CAP I - Sentimentos do passado ressurgem

Conto de J.N.S. como (Seguir)

Parte da série Ligados ao Passado

Era admiravelmente um dia comum no plantão do Hospital Santa Mônica em Vila Velha - ES*. Estranhamente, neste dia em especial, não ocorreu nenhum alvoroço ou situação inusitada que Nuno Reynard tivesse que lidar.

Sentado no banco da praça de alimentação do Hospital, ele lia por meio de seu celular as notícias cotidianas daquela tarde, enquanto esperava que seu café estivesse pronto. Não que ele gostasse de café, contudo, uma dose de cafeína o ajudaria a manter-se alerta para alguma ocasião que surgisse.

- Ann.. é... Senhor? Dr.? Ann... Seu café, como havia pedido.

Nuno sorriu, já havia se habituado a essa imprecisão de nomenclatura que as pessoas encontravam ao falar com ele no hospital. Ao estar sério, aparentava ter uns 24 anos, ao sorrir, não mais que 20 anos. Sempre aparentou ser mais novo do que realmente era, e mesmo tendo 27 anos, seus traços faciais ainda permaneciam com um toque de pureza juvenil.

Olhando a jovem garçonete ele guardou seu celular e ainda sorrindo pegou a xícara que ela trouxera para ele.

- Tudo bem! Mas... Temos quase a mesma idade, então não sou um Senhor, e ainda não tenho um Doutorado, então não precisa me chamar de doutor. Só me chame de você ou Nuno mesmo. Não há problemas!

A garçonete ao ouvi-lo dizer isso se permitiu relaxar e esboçar um leve sorriso, não estava habituada com esse tipo de tratamento, os médicos e doutores eram tão severos, sérios e estressados que a deixavam constantemente tensa.

- Claro Sen... Desculpe! Nuno. Deseja mais alguma coisa? Temos tortas recém-saídas do forno, se quiser posso trazer uma para você imediatamente – Nuno sorriu ao ver que ela havia relaxado.

A garçonete não conseguiu conter um leve suspiro ao presenciar o sorriso de Nuno. Ele não era algo comum de se ver, um corpo definido e uniforme, destacando-se suas pernas longas, com panturrilhas e coxas sendo uma de suas partes mais provocativas. Nuno sabia quais seus pontos fortes, e gostava de exibi-los independente da pessoa. Ele sabia que seus lábios grossos, macios e levemente vermelhos esbanjavam uma certa sensualidade.

- Não precisa se preocupar, vou ficar somente com o café! Daqui a alguns minutos meu plantão acaba de toda forma – Nuno segurou a xicara e sentiu seus dedos formigarem com o calor.

A garçonete estava parada enquanto segurava a bandeja contra seu peito, pensando em mais alguma coisa que poderia falar, somente para manter o diálogo com Nuno. Porém, antes que conseguisse pensar em algo, ela ouviu um som de alarme vindo do setor de emergência solicitando que a equipe se reunisse imediatamente. Isso a trouxe para a realidade, mas antes que se desse conta, Nuno já havia se levantado e saído em direção ao corredor que levava em direção ao setor de urgência e emergência.

Tudo o que ela ainda pode ver de Nuno, foi seu dorso e o movimento de suas mãos que pareciam limpar as lágrimas de seus olhos depois de beber todo o café de uma vez só. Para ela, olhar para esse homem era como brincar com uma caixinha de surpresa, sempre havia algo novo para ser observado e apreciado. Dentre suas descobertas mais recentes, suas favoritas eram o hábito que ele possuía de morder seu lábio inferior toda vez que se distraia com alguma coisa, seus olhos que ficavam extremamente pequenos quando sorria e o arquear de sobrancelhas que sempre fazia quando estava conversando com algum membro de sua equipe, indicando que ele estava discutindo alguma coisa. Por fim, tudo o que ela pode fazer foi suspirar mais uma vez e se amaldiçoar por ter demorado tanto em pensar em alguma coisa que prendesse a atenção de Nuno o suficiente para que ela conseguisse uma brecha para chamá-lo para sair.

Ao se encaminhar para a sala da emergência, Nuno encontrou uma das enfermeiras que compunham sua equipe que também se dirigia para a emergência.

- Nívea! – ele a chamou, meio embolado devido sua língua ter queimado – Sabe o que houve?

Nívea o olhou por cima de seus óculos, que aparentemente nunca ficavam na posição correta. Em mais de uma ocasião Nuno já tentou colocá-los no ponto certo do nariz dela e sempre recebeu um tapa em suas mãos como gratidão.

- Aparentemente... – ela fez uma pausa enquanto girava um frasco de algum medicamento, buscando o nome - Uma Parada Cardiorrespiratória (PCR). E fora isso, uma possível hemorragia de membro inferior direito com duas lacerações profundas, além de provável contusão em algumas costelas.

- Acidente automobilístico? – Nuno confiava cegamente em Nívea, ela mesma o ensinou diversos procedimentos no começo de sua residência e isso fez com que ele adquirisse um enorme orgulho de poder trabalhar na mesma equipe.

- Provavelmente... ainda não verifiquei todas as informações com a equipe que o resgatou, mas resolvi passar na farmácia e pegar alguns medicamentos para o caso de precisar.

- Sabe o nome?

- Mauricio Lacerda, idade 28 anos, endereço não contava nos documentos, esse é o que apresenta a PCR – ela entregou a ficha para que Nuno pudesse ler as informações – Quanto ao outro, que apresenta a hemorragia, não estava com nenhum documento no momento. Além disso, quando a equipe chegou ao local já se encontrava inconsciente e ninguém que estava perto o conhecia.

- Isso não é uma situação muito comum...

- Querido! É seu plantão, nunca acontece nada de normal – Nívea o olhou mais uma vez por cima dos óculos enquanto dava um leve sorriso – Não vejo a hora de conseguir minha aposentadoria para me livrar de seu pé frio.

- Pois é... Parece que herdei essa característica de você. Pelo que me lembro quando estava durante minha residência, todos os casos mais complicados eram no dia que você estava – Nuno retrucou enquanto arqueava suas sobrancelhas.

- Que seja! Vamos logo pra emergência, já estou ouvindo as sirenes.

Todos os materiais já estavam preparados e a equipe já estava disposta a espera dos pacientes. Quando os socorristas adentraram a sala da emergência Nuno rapidamente já se encaminhou para recepcioná-los e realizar uma rápida análise do quadro clínico dos pacientes. Porém, assim que viu o paciente na segunda maca, ele parou e ficou alguns segundos parado, apenas olhando para aquela pessoa inconsciente.

Nívea vinha atrás dele e não conseguiu evitar de esbarrar levemente. Ela já se preparava para dizer algo com ele, mas quando olhou para a expressão em seu rosto, ela percebeu que algo não estava certo. Contudo, depois de mais de 30 anos de serviço hospitalar, ela possuía experiência suficiente para se adaptar a eventos inesperados e prontamente assumiu a posição de Nuno na recepção dos pacientes.

Depois de alguns segundos, o lado racional de Nuno finalmente agiu e ele olhou para Nívea, que apenas sinalizou com a cabeça para que ele fosse para a sala vermelha. Rapidamente a equipe se dividiu entre os pacientes e iniciaram as intervenções prioritárias. A equipe de socorristas já havia conseguido estabilizar o paciente que teve a PCR, mas o outro que estava com hemorragia, ainda se encontrava em um estado grave.

- Nuno, preciso que você faça a solicitação do bloco cirúrgico para encaminhar esse paciente com urgência, ele precisa de uma transfusão de concentrado de hemácias e essas lacerações aparentam ser mais problemáticas do que o que nos foi descrito.

- Claro Nívea. Bem... Vejamos... Onde está a ficha? – Nuno estava estranhamento perdido em meio a situação, de modo que alguns membros da sua equipe já o olhavam estranho.

- Nuno! – Nívea o chamou com um tom grave e severo – Se recomponha imediatamente. As fichas estão com você. Te entreguei quando estávamos vindo para cá. Já percebi que você conhece esse paciente, mas isso não importa agora. Apenas faça o seu dever – Nívea deu as costas para Nuno e se dirigiu para os demais da equipe – Vocês já sabem o que deve ser feito. Vamos! Rápido.

Graças as palavras de Nívea, Nuno conseguiu reestabelecer a ordem em seus pensamentos e rapidamente realizou a solicitação ao bloco cirúrgico para que a sala fosse preparada.

Após a sala de cirurgia estar pronta, Nuno e Nívea se dirigiram com o paciente para o elevador. Nuno seguia extremamente silencioso durante o trajeto, até que Nívea não suportou mais e o indagou:

- Muito bem... Quem é ele e de onde o conhece?

Nuno pigarreou antes de começar a falar.

- O nome dele é Ender Aiyra, o conheci durante minha infância. Já faz um bom tempo que não o via e preferia que tivesse continuado assim... – Nuno fez uma pausa – Enfim... isso não importa agora. O que importa é salvá-lo.

- Sim – Nívea queria perguntar outras coisas, mas optou por não aprofundar no assunto. Ela já conhecia Nuno por tempo suficiente para saber quando ele não queria falar sobre alguma coisa. E insistir apenas o deixaria irritadiço.

Nuno e Nívea após deixarem Ender no bloco cirúrgico se dirigiram novamente para a sala vermelha para verificar o outro paciente. Chegando na sala, Nuno checou mais uma vez o quadro do paciente, mesmo que sua equipe já tivesse passado todas as informações e solicitou uma vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do hospital. Após isso ele se encaminhou para a sala de descanso e sentou-se no sofá.

- Tudo bem contigo Reynard? – perguntou Selena, uma velha amiga da faculdade que Nuno frequentou e que também trabalhava no mesmo setor que ele.

- Selena! Eu detesto quando você me chama de Reynard...

- Sério? E tem algo que você goste por acaso? – Selena perguntou com um ar de sarcasmo enquanto se sentava ao lado de Nuno.

- Se eu dissesse sim, você não acreditaria de qualquer forma, não é? – Nuno deu um leve sorriso.

- Perfeitamente. Então... O que houve? – Selena colocou seus pés no colo de Nuno enquanto perguntava.

- Velhos fantasmas do passado que voltam para me assombrar, nada mais.

- Okay! Vou fingir que entendo sobre o que isso se trata...

- Não quero falar sobre isso, okay? Está chegando ou indo embora?

- Eu? Por enquanto estou desfrutado do seu confortável colo, mas daqui a meia hora irei para casa. E você? – Selena esticou as pernas e procurou uma posição mais confortável enquanto se recostava no braço do sofá.

- Meu plantão já acabou, mas tenho uma coisa para resolver antes de ir... Então se me der licença... – Enquanto falava Nuno retirava as pernas de Selena de cima de seu colo – Estou indo.

- Tchauzinho, amore – Nuno levantou-se e abaixou seu rosto para dar um beijo na bochecha de Selena.

- Até...

Nuno voltou ao bloco cirúrgico para receber notícias sobre como a cirurgia de Ender estava prosseguindo. Porém, ao chegar no setor, ele viu uma movimentação da equipe, que ele já estava habituado a reconhecer. Ele rapidamente se dirigiu para a sala de espera do bloco cirúrgico que dispunha de uma vidraçaria que permitia as pessoas que desejassem acompanhar a cirurgia de algum familiar sem entrar na sala de cirurgia e por acidente contaminar algum material.

Por mais que estivesse acostumado a presenciar as manobras de Reanimação Cardiopulmonar (RCP), ele paralisou ao ver que o alvo da RCP era Ender. Ele observou atentamente cada etapa que a equipe realizava, como se ele próprio estivesse realizando as manobras. Ele não ouvia, nem se movia, apenas acompanhava com seus olhos todos os mínimos detalhes que aconteciam diante dele.

O vidro era grosso o suficiente para não permitir que ele ouvisse o que se passava na sala. Entretanto, era quase como se ele ouvisse os diálogos da equipe.

- Prepara uma ampola de adrenalina – Parecia dizer um Senhor, que aparentemente era o cirurgião.

Nuno não percebeu quando exatamente os pensamentos surgiram, mas cada vez mais um pensamento se repetia em sua mente.

“Vamos lá! Você já passou por um monte de problemas de muitas formas possíveis, e não fraquejou em nenhum deles. Não é de seu perfil não lutar pela sua vida, então vamos lá, lute, lute, lute...”

Nuno já estava quase atingindo o ápice de seu nervosismo. Até sua respiração parecia ter cessado. Foi então que ele viu no monitor cardíaco uma leve ondulação, que aos poucos crescia cada vez mais. Quando percebeu que o quadro havia sido revertido Nuno soltou sua respiração de uma vez e encostou suas mãos no vidro, enquanto inspirava profundamente.

Nuno piscou algumas vezes, e percebeu que seus olhos estavam marejados, o que deixou sua visão turva por um momento. Ele se afastou do vidro e sentou-se em um banco próximo, antes que desabasse com a tensão que havia sentido. Nesse momento Nuno se sentiu aliviado por estar sozinho, pois o pensamento que passava em sua mente era:

“Depois de 10 anos sem contato algum com você. Você ressurge do inferno... Nesse estado... Quase me matando de nervosismo e ainda me fazendo mais uma vez derramar lágrimas por você?!”.

Informações;

*Hospital Santa Mônica de fato existe em Vila Velha – Espírito Santo, Brasil. Entretanto o local onde a história se passa é meramente figurativo.

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