I - Simba
Parte da série Lanterna dos Afogados
Obrigado vocês que estão lendo, espero que gostem
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Capítulo I - Simba
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Um sorriso se abriu quase que involuntariamente ao vê-lo pela janela do ônibus. Não havia motivos para estar sorrindo, mas vê-lo acenando para mim era tranquilizador. Não era culpa dele eu estar indo embora, mas eu estava indo.
Uma lágrima brotou no canto dos olhos de papai, me fazendo lamentar por estar o deixando, assim como minha mãe fez há poucos anos atrás. Abri um sorriso para dizer a ele que estava tudo bem, e que eu voltaria em breve, que minha mãe podia ter ganho a minha guarda pelo poder judiciário, mas ela jamais conseguiria o meu amor com um advogado.
Papai se virou para ir embora, mas eu tive a impressão de vê-lo soluçando. Me virei para frente, me sentindo inútil e com o coração destruído em pedaços tão pequenos que só poderiam ser vistos com um microscópio molecular. Tirei meu celular do bolso - um Galaxy s4 - e desbloqueei a tela.
“Saudades de você guri” dizia uma mensagem de papai.
Dei um leve sorriso e respondi no mesmo instante
“Vê se não incendeia a casa velho” digitei numa velocidade desumana e coloquei o celular no bolso da blusa moleton.
Meu nome é Robertchay Cipriano, mas prefiro ser chamado apenas de Chay. Moro (morava) num apartamento nobre na zona sul de São Paulo, até minha mãe recorrer a uma disputa judiciária pela minha tutela. Bem, ela ganhou. Agora eu estava dentro de um ônibus interestadual indo para uma cidadezinha no interior do Rio de Janeiro, morar com a minha mãe e o meu padrasto. Irresponsável ela que não teve a decência nem de vir me buscar.
Funguei e apoiei minha cabeça no banco do ônibus. No fone de ouvido tocava a minha música favorita do Imagine Dragons. Decidi tentar dormir um pouco para espairecer e ver se essas seis horas de viagem passavam de forma menos lenta e torturante, mas o sono decidiu não aparecer. Abri minha mala e tirei um saco de batatas dela.
Eu degustava minha batata quando um rapaz se sentou ao meu lado.
- Posso? - Ele perguntou com um sorriso simpático.
- Não podia - Respondi - Mas já sentou não é mesmo?
O rapaz me olhou confuso, e eu vi seus olhos castanhos se converterem para verde com a luz do sol. Sorri e o olhei com a mesma intensidade. Ele tinha cabelo loiro curto, mas não estava arrepiado.
- Belos olhos. - Ele falou, insistindo na simpatia.
- Obrigado. - Falei. Tenho olhos azuis.
Eu não era antisocial sempre, mas não estava muito bem para simpatias. O rapaz sorria de uma forma calorosa, e aquilo só me deixava mais irritado. Odeio ver pessoas felizes quando eu estou triste, odeio ver pessoas sorrindo para mim como se eu tivesse dito que estava tudo bem.
- Me chamo Raphael - ele falou se acomodando no banco - Está indo para o Rio?
- Muito prazer Rapahel - falei, e não era mentira. É sempre bom ter pessoas bonitas ao seu lado. - Sim, minha mãe mora lá. E aparentemente eu também.
- Legal, eu estou indo para a divisa - ele falou - tenho um petshopp. Quer dizer, na verdade quem tem é o meu pai, mas futuramente eu pretendo assumir a direção de lá.
- Interessante. Odeio animais - falei naturalmente, mas ri quando Raphael me olhou assustado - Animais, plantas... Tudo que esteja diretamente ligado à natureza.
- Tudo está diretamente ligado à natureza. - Ele argumentou - inclusive o ser humano.
- Concordo, mas a existência de processos industriais nas coisas ameniza esse detalhe repulsivo. - Retruquei.
- Estou começando a achar você repulsivo - Raphael brincou e sorriu.
- Eu até acreditaria em você - falei rindo - mas as suas mãos simplesmente te contradizem. Você aperta as próprias pernas, tentando se controlar e não fazer algo que possa parecer errado.
Ele arregalou os olhos e corou, enquanto rapidamente colocava as mãos no bolso da jaqueta preta. Sorri com a reação dele.
- Eu só não entendi uma coisa... - Continuei - Você morde os lábios para ser sensual e chamar a minha atenção, ou também é um jeito de se autocontrolar? Talvez para não...
- Você é um garoto inteligente - Raphael me cortou, trocando de assunto.
- Me acha novo de mais? - Eu sorria - Quantos anos você tem? 19?
- 21.
Foi minha vez de me surpreender. Ele não aparentava ter nem mesmo 20. É claro que a barba mal feita dele o envelhecia, mas se ele não a usasse eu lhe daria no máximo 17 anos.
Sorri conformado e me recostei no banco, fechando os olhos.
- Te surpreendi? - Ele perguntou com um sorriso claro na voz. Eu não respondi - Quantos anos você tem?
- Sou mais velho do que você possa supor. - Falei.
- Tem mais de quinze?
O olhei espantado e gargalhei. Me recostei novamente e senti meu celular vibrar. Tirei o celular do bolso e abri a mensagem de papai.
“Rá-rá, não vou nem chegar perto da cozinha”
Sorri e bloqueei o celular. Raphael me olhava curioso, mas eu sabia que ele não perguntaria.
Bocejei. Finalmente o sono começava a me rondar.
- Pode dormir - Ele falou - Não vou te roubar.
- Não estou preocupado com as minhas coisas - falei sorrindo.
- Também não vou abusar de você - ele falou num tom irônico.
- É uma pena. - Lamentei e me virei para a paisagem lá fora.
- Gostei de você. - Ele falou.
- Eu sei Raphael, eu teria gostado de você também, se fosse mais prático e menos teórico. - Falei, retomando minha degustação às batatas. - Quer?
Estiquei o pacote para ele, que aceitou de bom grado.
- Mais prático? - Ele repetiu pensativo antes de colocar a batata na boca.
- Se eu fosse você... - coloquei uma batata na boca - ja teria me beijado.
- E se eu fosse você... - ele repetiu o meu gesto - Não sei.
- Se você fosse eu, ia querer ser beijado.
- Por alguém completamente desconhecido?
- Desconhecido? - Eu ri - Raphael Butler, 21 anos de idade, trabalha na área veterinária no petshopp do pai, que se encontra na divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro… Acho que minha definição para desconhecido é diferente da sua.
Raphael riu e se inclinou em minha direção, deixando seu hálito refrescante banhar o meu rosto. Senti vontade de beijá-lo, mas decidi que se ele quisesse, ele é quem deveria tomar a iniciativa.
- Como você sabe meu sobrenome e a minha profissão? - Ele perguntou sem tirar seus olhos dos meus - Eu não tinha te contado isso.
- Minha mãe é veterinária. - Falei e me aproximei dele, com um sorriso malicioso no rosto - Ela trabalha no petshopp do seu pai. O resto eu só precisei raciocinar.
Estávamos separados por apenas uma nesga de ar, e esse idiota ainda não tinha me beijado.
- Não vai me beijar? - Perguntei.
- Essa é a minha parada. - Ele sorriu e me deu um selinho rápido.
Raphael pegou sua mochila e se levantou, a pendurando no ombro. Ele não deu tchau, apenas desceu do ônibus e acenou do lado de fora.
- Fica para uma próxima! - Ele gritou ainda acenando.
Coloquei a cabeça pela janela.
- Não vai ter uma próxima Raphael! - Gritei.
Ele sorriu e se virou. Me recostei e voltei a comer minhas batatas. Filho da puta.
Bocejei novamente e concluí que usar todo o meu jogo de sedução para no fim ganhar apenas um selinho foi desgastante, cansativo e frustrante.
(...)
Eu não sei se realmente dormi ou apenas saí de órbita, mas só recobrei meus sentidos quando meu celular tocou, anunciando uma ligação. Olhei o identificador de chamadas, que indicava que quem estava ligando era Rachel, minha mãe. Rejeitei a chamada e olhei pela janela. Faltava pouco para chegar. Infelizmente.
Ao meu lado estava um senhor de aproximadamente 73 anos de idade e que fedia a remédios. Não que a culpa de feder fosse dele, mas o cheiro de remédios me deixava nauseado.
Levantei do banco e esperei de pé até que minha parada chegasse.
Quando desci do ônibus, uma mulher de aparência jovial veio me abraçar. Reconheci como sendo Rachel, já que a aparência era bem similar às fotos que eu tinha. Fotos que por algum incrível acaso viraram cinzas.
Não rejeitei o abraço, mas também não a abracei de volta.
Quando o abraço acabou, eu analisei a mulher que estava à minha frente. Era bonita, isso é inegável. Olhos castanho claro, pele pálida, cabelos negros e ondulados e uma boca carnuda cheia de batom vermelho. Definitivamente era minha mãe, as semelhanças não negavam.
- Ah Robert, eu senti tanto a sua falta. - Ela choramingou e me olhou de cima a baixo. - Você está tão lindo.
- Obrigado. - Murmurei desconfortável com a cena - podemos ir?
Rachel assentiu e me levou até o carro. Ela insistiu para que eu ficasse no banco do carona, mas eu preferi ir no banco de trás.
- Então, você vai adorar o colégio. - Rachel disse sorrindo, me olhando pelo retrovisor 5 - É lindo.
Como dizer que eu não quero falar com ela sem ser grosso?
- Não sei por que me transferir. - Comentei - Só faltam 4 meses para o ano letivo acabar.
- Já se imaginou tendo que fazer uma viagem de seis horas todo dia só pra ir pro colégio? - Ela indagou - Isso sem falar em mais seis horas de volta. Não. Fora de cogitação. O colégio fica a quinze minutos de casa e é um dos melhores da região.
Revirei os olhos e peguei um pacote de Doritos na minha mochila. Nem sei porque quis argumentar. Argh!
Dei de ombros e comecei a comer em silêncio. Já que eu não podia cogitar, também não iria falar nada. Ponto.
Chegamos à casa de Rachel. Uma casa plana, sacada roxa e portões de aço em sua cor original. As janelas eram de venezianas pretas e estavam abertas.
- Seu quarto fica no segundo andar. - Rachel avisou enquanto eu saía do carro - Quando eu voltar te apresento melhor a casa. Vida de médico animal não é facil. - E sorriu.
Assenti e fui em direção à casa. A porta não estava trancada, o que me fez concluir que Rachel era louca, ou a vizinhança era confiável de mais. Rachel era louca. Definitivamente.
Fui direto para o segundo andar, abrindo todas as portas que tinham. Uma estava trancada e presumi ser o quarto de Rachel. A outra estava aberta mas era o sótão, ou uma espécie de lixeira de tralhas velhas. Abri a última porta do corredor e me deparei com um quarto de paredes brancas, o chão era revestido em madeira e as cortinas eram roxas. Minha cama - deduzi que o quarto era meu - era uma box de solteiro com lençóis azul claro e travesseiros brancos. Havia um guarda-roupas de duas portas espelhadas e três gavetas, e uma tv pequena com um aparelho de dvd e um PlayStation 2. A janela tinha vista para uma fazenda que ficava a pouco mais de duas quadras e a suíte era pequena, apenas com espaço para um box de vidro preto, um vaso sanitário e uma pia para lavar o rosto.
Tirei a roupa e me joguei na cama, simplesmente exausto do dia que passou. Eu saí de casa às 14:00 horas, quando o sol ainda estava à mostra, e agora eram 21:00, e eu estava cansado de mais para fazer qualquer coisa que não fosse dormir ou comer.
(...)
Acordo com o ranger do grande portão de aço. Ando ainda desnorteado, por ter acabado de acordar e não ter explorado a casa ainda. Vou até a porta de acesso à cozinha e observo Rachel entrar acompanhada de seu marido, Ethan.
- E aí campeão? - Ethan diz, deixando a porta aberta para Rachel passar.
Aceno com a cabeça e me aproximo. Rachel entra com algumas sacolas plásticas na mão, e eu a ajudo a carregá-las até o balcão.
- Obrigada - Diz Rachel - o que achou da casa?
- Bem legal. - Confesso - Na verdade eu esperava uma casa pequena, com umas galinhas ciscando no quintal e roupas penduradas num varalzinho.
Ethan gargalhou, prendendo minha atenção. Ele estava apoiado no balcão com um copo de água na mão. Voltei minha atenção para Rachel, que também sorria.
- Na verdade, se dependesse da sua mãe, estaríamos morando numa fazenda cheia de bichos barulhentos, bem no cu do mundo - Ethan disse rindo - Mas eu odeio mato, e viver cercado de animais? Deus me livre!
Arrepiei só com a ideia de morar cercado de animais, bem no meio do mato, que algumas pessoas têm a capacidade de chamar natureza. Credo.
- Aposto que seria bem melhor. Lembra Robert, do Simba? - Rachel disse meio brava com o comentário de Ethan.
- Simba? - Indaguei, forçando minha mente a se lembrar.
Não consegui. Seja lá quem fosse esse Simba, ele me causou um arrepio desconfortável e me deixou triste. Senti meus olhos marejarem, mas eu não sabia o porque.
- Não! - Falei seco - E nem quero me lembrar.
Eu não tinha a intenção de ser grosso, mas eu não gostava de falar de coisas que mechiam com o meu emocional. Se mesmo sem lembrar do Simba eu já entristeci, imagine se eu lembrasse.
Um silêncio profundo se instalou no cômodo. Me virei e voltei para o meu quarto.
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Contato: luccipriano@gmail.com
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