05 - AMIGO ESTOU AQUI

Conto de escritor.sincero como (Seguir)

Parte da série PANDEMIC LOVE - DIÁRIO DE UMA QUARENTENA

Sabe a sensação de gritar e não conseguir ouvir sua própria voz? Eu sei! Gritei o nome do Quintino diversas vezes, tentava ser forte, mas meu emocional atrapalhou. Comecei a chorar e isso vai virar algo recorrente nesta história, então, vai se preparando, Doutora.

Ainda sem saber o que fazer e gritando pelo meu primo pela trigésima vez, sem sucesso, fiquei de joelhos no chão.

De repente, André prendeu a corda em uma das árvores e começou a descer. Ao contrário de mim, ele parecia focado e determinado em salvar, Quintino. Não conseguia ver muita coisa, mas torcia pelo melhor. Com uma agilidade fora do normal, André conseguiu tirar toda a terra que cobria meu primo.

Eu não sei se foi instinto, mas desci pela corda, queimei minha mão no processo e o ajudei. O Quintino despertou e a minha única reação foi abraçá-lo. Mesmo ele nojento e cheio de terra, eu o abracei, e claro, chorei. Já pensou a responsabilidade em anunciar para minha família que o Quintino morreu? Deus me livre!

— Você está bem? Tem alguma coisa doendo? Fala. Fala, Quintino! — Pedi desesperado.

— Caramba! Que loucura, cara. Eu estava lá em cima, de repente, soterrado. A experiência mais louca da minha vida. Acho que vi Jesus. Ele pediu para eu voltar. Disse que ainda tenho que perturbar muito o meu melhor amigo. — Ele falou rindo.

Primeiro eu ri, depois bati na cabeça dele. Como ele podia ter feito isso comigo? Não tenho mais idade para levar sustos tão sérios. Após passar a preocupação inicial, a gente reparou que estava em uma espécie de sala. Haviam quadros, algumas mesas e estantes com vários livros.

Haviam quadros, algumas mesas e estantes com vários livros

Primeiro eu ri, depois bati na cabeça dele. Como ele podia ter feito isso comigo? Não tenho mais idade para levar sustos tão sérios. Após passar a preocupação inicial, a gente reparou que estava em uma espécie de sala. Haviam quadros, algumas mesas e estantes com vários livros.

A estrutura de fato me deixou surpreso, o lugar parecia ter saído de um conto infantil. As paredes eram forradas com uma espécie de papel de parede de veludo. Os móveis tão lindos, cadeiras e mesas. Havia até um mini bar, várias garrafas antigas.

Para a minha surpresa, até o André não sabia sobre aquele lugar. Peguei a planta da fazenda, olhei de cabo a rabo, e também nada de sala secreta. O Quintino levantou, sacudiu a terra do corpo e nos ajudou a investigar aquele lugar.

"Sou muito usada como um sobrenome, mas me encontro mesmo na terra, tenho os pés no chão. Os meus filhos servem como alimento, e também se transforma em fonte de energia. Estarei onde menos espera, tenha cuidado onde pisa. Você será esperto o suficiente para me achar?"

Meu primo leu novamente a dica deixada pelo vovô. Tá, eu esperava, sei lá, uma caixa enterrada, mas uma batcaverna escondida? Os livros, em sua maioria, eram de poesias, escritos por Rodolfo Albuquerque. Alguns já estavam estragados, uma infiltração destruiu as prateleiras. Provavelmente, o motivo do Quintino "descobrir" a sala secreta.

— Cara, isso pode ser o tesouro. — Deduziu André observando as prateleiras.

— Não, o vovô não faria eu ter uma experiência quase morte por livros. Para isso eu tenho o meu Kindle.

— Seu o quê? — Perguntou André.

— Homem do campo. Kindle é um aplicativo para celular, onde, basicamente, podemos colocar quantos livros quisermos. — Explicou Quintino.

— Entendi, mas tem gente que gosta de livros à moda antiga.

— Qual o seu livro favorito? — Perguntou Quintino.

— Er...

Foram 15 segundos constrangedores, mas eu salvei André. Desconversei e mostrei um envelope que achei durante a minha "investigação". Eles foram mais para perto de mim, abri e vi mais uma carta, e a bela letra do meu avô.

"Meus caçadores favoritos. Espero que não tenham demorado para encontrar a entrada da sala de descanso. Sabe, a vida pode ser um pouco corrida. Nascemos, somos educados, temos que trabalhar, escolher uma parceira para a vida, mas e como ficam os nossos sonhos?

Como já escrevi, precisei seguir os padrões e valores que a sociedade me pedia, mas você quer a verdade? Eu nunca me encaixei neles. Queria ser ator, músico ou palhaço de circo, só que nunca tive oportunidade de testar os meus limites.

Eu sei, o velho está escrevendo demais. Vou passar a próxima dica:

"Não vou ser maldoso, mas também não facilitarei a sua vida. A próxima dica joguei no lago. Bem no meio. Espero que você saiba nadar"

— Ah, vovô. O senhor está de brincadeira, não é? — Perguntou Quintino olhando para o céu.

— Seu Aroldo era criativo. — Comentou André, sentando em uma cadeira toda empoeirada.

— Tá, gente. Acho que vamos ter que fazer umas obras aqui. — Falei ficando de frente para André e Quintino.

Queria preservar aquele lugar. Tive uma sensação boa ao entrar lá, mesmo com o desespero inicial da possível morte do Quintino. Peguei um papel e rabisquei uma estrutura para proteger o buraco. Eu sei, Doutora, falando assim parece complicado, mas queria apenas cobrir a cratera para a chuva não estragar os livros.

— Eu sou o homem adequado para você. — Disse André.

Puta merda. Ele disse que era o homem adequado para mim, nem preciso dizer que surtei, não é? Só que eu percebi, a fala era referente a construção do abrigo. Tivemos dificuldades para convencer o Quintino, ele disse que jamais pegaria em um martelo na vida.

— Eu sou um homem das ideias. Me recuso. — Ele reclamou parecendo uma criança birrenta.

— Tudo bem, então, vou descer a sua porcentagem no acordo. — Ameacei. Sorri de forma maliciosa e pisquei para ele.

— Tá bom. Eu faço. Está vendo, não é, André. Essa família me trata como um escravo.

— Pobre menino rico, que tem Iphone 11 e Apple Watch. — Brinquei.

— Não tenho culpa se você curte a simplicidade do Samsung. — Ele retrucou.

Nós tapamos o buraco com algumas folhas de bananeira, só que não era garantia de segurança. Estiquei um lençol no chão e coloquei tudo o que Rosa preparou para o lanche. Engraçado como a vida funciona, Doutora. Eu nunca fui muito de ter amigos, na primeira semana de quarentena já estava rindo e contando piadas. Eu queria guardar aquele momento para sempre, então, tirei uma selfie nossa.

Colocamos as coisas na mochila e pegamos os cavalos. Como sempre, meu primo pegou a dianteira, saltitando como se o mundo não tivesse um fim. Eu e André, seguimos na calma, conversando sobre a sala do vovô. O pôr do sol quase me cegou, precisei tirar meus óculos, e para evitar acidentes, o André me ajudou no resto do caminho.

— Posso te fazer uma pergunta bem pessoal? — Não tive coragem de olhar para o André.

— Claro!

— Você... você... — Tentava formular a pergunta da melhor forma possível, afinal, não queria assustá-lo. — André, você sabe ler?

— Hum... — Ele soltou, fazendo uma pausa que me deu nos nervos. — Não!

— Olha, isso não é motivo de vergonha. Eu reparei algumas coisas, mas eu não estou te julgando. Longe de mim. — Tentei apaziguar a situação.

— Eu sei escrever o meu nome, mas sei lá, nunca conversei sobre isso com ninguém. — Ele disse, parando para repreender o Quintino, que mais uma vez pegou a dianteira.

— Ei. Não fica assim. Eu também não sei fazer milhares de coisas.

A nossa conversa, que estava tão legal, simplesmente, morreu

A nossa conversa, que estava tão legal, simplesmente, morreu. Não sei se ele ficou com vergonha ou raiva da minha curiosidade. Chegamos na sede da fazenda, deixamos os cavalos no estábulo e dei um jeito na roupa do meu primo. Decidimos manter em segredo a pequena aventura do soterramento. Eu sei, errado, só não queria levar bronca.

Quando me virei para desejar boa noite para André, ele não estava mais no estábulo. Engoli em seco, não sabia que sentimento era aquele, por um minuto, quis chorar, depois a raiva tomou conta de mim. No caminho para casa, a gente parou para olhar o lago. O céu começava a ficar escuro, então, nem a pau que nós mergulharíamos ali.

Encontramos a Rêh no telefone, parecia mais alegre que o habitual e preenchia algumas coisas em um caderninho. Acho que, finalmente, os internautas a perdoaram, e minha irmã poderia voltar a rotina de gravação. Segundo ela, a Rede Mundo, maior emissora de TV do país, decidiu exibir os 20 episódios gravados, ou seja, o contrato ainda continuava em pé.

Como sempre, a Rêh fingiu que não nos viu. Isso me afetou? Claro que não. A minha família sempre se preocupou mais com os projetos do que comigo, então, nada de novo sob o sol. Deixei na pia todos os potes e garrafas que Rosa me deu, se tem uma coisa que aprendi foi nunca, eu disse nunca, perder as tupperwares da Rosa. Não é um lado fofo dela.

O meu irmão jogava uma partida de videogame com os amigos da banda. Apesar de não ser um membro oficial da "Fusion", eles mantinham uma amizade saudável, quer dizer, tirando a competitividade e palavrões, ainda mais em uma partida de "Mário Kart 8".

Sentei ao lado de Lukas, Quintino passou por nós e subiu para tirar a terra do corpo. Queria contar para alguém o que eu estava passando, os sentimentos confusos que orbitavam na minha cabeça. Perdido nos meus pensamentos, coloquei a minha cabeça no ombro do Lukas, ouvia perfeitamente seus amigos no fone.

— Caralho, essa princesa é muito gostosa. — Gritou Fernando, o tecladista da banda. — Parece a irmã do Will.

— Vai se lascar, cara. Gostosa é a tua tia, Hilda. — Retrucou Will. — Ou aquela fã que o Lukas queria pegar, a maluca do cartaz.

— Gente, não falem da menina. Ela tem problemas reais. É gostosa, mas problemática. Não rola nessa fase da minha vida. — Salientou, Lukas, que tacou uma casca azul no Fantasma, personagem do Will.

— Desgraçado! — Protestou Will.

. Sempre me achei tímido demais para ter qualquer contato com o sexo feminino. De início, pensei que era a falta de uma figura masculina na minha vida, mas o Rogério, um dos meus colegas do LOL, tem duas mães e sempre flerta com as meninas que jogam conosco. Eu sei, uma visão preconceituosa, talvez seja, só queria ser normal, sabe?

— Higor? — Lukas chamou a minha atenção.

— Oi?

— Pensei que você estava dormindo. Igual naquela vez no Prêmio Contigo. Tu apareceu na capa, dormindo, que mané. — Ele lembrou de outro episódio traumático da minha vida.

Quando eu tinha 12 anos, os meus pais apresentariam uma das categorias do Prêmio Contigo. Neste dia, eu fiz uma visita técnica em um dos estádios de futebol do Rio de Janeiro. Lembro que era um dia quente de setembro, peguei insolação e tive que prestigiar minha família. Juro que lutei contra o sono, até me beliscava, porém, o pior aconteceu, desabei no ombro do Lukas.

A desgraça de fato aconteceu no anúncio de revelação do ano. A grande contemplada foi Tatá Werneck, pelo papel de Valdirene em "Amor à Vida". Só que a Tatá estava ao lado do Lukas, e os flashs caíram matando nela, no sentido figurado, claro. No sábado seguinte, uma bela fotografia da atriz estampavam a revista Contigo, mas quem apareceu dormindo do lado dela? Euzinho!

— Eu tinha 12 anos, babaca. — Falei me levantando. — Vou tomar banho!

— Tá precisando mesmo, irmãozinho.

Que raiva. Por que a minha vida precisa ser tão zoada? Eu podia ser bonito e popular como o Lukas. Ou malandro e egocêntrico igual a Regina. Logo eu, um cara tão legal, nasci para ser um zero à esquerda. Na onda do meu ódio, bati meu dedinho na quina do guarda-roupa. AAAAAIIIIIII, que dor! Quem colocou esse maldito guarda-roupa no caminho?

Como uma criança machucada, desci e procurei Rosa. Ela cuidava dos preparativos do jantar, a abracei, fiz beicinho e coloquei o meu pé em cima da cadeira, para mostrar o meu machucado. É uma forma nada orgulhosa de mostrar para ela o meu dodói, nada orgulhosa.

— Onde fez dodói, meu filho? — Ela perguntou deixando os pratos em cima da mesa.

— No meu pezinho. — Falei da forma mais infantil que se pode existir.

— Dona Rosa, consegui tirar a peça de carne. — Disse André surgindo magicamente de trás da porta da geladeira que estava aberta por sinal.

Eu queria morrer. Sério, se Deus mandasse um raio naquele momento, juro, morreria feliz. Rosa pediu para que ele colocasse a peça de carne em cima da mesa e saiu para pegar o kit de primeiros socorros. Eu não sabia como reagir, fiquei em uma pose mega desconfortável.

— Meu filho, fez dodói? A Rosa já foi pegar o remédio? — Perguntou minha mãe, passando com uma bandeja de batatas assadas.

— Já. — Respondi, me sentindo a pessoa mais idiota do mundo.

Um minuto de silêncio — O tempo da Rosa pegar o kit e voltar — André pegou alguns objetos que estavam na mesa e começou a colocar dentro da geladeira. Com todo cuidado do mundo, a Rosa, tirou uma gaze e limpou o sangue do meu dedinho. Em seguida, passou mertiolate em spray, pensei que ia doer, mas foi de boas.

— André, você vai jantar conosco? — Quis saber Rosa, enquanto guardava os materiais.

— Não, Dona Rosa. Vou ficar em casa mesmo, com licença? — Ele pediu, saindo apressado.

Que merda! Prêmio Contigo da pessoa que terminou uma amizade rápido? Higor Duarte. E, sem esforço algum, igual ao mertiolate da Rosa. Quase não jantei naquela noite. A risada da minha família parecia um zumbido distante. Até perdi a parte em que o Quintino, garoto fofoqueiro dos infernos, quase nos entregou.

Como sempre, a temperatura caiu e coloquei um casaco que tenho da Lux Elementista, uma personagem de LOL, do game tá, não das bonecas. Fiquei no jardim e a lua estava especialmente bonita, brilhava em toda sua glória. Decidi matar o tempo na laje do celeiro, achei aquele lugar legal para refletir.

Ao chegar lá, encontro André, quando tentei dar a volta, ele chamou por mim. Meio sem graça, fiquei em pé, olhando para cima. André estava deitado no chão. Ele vestia um calção e uma regata, em um frio de 14 graus.

— Pode deitar. Estou sem sono também. Gosto de olhar para a lua. Tenho a impressão que ela sabe onde estão os meus pais. — Ele comentou sem olhar para mim.

— Que coisa legal. — Disse me deitando ao lado dele. — Quando eu era pequeno, queria ser astronauta, viajar pelo espaço e dormir perto da lua. No meu aniversário de seis anos, o vovô me deu um telescópio.

— Maneiro. Telescópio é aquele troço que vê estrela, não é? — Ele perguntou de uma forma tão inocente, que meu coração doeu.

— Sim. Ei, André. — O chamei me virando e olhando para ele. — Desculpa passar dos limites. Eu não fiz por mal.

— Tudo bem, eu quem fiquei com vergonha. Você é tão legal comigo. Pensei que ia me ver de outra forma, eu não sou burro, só tive muitas dificuldades.

— Em nenhum momento pensei isso, juro. Se quiser posso te ajudar. Posso te dar aulas, secretas, ninguém precisa saber. Eu te ensino, e você me ajuda no projeto da sala secreta. — Tentei negociar.

André riu, eu odeio quando ele faz isso, acho que sai naturalmente. As covinhas ficam em evidência e aquilo me deixa arrepiado. A gente começou a deixar o papo mais leve, sem qualquer mal entendido. Eu me acostumei em ter o André por perto, mas eu não sabia que isso ia gerar tantos conflitos dentro de mim. Mas naquele momento, só queria fazê-lo sorrir.

— Ei, Higor. Tudo bem, eu topo. Só tem que prometer uma coisa.

— O quê?

— Pega leve comigo.

— Vou pensar com carinho. Juro.

— Ah, e obrigado por ser um ótimo amigo!

Amigo. Cinco letras e tanto significado. Espero não estragar tudo com o André. Ele merece uma oportunidade de crescer, e se eu fizer parte desse processo, sabe, ficaria muito, mas muito feliz.

Amigo. Cinco letras e tanto significado. Espero não estragar tudo com o André. Ele merece uma oportunidade de crescer, e se eu fizer parte desse processo, sabe, ficaria muito, mais muito feliz.

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"Amigo estou aqui

Amigo estou aqui

Se a fase, é ruim

E são tantos problemas que não tem fim

Não se esqueça que ouviu de mim

Amigo estou aqui"

(Randy Newman / Randy S. Newman / Renato Rosenberg)

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