Nuno se sentiu reconfortado. Ele sabia que todo o exterior desagradável de Nívea era apenas uma carapuça para ela esconder seus sentimentos. Em todos os anos que se conheciam, ela sempre o ajudou e cuidou dele. Sendo assim, ele sorriu para ela e apenas balançou a cabeça confirmando que havia entendido o recado.

- Estou indo agora, querido. Você também irá embora agora? – Nívea perguntou colocando sua mão no rosto de Nuno.

- Irei sim – Nuno colocou sua mão sobre a de Nívea e a puxou até seus lábios – Obrigado por hoje.

Nívea sorriu e se levantou.

- Pode contar comigo para o que precisar. Só não abuse da sorte. Okay?

- Okay – Nuno também se levantou e a acompanhou até o elevador, onde se despediu dela.

Após isso, Nuno se dirigiu até o vestiário para trocar de roupa. Ele desejava passar na UTI para olhar uma última vez naquele dia para Ender, mas preferiu deixar para o dia seguinte. Ele sentia que já tinha sido o suficiente para um dia, e tudo que desejava era ir para casa e tomar um banho quente.

Ele demorou mais do que o habitual para vestir sua roupa, e até mesmo se irritou ao dar nós nos cadarços de sua bota tipo coturno esportivo. Seu estilo era variável, ele gostava de mesclar estilos de roupa diferentes. A única regra que ele seguia, era com relação aos tons de cores, sendo sempre escuros.

Depois de pegar sua jaqueta e capacete, ele se dirigiu para o estacionamento em direção a Rubeos, uma moto esportiva de cor preta, com detalhes prata, que para Nuno, representava todo o seu sentimento de liberdade.

Era irônico o fato dele apreciar o estilo esportivo em praticamente todos os seus bens materiais. Nuno nunca foi o tipo de pessoa que pratica esportes radicais ou o tipo de pessoa que procura sentir adrenalina se colocando em perigo. Muito pelo contrário. Seu jeito de ser, sempre foi por meio de ações metódicas e premeditadas. Porém, em algum momento da sua vida, ele simplesmente se cansou de viver sobre as regras.

Nuno chegou rapidamente ao prédio em que morava, sem dúvida alguma ele furou alguns sinais de trânsito, e em seu subconsciente rezava para que sua placa não tivesse sido registrada.

Em sua mente, todos os diálogos já estavam programados. Primeiro ele encontraria, Arnaldo, o porteiro que sempre perguntava como havia sido seu plantão. Logo após, ele chegaria ao elevador ou escadas, subiria até o nono andar. Chegando ao seu apartamento, assim que colocasse sua chave na porta, Coin, o cachorro de seu vizinho começaria a latir. Quase de imediato, Luan apareceria na porta e começaria a puxar assunto com ele.

Assim como imaginou, Arnaldo assim que vira Nuno deixar sua moto no estacionamento já se posicionou bem no meio da entrada, pronto para recepcioná-lo. Ao ver isso, Nuno inspirou profundamente e expirou por três vezes, enquanto pensava:

“Muito bem! Vamos lá... É só fingir e falar bem rápido sem dar espaço para perguntas”

Quando Nuno chegou no batente da porta, antes mesmo que Arnaldo o cumprimentasse ele adiantou todo o diálogo que havia imaginado.

- Boa noite Arnaldo. O tempo está ótimo hoje, embora pareça que vai chover. O plantão foi uma loucura. Sua família está ótima, imagino. Como a minha está? Estão ótimos, já morreram quase todos. Vou subir pela escada, faz bem para a saúde. Tchau! – Cada frase que ele soltou eram dois degraus que subia. Ao chegar ao final da frase, ele já havia passado por Arnaldo, atravessado o saguão e começado a subir as escadas.

Enquanto isso tudo que Arnaldo pode fazer, foi olhar para Nuno e ficar segurando as encomendas que haviam chegado para ele.

Quando chegou no seu andar, Nuno se preparou para o segundo embate da noite. Assim que colocou sua chave, começou a ouvir os latidos e passos se aproximando da porta de seu vizinho. Talvez pelo esforço de subir as escadas, ou talvez pelo nervosismo em conseguir abrir a porta antes que seu vizinho puxasse os assuntos intermináveis com ele, o suor começou a escorrer pela sua testa.

“Que porta desgraçada! Abre infeliz!”. Nuno pensou ouvindo os passos se aproximando cada vez mais. Quando ouviu o clique da porta de seu apartamento se abrindo, seu vizinho apareceu.

- Boa noite Dr. Nuno, como vai? – Luan, era um rapaz da mesma idade que Nuno. Era ruivo e possuía olhos verdes e sardas pelo corpo. Nuno sabia desse detalhe, pois estranhamente, sempre que ele ia falar com Nuno estava sem camisa, e frequentemente fazia poses para mostrar os seus músculos. De modo geral, era uma pessoa de boa aparência, mesmo que a personalidade fosse um tanto quanto genérica.

Nuno suspirou e se virou lentamente, forçando um sorriso.

- Boa noite Luan! Estou bem, obrigado por perguntar – Nuno fungou duas vezes e olhou de um lado para o outro – Sentiu isso? Cheiro de bosta... Acho que seu cachorro fez sujeira. Melhor ir limpar.

Luan franziu as sobrancelhas e olhou para dentro de seu apartamento, procurando alguma evidência, mas tudo que encontrou foi Coin, deitado no sofá.

- Não estou sentindo cheiro de nad...

Nesse momento, Nuno aproveitou a distração de Luan e entrou no seu apartamento, fechando rapidamente a porta e interrompendo a fala de seu vizinho.

“Plano concluído com sucesso!” Nuno pensou enquanto encostava sua testa na porta.

Após trancar a porta, Nuno acendeu as luzes da sala e se dirigiu imediatamente para o banheiro. No trajeto ele começou a rir ao relembrar das expressões confusas que deixou nas pessoas que encontrou. E por um momento se sentiu culpado por ter sido grosseiro.

“Ahh, tanto faz! Depois eu me desculpo com eles”.

Nuno tirou sua roupa e ligou o chuveiro no ponto mais quente que sua pele aguentasse. Não que o clima estivesse frio, mas ele havia criado esse hábito de tomar longos banhos quentes desde sua infância. Para ele, era durante esses momentos que sua mente ficava o mais clara possível, e frequentemente gostava de pensar em soluções de alguns problemas do trabalho enquanto a água escorria pelo seu corpo. Contudo, somente um “problema” ocupava sua mente.

“Bem... Finalmente consegui chegar em casa, mas o grande ponto começa agora... O que eu devo fazer com aquele cara?”

Nuno terminou seu banho e não chegou a nenhuma solução. Por fim, desistiu de pensar mais sobre o que iria acontecer no futuro. Tudo o que queria após o banho era poder se deitar em sua cama e dormir. E isso quase aconteceu...

Ao chegar no seu quarto e se jogar no colchão, sem ao menos se vestir, finalmente pensou que conseguiria silenciar sua mente, se não fosse pelo som de seu celular tocando insistentemente na sala.

“Definitivamente... Acho que hoje não é meu dia de sorte”.

Nuno suspirou e juntando todo o resto de suas forças se levantou e foi de encontro ao seu celular. No trajeto, ele torcia para que fosse engano. Quando finalmente alcançou o celular que havia deixado na mesa de centro de sua sala, ele desejou não ter se levantado de sua cama. Ele permaneceu parado olhando a tela do celular brilhar e apagar decidindo se atendia ou não. Quando parou de tocar, ele abriu as chamadas perdidas e viu que mais de cinco chamadas haviam sido realizadas.

“Talvez seja melhor eu retornar à ligação ou talvez eu deva simplesmente fingir que fiquei surdo. A segunda opção me parece mais tentadora...”

Enquanto Nuno se prendia mais uma vez nos seus pensamentos o celular tocou novamente o interrompendo. E dessa vez, mesmo que a contragosto, ele resolveu atender.

- Oi Hyang. O que houve?

- Amor? Onde estava? Te liguei e mandei mensagem várias vezes...

- Estava no banho. Estou bem, mas estou cansado, vou dormir agora – Nuno ainda estava no modo automático que usou para lidar com Arnaldo e Luan. Para ele, tudo o que menos precisava era ficar de conversa com quem quer que fosse a pessoa.

- Estou indo para sua casa, chego em dez minutos.

Ao ouvir isso, tudo que Nuno conseguiu pensar foi:

“Plano fracassado com sucesso!”

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