Espero que seja o suficiente para você1

Conto de J.N.S. como (Seguir)

Parte da série Ligados ao Passado

Assim como Hyang havia falado durante a ligação, ele realmente chegou na casa de Nuno, em exatos dez minutos. O prédio em que morava ficava apenas a 4 quadras de distância, então isso facilitava para que ele fosse para a casa de Nuno sempre que sentia vontade.

Ao chegar à portaria ele cumprimentou Arnaldo, que assim que o viu se apressou para pegar as encomendas que Nuno havia ignorado.

- Boa noite Sr. Hyang! Está indo ver o Sr. Nuno?

Hyang sorriu, diminuindo ainda mais a brecha de seus olhos já estreitos, devido sua descendência japonesa.

- E quem mais eu iria visitar aqui Arnaldo?

Arnaldo sorriu um pouco sem jeito pela pergunta tola que havia feito.

- Verdade... Então, já que o Sr. está subindo, poderia levar essas encomendas? Chegaram hoje de manhã para o Sr. Nuno. Eu ia entregar pessoalmente a ele, mas ele subiu tão apressado que nem consegui entregar.

- Claro, entrego sim. Pode deixar.

- Obrigado.

Arnaldo entregou as encomendas para Hyang que se encaminhou para o elevador. Ele acreditava fortemente na sua crença de poupar energias, então sempre optava pelo método menos cansativo. Em outras palavras, ele era um preguiçoso autêntico.

Enquanto Hyang não chegava, Nuno voltou para seu quarto para vestir alguma coisa. Como não estava calor, ele apenas pegou uma bermuda simples. Após vesti-la ele olhou para a sua cama com um olhar de remorso e resmungando se dirigiu para a sala para esperar Hyang.

Nuno quase adormeceu no sofá, quando estava ficando inconsciente ele ouviu a campainha tocar, e graças a isso que ele pode se levantar para abrir a porta, se Hyang tivesse somente chamado pelo seu nome ou batido na porta, talvez ele não ouvisse. Assim que abriu a porta, Hyang sorriu e pulou em sua direção para abraçá-lo. Como Hyang era uns 20 cm mais baixo, ele teve que erguer seus braços para abraçar Nuno. Devido a esse movimento repentino ele colocou o peso do seu corpo sobre Nuno, que se desequilibrou e deu alguns passos para trás segurando Hyang com uma mão, enquanto usava a outra para achar um ponto de equilíbrio.

- Estava com saudades de você – Hyang falou.

- Hum... – Nuno se limitou a dizer.

- Nossa... Você não parece estar muito animado hoje. Aconteceu alguma coisa? – Hyang se soltou de Nuno e voltou para pegar algumas sacolas que havia deixado na porta.

- Nada demais. Apenas cansado – Nuno se sentou no sofá e cruzou seus braços sobre o peito, enquanto colocava seus pés sobre a mesa de centro.

- Imagino... Ainda bem que resolvi vir então. Assim posso cozinhar para você. O que acha? Posso fazer aquele prato que você comeu no dia que nos conhecemos.

Enquanto falava, Hyang já retirava alguns ingredientes das sacolas que havia trazido e depositava sobre o balcão da cozinha de Nuno. Seu apartamento era pequeno, possuindo apenas um quarto, um banheiro, uma sala/cozinha e uma varanda. Porém esse não era o estilo de casa que ele gostava. Para ele quanto maior, melhor, mas desde que começou a trabalhar e seu tempo reduziu drasticamente, e a praticidade de limpar um apartamento menor se sobressaiu aos seus desejos. Apesar disso, ele sabia como customizar cada cômodo, e apesar de possuir apenas móveis essenciais, eles seguiam uma lógica de cores e padrão claramente definidos, o que passava a impressão de que o aparamento era maior do que aparentava.

Nuno olhou para Hyang, mas não respondeu as perguntas que haviam sido dirigidas para ele. Depois de mais de oito meses de namoro, ele já havia aprendido que mesmo que dissesse “não”, ainda assim Hyang faria o que desejasse. Afinal, ele era extremamente orgulhoso de sua culinária, apesar de ter 23 anos, já era dono de um restaurante de porte médio focado em culinária oriental.

- Arnaldo me entregou algumas encomendas que você não pegou na portaria. Deixei-as no canto da porta – Hyang falava enquanto começava os preparos dos alimentos.

- Hum... Obrigado! Depois eu olho e vejo do que se trata.

- Só mesmo você para não lembrar do que se trata sua própria encomenda - Hyang sorriu enquanto falava.

- Sim... – Nuno estava em um estado sonolento demais para continuar conversando e aos poucos ele entrou em um sono profundo, enquanto pensava em que ponto seus sentimentos haviam começado a se extinguir por uma pessoa tão amável quanto Hyang.

Hyang falou por um tempo sem perceber que Nuno havia dormido. Ele contava como havia sido seu dia no restaurante, e como tinha acontecido algumas situações engraçadas com alguns clientes que pediram pratos apimentados demais para o paladar das pessoas do ocidente. A cada história que contava ele rapidamente manuseava os utensílios de cozinha que havia comprado para Nuno de presente, apesar de somente ele utilizá-los. Em meio as suas histórias, não percebeu que Nuno havia dormido. Somente quando perguntou mais uma vez como havia sido o seu dia e ter ficado sem nenhuma resposta, que ele resolveu ir até Nuno e conferir se ele estava dormindo ou apenas o ignorando.

Ao constar que se tratava da primeira opção, ele sentiu-se aliviado. Desde algumas semanas que ele sentia como se estivessem se distanciando, e ele temia que um dia essa distância se tornasse grande demais. Desde criança sempre gostou de pensar positivo com relação a tudo que decide fazer, e mesmo quando algo não dava certo, ele optava por se divertir da situação, ao invés de se frustrar. Porém, desde que começara um relacionamento com Nuno, ele constantemente se sentia insuficiente, pensava que não era educado o suficiente, que não era divertido o suficiente, que não era atraente o suficiente.

Toda vez que ele olhava para Nuno, se perguntava o que podia oferecer para que não fosse abandonado. Em meio aos seus pensamentos, ele se abaixou e encostou a mão na bochecha dele, e o acariciou levemente, chegou a sentir um pouco de cócegas em seus dedos, visto que Nuno optava por manter sua barba por fazer. Sorriu ao vê-lo inspirar profundamente, e em sua cabeça não era possível evitar de compará-lo a uma criança que adormecia no sofá depois de ficar até tarde assistindo televisão. O que o levou a pensar

“Apesar de parecer uma criança, não posso bancar o paizão e te pegar no colo e levar para a cama... O que é uma pena...”. Sua visão ficou levemente embaçada enquanto concluía seu pensamento “Parece que não sou mesmo o suficiente para você”.

Nuno não era tão alto, tinha apenas 1,82cm, mas comparado a Hyang, ele era um gigante. Dessa forma, ele apenas secou seus olhos e foi ao quarto para pegar um cobertor. Ao retornar ele cobriu e beijou levemente a testa de Nuno, após isso ele voltou para a cozinha e se apressou em terminar o jantar.

No silêncio em que se encontrava o apartamento, os sonhos de Nuno o afogavam, imagens distorcidas de momentos de sua adolescência apareciam de forma aleatória, sem estabelecer uma sequência de tempo entre elas, parecia que alguém adiantava, retrocedia, pausava e adiantava novamente os momentos e sua vida. Estranhamente, apesar do ritmo caótico em que tudo aparecia, todas as imagens possuíam uma qualidade de detalhes aterrorizante, até mesmo os sentimentos que vivenciara voltavam à tona.

Quando finalmente conseguiu despertar, sentiu-se como se estivesse saído de um longo mergulho, sua pulsação e respiração estavam acelerados, de modo que achou que estava prestes a ter um ataque cardíaco. Ao olhar o seu redor, ele sentiu uma leve sensação de que algo faltava, mas não percebeu o que era de primeiro momento. Ainda ofegante, ele se levantou e sentiu suas pernas doloridas devido ter ficado com elas estiradas sobre a mesa de centro por tanto tempo. Para que a rigidez de seus músculos se atenuasse ele se alongou um pouco, e resolveu beber um pouco de água.

Seguiu de cabeça baixa para a cozinha sem perceber uma tigela de porcelana branca depositada na mesa próxima ao balcão da cozinha. A cada passo que dava, o sonho que acabara de ter se tornava cada vez mais intangível, de modo que já não conseguia lembrar com exatidão o que sonhara. Enquanto bebia sua água, olhou mais uma vez o apartamento que se encontrava iluminado apenas pela luz da lua que penetrava pela porta de vidro da varanda. Nesse momento, a tigela reluziu levemente a luz, o que fez com que sua atenção fosse despertada, ao se aproximar ele viu que ao lado tinha um cartão, e somente então ele soube o porquê de estar sentindo falta de alguma coisa.

Rapidamente ele se dirigiu ao quarto para ver se encontrava Hyang, porém a cama estava do mesmo jeito que ele havia deixado. Sendo assim, ele voltou até a mesa e pegou o cartão para ler o que havia escrito.

“Desculpe por não ter te acordado. Achei melhor deixar você dormir, me pareceu que estava muito cansado. Preparei alguns gyozas* para você. Provavelmente não vão estar tão bons quanto quando foram feitos, mas basta esquentá-los no microondas. Os molhos ficaram na geladeira. Espero que seja o suficiente para você! Beijos!”

Ass: H. H.

Nuno sorriu ao ler o bilhete e se sentiu culpado por não ter dado tanta atenção para Hyang nos últimos tempos. Ele olhou para um calendário de mesa e contou os dias até chegar em um final de semana que estaria livre e que poderia levar Hyang para um encontro, como faziam no início da relação. Enquanto planejava o que faria no dia que encontrara, ele esquentou os gyozas e os comeu fervorosamente, enquanto pensava em uma maneira que fosse boa o “suficiente” para recompensar aquele delicioso prato.

Informação:

• Gyoza são pastéis com recheio de carne ou vegetais, bem semelhantes aos de aniversário, só que em mais gostosos. Super recomendo!

Comentários

Há 0 comentários.