Episódio - 4: Retomadas

Conto de JakeS como (Seguir)

Parte da série Luzes da Cidade

Luzes da Cidade, episódio quatro: Retomadas.

Meses após o ataque, Marcelo vai retomando sua vida. O contato com Carmem está cada vez menor, o último encontro entre eles foi numa reunião com a policial Érika referente às investigações do caso, que posteriormente foram encerradas por falta de provas. Após a liberação da sua psicóloga, doutora Luciana, Marcelo voltou a exercer suas funções na supervisão de atendimento na Universidade Regional Paulista. Apesar de todos os cuidados que Reginaldo e sua equipe tiveram com ele, cada vez mais Marcelo sentia a necessidade de mudar, de buscar o novo e não se limitar por tudo que aconteceu. Efeitos de inúmeras sessões de terapia o fizeram enxergar o óbvio, uma depressão em meio de um luto, mas a capacidade de entendimento do rapaz chamava a atenção, ele não apenas queria buscar melhorias para si mesmo, como para outras pessoas, assim ele decidiu tocar um projeto social em prol dos homossexuais que sofreram algum tipo de ataque, que perderam pessoas em meio desse horrível crime que infelizmente passa longe de uma solução em terras tupiniquins.

Todas as terças-feiras, Marcelo com a ajuda da doutora Luciana recebiam jovens homossexuais que sofreram algum tipo de ataque ou presenciaram um ataque traumático. Eles utilizavam uma pequena sala do pessoal de Arte da Universidade Regional, como estava apenas no início, apenas Marcelo e mais três garotos participavam das sessões que duravam em torno de uma hora à uma hora e meia. A doutora Luciana trabalha a mente dos jovens fazendo-os lembrar dos acontecimentos e logo após fazer umas reflexões sobre tudo, da infância, até o momento do ataque. Marcelo começou meio tímido a fazer as divulgações, primeiro para amigos próximos, depois facebook e algumas mídias sociais. Era o começo de uma grande e linda história de retomada de vida que o rapaz estava querendo si proporcionar e proporcionar aos outros.

1 – Universidade Regional Paulista, manhã, mesa de Marcelo.

Sempre que podia Marcelo dava uma olhada nas publicações que compartilhava pelo facebook nas reuniões, o número de curtidas aumentava consideravelmente. Um rapaz novo veio em direção à mesa dele, o que pela primeira vez ele sentiu seu coração pulsar, era Lucas um dos novos contratados no período em que ficou fazendo seu tratamento. Lucas não era o estilo de homem que Marcelo gostava, na verdade era muito diferente de todos. Tatuado, alto, magro, careca, olhos esverdeados. Ele se aproximava, cada passo que Lucas dava Marcelo sentia seu coração disparar. E ele parou em sua mesa.

Lucas: Você responde ou a Renata?

Marcelo: Referente?

Lucas: Matrícula é divergência.

Marcelo: Sim, sou eu. O que é?

Quando Lucas explicava Marcelo não tirava os olhos dele. Parecia que ele estava cantando e não falando. Assim que ele terminou de falar Marcelo pensou: Caralho, o que ele disse?

Lucas: Posso deixar isso com você? O estudante está esperando.

Lucas deixa o protocolo na mesa Marcelo e saí. Rapidamente Marcelo identifica o erro, vai até o guichê 12 de Lucas e entrega a resolução. Assim que volta para sua mesa, Renata observa Marcelo sentar.

Renata: Você está branco Ma, aconteceu algo?

Marcelo: Nada.

Renata: Está suando também.

Ela se levanta e coloca a mão sobre a testa dele.

Renata: Você não está bem.

Marcelo: Vou até o banheiro.

Marcelo saí correndo em direção ao banheiro, chegando lá ele lava seu rosto e se olha no espelho.

Marcelo com o rosto molhado: Não. Isso não. Não é verdade. Não posso olhar para ninguém. Não posso.

Rapaz, atrás de Marcelo: Está tudo bem? Quer que eu chame alguém?

Marcelo: Está sim. Estou treinando para uma peça.

O rapaz saí do banheiro.

Marcelo esbraveja: Droga.

Após sentir seu coração pulsar por um cara estranho Marcelo volta para sua mesa.

Marcelo: Acho que vou fazer uma pausa. Você assume?

Renata: Não é melhor ir embora?

Marcelo: Não, eu posso ficar, foi apenas um mal estar, acredite.

Renata: Tudo bem.

Marcelo: Você pode me dar um?

Renata: Um o que?

Marcelo: Um cigarro.

Renata arregalando os olhos: Nossa. Mas você não fuma Ma.

Marcelo: Eu sei disso, decidi experimentar, vejo que quando você fuma seu estressa passa e quero ver se isso funciona também.

Renata retira seu maço da bolsa e entrega para Marcelo.

Marcelo: Eu te trago.

Marcelo vai em direção à saída e chega na área reservada para funcionários fumantes.

2 – Área de Fumantes, manhã.

Marcelo chega à área de fumantes e vai em direção ao muro. Ele retira do maço, um cigarro e o coloca na boca. Ele observa os alunos chegando e saindo da faculdade.

Lucas: Seria mais fácil se você acendesse.

Marcelo leva um susto e rapidamente tenta achar o isqueiro.

Marcelo: Droga...

Lucas retirando um isqueiro de seu bolso: Aqui.

Marcelo: Obrigado.

Sem jeito Marcelo acende o cigarro e finge estar seguro do que está fazendo.

Lucas: Supervisor há muito tempo?

Marcelo: Pouco mais de dois anos.

Lucas: Bacana. Muito difícil sua área?

Marcelo: Se você tem consciência do que está fazendo, não. Se você tem alguma dificuldade, sim.

Lucas: E quando você tem consciência e toma uma decisão errada?

Marcelo: As decisões são com bases na informação que você tem você pode prejudicar um aluno e um curso inteiro de acordo com a informação errada. Você precisa trabalhar certo para o meu trabalho poder sentir algum efeito.

Lucas: Achava que os supervisores que limpavam a bagunça do nosso atendimento.

Marcelo: Nem sempre, os supervisores apenas colocam vocês na direção certa para conseguir atender com êxito aquela determinada pessoa.

Lucas ri.

Marcelo: O que foi?

Lucas: Estamos na nossa pausa e falando de trabalho, a gente precisa curtir nosso cigarro.

Marcelo dá seu primeiro trago no cigarro e quase se engasga. Lucas percebe e ri.

Lucas: Não é fumante, não é?

Marcelo se desviando da fumaça: Não.

Lucas: Apenas quis o motivo para sair dali.

Marcelo: Sim.

Lucas: Te entendo mano.

Marcelo: É...

Lucas: Preciso voltar. Obrigado pela conversa Sr. Supervisor, você não é aquilo que falam por aí.

Ele abre a porta da área de fumantes.

Marcelo: O que falam de mim por aí?

Lucas: Ah, sobrevivente e tal. Meio cruel, só pensa em você e no seu trabalho.

Marcelo: Falam isso de mim? Que bando de filho da puta.

Lucas, dando uma risada: Tchau Supervisor.

Marcelo ficou observando Lucas fechar a porta, deu uma última tragada falsa no cigarro e o colocou no cinzeiro. E assim ele percebeu que suas pernas estavam moles. E imaginava que tudo isso era efeito do cigarro ou não...

3 – Casa dos Buarque, noite, sala de jantar.

Marcelo, colocando o garfo do lado do prato ao terminar de jantar: Mãe?

Amélia: Sim querido.

Marcelo: É normal você sentir seu coração pulsar?

Amélia rindo: Você acha que os batimentos são como?

Marcelo: Não mãe, você não me entendeu. Pulsar por uma situação.

Amélia: Exemplo?

Marcelo: Quando você se encontrou com o papai pela primeira vez.

Amélia: Ah sim, ali minhas pernas ficaram moles, meu coração pulsou, acelerou fez quase um Carnaval dentro de mim.

Marcelo: E isso é normal.

Amélia: Totalmente filho apesar de que...

Amélia para e observa Marcelo.

Marcelo: Que?

Amélia: Aconteceu isso com você? Foi um rapaz? Filho, olha que...

Marcelo, a interrompendo: Mãe pare.

Amélia: Já faz tempo que...

Marcelo: Não mãe, não faz tempo. Isso é errado.

Amélia: Errado? Errado paquerar? Sentir-se vivo?

Marcelo: Fazia um tempo que tinha sentido isso, Diego e eu estávamos vivendo o nosso amor tão intensamente.

Amélia: Vocês viveram um amor intensamente meu querido. Viveram e muito, mas tudo isso mudou depois daquela noite, você se privou por tanto tempo, por tantas pessoas, que sinto orgulho em ver você reagindo.

Marcelo: Mas mãe...

Amélia: Não se culpe. É absolutamente normal o que você esta passando e tudo isso é efeito do que você esta fazendo nas terapias, no seu trabalho.

Marcelo: Eu sei.

Amélia: Sinta-se feliz por você mesmo sentir que você esta vivo. Que você é capaz de sentir atração por outras pessoas, por outros rapazes. Sabemos que o espaço que o Diego teve aí dentro não vai ser substituído, mas tenho certeza que ele também deve estar feliz por você estar reagindo depois desse período.

Marcelo: Ainda acho que não é a hora.

Amélia: Você não tem que achar nada Marcelo, é o seu coração quem manda, você apenas o obedece.

Marcelo: Não sei nem porque te contei isso.

Amélia: Porque sou sua mãe, porque quero seu bem e precisamos um do outro.

Marcelo: Tudo bem.

Amélia: Me conta ele é do seu trabalho?

Os dois se sentam no sofá e começam a conversar sobre os sentimentos de Marcelo e o futuro.

4 – Imediações Praça da Sé, noite, apartamento 203.

Lucas fazendo um lanche na cozinha, seu irmão e Ellen chegam.

Ellen entrando na cozinha: E aí fracassado.

Lucas mastiga e não responde a Ellen.

Ellen: Trabalhando numa universidade de riquinho, olha parabéns, alguém tem que colocar dinheiro nessa casa.

Ela se aproxima da geladeira.

Lucas, se aproximando da geladeira junto com ela: Exatamente alguém ter que colocar dinheiro nessa.

Ele fecha a porta da geladeira com força.

Lucas: E pessoas que não são bem vindas não precisam comer a comida que eu coloco aqui dentro.

Os dois se encaram.

Bomba: Vamos Ellen, vamos pra rua.

Os dois saem e Lucas vai pro seu quarto. Ele conversa com Carol.

Whatsapp.

Lucas: Cansado dessa porra tda a outra veio querer comer o que ponho em casa mano. Vsf

Carol: Calma mô.

Isso é uma fase ruim.

Lucas: Achei mais pino aqui em casa meu irmão é um filho da puta se a casa cair vai todo mundo pro saco, inclusive eu mano.

Carol: Não vai acontecer nada.

Lucas: Voce devia dormir aqui, a gnt podia fazer um amor.

Carol: Que lindo, mas não amanhã tenho aula.

Lucas: Tudo bem...

Carol: Amanha eu durmo ai ok? Estou indo dormir. Beijos, Boa noite.

Lucas: Boa noite. Bjs.

5 – Casa dos Medeiros, escritório, madrugada.

Carmem estava acordada vendo as publicações de Marcelo referente à terapia para jovens gays. Ela pensa em comparecer, mas ainda acha arriscado enfrenta-lo. Seu celular toca.

Voz misteriosa: Consegui o vídeo.

Carmem: Ótimo. Traga-o para mim até amanhã.

Voz misteriosa: Acredito que não vá ajudar muito.

Carmem: É o suficiente, creio que isso irá me ajudar.

Voz misteriosa: Tudo bem.

Carmem: Amanhã mesmo horário.

Voz misteriosa: Mesmo horário.

Eles desligam.

6 – Universidade Regional Paulista, sala dos supervisores, tarde.

Marcelo estava inquieto. Depois de conversarem na área de fumantes, Lucas nunca mais sequer olhou na cara dele. Era estranho. Ele precisava se controlar, todos os atendentes que passavam por ele procuravam Renata e ele ficava alimentando a ideia que a qualquer momento poderia ser Lucas a entrar pela porta e dizer que precisa de algo apenas para ter um pretexto para falar com ele, mas não, foi assim todos os outros dias.

7 – Universidade Regional Paulista, Terapia em Grupo, noite.

Havia dez pessoas na Terapia aquele dia, os seis novos contavam suas histórias. Eram histórias comoventes e sem resolução como a dos outros ali. Assim que todos contaram suas histórias e o que melhoraram naquela semana, a doutora Luciana pediu para que os mais velhos contassem algo que lhes aconteceu e poderia ser considerado como uma retomada a vida comum. Marcelo levantou a mão e começou a falar.

Marcelo: Todos sabem o que me aconteceu aqui. Mas percebi alguns dias que não podemos deixar isso nos levar, até hoje sinto em muitos momentos que minha vida está perdida. Mas logo paro e penso, não, não está. Todos nós aqui estamos tendo uma nova chance de melhorar de passar por cima de tudo isso e vamos evoluir cada vez mais. Senti que quando estava voltando ao meu lugar quando observei com outros olhos um rapaz do setor em que eu trabalho. Ele é diferente de todos aqueles caras que nós conhecemos, tatuado, alto, simpático pelo olhar. Ele fez minha perna tremer como meu eterno amor fazia e eu não me culpo, afinal a vida estava passando para mim e eu sem querer a deixava tomar conta de mim, do controle da situação. Mudou. Mudou muito. Me sinto seguro, trocamos olhares, ele deve ser hetero.

Todos fazem: Ah...

Marcelo: É como se eu voltasse adolescência. Me culpo às vezes, mas me culpo ainda mais por não me permitir paquerar, sentir-se vivo de vez em quando.

Luciana: Parabéns. Você esta no caminho certo Marcelo.

Todos aplaudem. Lá no fundo, uma pessoa acompanha a terapia, ela esta de óculos escuros. É Carmem, que fuzila Marcelo sorridente com o olhar. Quando a terapia acaba e Marcelo pega sua bolsa e vai em direção à saída ele é surpreendido.

8 – Saída da Universidade.

Carmem: Boa noite querido.

Marcelo: Oi Carmem.

Carmem: Quer dizer então que já esta retomando a vida, trabalhando bem, se sentindo leve, apaixonando-se novamente.

Marcelo: Ah, era você, devia ter imaginado.

Carmem: Engraçado. Depois de meses, você ainda considerar o meu Diego como seu eterno amor.

Marcelo: Ele é.

Carmem da uma risada alta: Menos fingimento.

Marcelo: O que?

Carmem: Você comprovou dentro daquela sala tudo aquilo que eu pensava de você. Pobre. Vazio. O Diego era apenas mais um.

Marcelo começa a tremer.

Carmem: Eu o avisei, avisei tantas vezes, tantas vezes para ele deixar você. Que era apenas um jogo de interesse, apenas um jogo de interesse. Ele precisou morrer para eu comprovar que você não valia nada. Meses depois da morte dele você não o respeita. Não deixou nem o corpo esquentar e já esta sassaricando em outro. Pobre, pobre, pobre, pobre Marcelo. Ainda se faz de vítima não é? Posta fotinho pra grupo de ajuda, chama os amiguinhos indefesos. Amiguinhos que sofreram assim como você e ainda sofrem meu filho, mas esses amiguinhos ali respeitam a almas dos que já se foram, respeitam a história, não partem como prostitutas para um bom programa. Fala a verdade esse cara aí o tatuado é seu amante não é? Foi por isso que você e o Diego terminaram...

Marcelo da um tapa na cara de Carmem. As pessoas param e observam.

Carmem: Era isso que eu esperava. Você mostrar sua verdadeira face e mostrou.

Marcelo: Você não sabe de nada e uma pobre mulher mal amada. Solitária. Nem eu filho, nem seu marido aguentaram essa sua perseguição com todos. Ache o que você quiser, eu enterrei você, enterrei todo mal que você me causou, todo dor que me fez sentir e me sinto de alma lavada te dando esse tapa. Você é vazia Carmem, sua vida é assim, o Diego te amava, mas nem ele aguentava mais você e essa é a verdade que você tem que ouvir. Todos te odeiam, todos querem ver você pagar e estamos vendo e isso é só inicio da sua solidão, durante o resto da sua miserável vida você ira ficar assim, vazia, jogando o ódio para cima dos outros.

Carmem tenta dar um tapa na cara de Marcelo que segura seu braço.

Marcelo: Agora saia pela porta que entrou e nunca mais volte a me infernizar, fui claro?

Carmem sai andando e todos olham para Marcelo que começa a chorar. Lucas surge no meio da multidão e o ampara.

Lucas: Tudo bem cara?

Marcelo: Tudo.

Lucas: Quem era essa doida?

Marcelo: Não era ninguém, apenas uma doida.

Marcelo sai andando e vai até o ponto de ônibus, ele senta no banco do ponto e coloca o fone. Lucas se aproxima e senta do seu lado que se assusta.

Marcelo: Aconteceu algo?

Lucas: Não. Eu pego busão aqui.

Marcelo: Tudo bem.

O silêncio se instala. Marcelo balança a perna e enxerga seu ônibus se aproximar.

Marcelo: Tchau.

Ele se levanta.

Lucas também se levanta e estende a mão: Tchau.

Marcelo a toca e sente sua perna cambalear.

Marcelo: Tchau.

Ele entra no ônibus e vai para sua casa.

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