04 - SEM JEITO

Conto de escritor.sincero como (Seguir)

Parte da série PANDEMIC LOVE - DIÁRIO DE UMA QUARENTENA

Lá estava eu, sujo de terra, fedido e, provavelmente, parecendo mais desesperado do que o normal. André me deixava nervoso, a boca ficava seca, o coração palpitando e a barriga cheia de borboletas. De repente, ele começou a rir e apontou para o meu rosto.

Ele pegou um lenço que estava dentro do seu bolso e limpou a minha testa. Consegui sentir a respiração dele, os pelos do meu corpo reagiram de uma forma estranha. Por sorte, o Quintino voltou com as sacolas, o traste jogou no chão e sentou na mureta que separava o jardim da casa. Com a caixa em mãos, o meu primo achou mais uma dica.

"Vejo que você está avançando, parabéns. Nunca pensei em fazer uma caça ao tesouro no auge dos meus 70 anos. Me sinto um adolescente. Isso me deu até uma certa energia. Essas memórias, momentos tão preciosos. Espero que você também esteja aproveitando. Nessa caixa, tem um sonho que começou na minha adolescência que, infelizmente, não aconteceu da forma esperada.

Você deve estar curioso para a próxima dica, não é?

Sou muito usada como um sobrenome, mas me encontro mesmo na terra, tenho os pés no chão. Os meus filhos servem como alimento, e também se transformam em fonte de energia. Estarei onde menos espera, tenha cuidado onde pisa. Você será esperto o suficiente para me encontrar?"

— Credo, vovô. Você podia melhorar essas dicas, hein? — Soltou Quintino olhando para o céu.

— Você sabe qual é a dica? — Perguntei, tomando o papel e lendo em voz alta.

— Eu não entendi, nadinha. — Disse André.

— Meu querido homem do campo, eu não me surpreendo em nada. — falou Quintino pulando da muro.

— Quintino, larga de ser otário! — Esbravejei, sem tirar os olhos do papel.

— Foi brincadeira. Uma coisa chamada piada, algo conhecido como humor ácido. — Ele se defendeu. — Enfim, a dica do velho é Oliveira. Usado em sobrenomes, serve como alimento e se transforma em azeite.

— Aaaaah. — Soltamos, eu e André, ao mesmo tempo.

Se fosse com o Lukas, eu teria pulado em cima do André. Tá, espera, essa frase ficou estranha, eu sei, mas eu não tinha intimidade nenhuma com ele. Apenas prestei atenção, ou pelo menos fingi prestar atenção no que o Quintino falava. Peguei o meu notebook e levamos para o jardim. Comecei a pesquisar sobre árvores de Oliveira.

Na tela, milhares de árvores apareceram, não sabia que as Oliveiras eram tão famosas. André ficou observando as imagens e tentava lembrar se havia encontrado uma parecida. Seu rosto iluminou quando a foto de uma fazenda apareceu na tela.

— Caramba, esse é o terreno dos vizinhos. Engraçado, nunca tinha acessado a internet antes. — Ele disse quase que hipnotizado.

— Se você comentar alguma coisa... — Ameacei o Quintino com meu olhar mortal.

— Eu sei onde fica essa árvore, mas está ficando tarde e frio. Acho que vou para casa.

— Ei, janta com a gente hoje. — Convidou meu primo.

— Não, o André teve um dia cheio hoje. — Falei.

— Depois o mal educado sou eu, bem irmão, eu tentei. Agora preciso tomar um banho. — Quintino se despediu e entrou.

O maldito silêncio. Eu queria muito ter uma conversa bacana com o André, apesar de esquecê-lo e não saber definir os meus sentimentos, gostava de ficar apenas batendo papo. Ofereci o notebook para ele fazer alguma pesquisa, ou assistir qualquer coisa, mas André desconversou, de novo.

Sabe, Doutora, nunca fui de muitos amigos, na verdade, tirando o pessoal do LOL, que pouco me conhece, não tenho amigos verdadeiros. A maioria dos meus dramas quem ouvia era a Rosa. Então, juntei toda coragem que havia dentro de mim e tentei ser o mais honesto possível com o André.

— Olha, eu sou novo nessa coisa de fazer amigos, sabe. Na infância, as coisas eram mais simples, então, desculpa por te esquecer, eu sei que para você deve ser chato. Apenas, desculpa. — Falei tão rápido que o André levou um tempo para processar.

— Tudo bem. É que eu cresci sozinho aqui. Quando você vinha para cá, nossa, o Seu Nestor fala que eu fazia uma festa. Depois de um tempo, sei lá, acho que me acostumei a ser sozinho.

Caramba, aquelas palavras me atingiram de um jeito tão profundo. Eu queria abraçar o André e dizer que ele não estava mais sozinho, agora tinha um amigo para chamar de seu. Mas, claro, não tive coragem, o pouco que eu tinha se foi para a gente ter essa conversa.

— Quer saber, janta com a gente. Tenho certeza que você se amarrou na comida da Rosa. — Convidei, metade para me redimir e a outra para aproveitar mais um tempinho com ele.

— Verdade, ela é uma ótima cozinheira. Você tem sorte. — André, sorriu. Aquele maldito sorriso perfeito.

Subi para tirar toda a sujeira do corpo. No banheiro, conseguia colocar os pensamentos em dia. A senhora sabe como eu sou, Doutora. A minha cabeça funciona a mil por hora. Essa história do meu avó estava mexendo comigo, mas o André conseguia tirar toda minha concentração.

"Quem eu sou?"

Escrevi no box do banheiro e apaguei em seguida. Coloquei meu pijama, dei um jeito no meu cabelo e passei perfume. Desci e encontrei a minha família jantando. A enxerida da Rêh colocou as garras no André como se fosse uma tigresa faminta. O papo à mesa era o de sempre, a maldita pandemia.

Papai falou que o vírus veio da China, uma cidade chamada Wuhan. Aos poucos a doença se espalhou pelo mundo, países de primeiro mundo, como Itália e Estados Unidos foram os primeiros a registrarem casos. Agora, imagina um vírus no Brasil? A senhora deve estar mais por dentro do que eu, mas não deixa de ser triste.

Quintino sabia todos os dados relativos à pandemia, fiquei impressionado. Meu primo, aos 15 anos, já sabia o que queria fazer da vida, ser engenheiro. Não sei como, mas o foco voltou para mim e, a venenosa da Regina aproveitou o momento para mostrar o meu vídeo para André. E, quer saber o pior? A versão forró.

Mas, pela primeira vez, alguém que não era o Lukas me defendeu. O Quintino, mais enxerido que a Rêh, sentou ao lado do André e mostrou o vídeo da minha irmã bêbada na festa. Ela ficou vermelha de vergonha e todos começaram a rir, inclusive, a mamãe.

— Deixa ela, Quintino. A Rêh já aprendeu a lição. — Interveio Rosa, servindo um pouco de sopa no prato.

— Esse vídeo é o meu calcanhar de Aquiles. — Lamentou Rêh, pegando o celular das mãos de André e olhando a filmagem. — Eu poderia estar usando o meu batom, não é? Encrencada, porém glamourosa.

No jantar, percebi que o Lukas não estava legal. Nem ao menos se defendeu das indiretas da Rêh. Eu conhecia o meu irmão, e definitivamente, aquele não era o normal dele. Seus olhos pareciam distantes de toda aquela algazarra da sala de jantar. O chamei duas vezes, e só na terceira que o Lukas voltou a si.

— Ei, acorda. — Disse em tom de brincadeira.

— Esse papo da Rêh que está chato. — Ele desconversou.

Depois do jantar, o papai decidiu fazer a noite do "Cinema em Casa". A gente ia ver em primeira mão, uma versão não autorizada do filme "No Balanço da Onda". Meus pais e a Rosa ficaram sentados no sofá, e o resto espalhados no chão. Na produção, o meu pai encarnaria um surfista de 40 anos que decide voltar para sua antiga cidade, mas ao chegar lá, percebe que um shopping vai ser construído ao lado de uma das praias.

Olhei para o lado, vi o André de relance. Ele parecia maravilhado. Engraçado, no meu caso, por exemplo, estou acostumado a ver o seu Otávio ou a dona Hellena na TV. Toda vez, que o papai aparecia na tela, o André ria.

— Caramba, o senhor parece outra pessoal — Observou André.

— Faz parte da construção do personagem. — Disse meu pai.

— O meu amorzinho é o melhor. — Elogiou mamãe o beijando.

Merda, André. Eu não posso. Eu não devo. Eu não sou gay. Repetia essas coisas para mim mesmo. Sabe, Doutora, sempre soube controlar os meus desejos. A Rosa me aterrorizada quando eu era criança, ela dizia que os doces iam acabar com os meus dentes, o que não deixa de ser verdade, mas fala isso para uma criança de 5 anos.

Uma vez, eu queria tanto comer chocolate e ela proibiu. De madrugada, corri para a geladeira, peguei um pedaço e levei para o meu quarto. Fiz uma lista de prós e contras, na esperança de comer o chocolate. Moral da história, a parte dos contras venceu, abracei a derrota e coloquei de volta na geladeira.

Sim, eu sou do tipo que segue as regras, e não estou falando isso porque estou mandando um diário da minha vida para você, mas eu cresci com ótimos exemplos em casa. Disso, eu não posso reclamar. Só que o André preenchia parte dos meus pensamentos, e fiquei com medo de ultrapassar essa linha, mesmo ela sendo imaginária.

Voltei para o quarto e coloquei a minha playlist marota de todos os dias. Não sei você, mas a música tem o poder de me tranquilizar. Sempre fui tipo de pessoa que acredita no poder das canções. Pedi para o Lukas compor uma canção para mim, mas ele explicou que nem sempre o mercado fonográfico aceita declarações para o irmão mais novo. Babaca.

Tenho certeza que uma música com o meu nome faria sucesso. A Jennifer fez. Ana Julia também. Até a Renata, que foi uma ingrata, ganhou uma música para chamar de sua. Uma canção chamada "Higor", um estouro pelo Brasil.

No meio do meu devaneio, o Quintino, aparece e em suas mãos, o travesseiro e um cobertor. Aquilo não era um bom sinal.

— Por que eu acho que isso não é um bom sinal? — Externalizei a minha dúvida.

— Não estou conseguindo dormir. Posso ficar aqui? — Ele perguntou fazendo uma carinha de cachorro sem dono.

— Se eu falar que não, tipo, você vai embora?

— Claro que não. Agora, afasta. — Ele soltou me tirando todo o lado esquerdo da cama.

— Eu prefiro esse lad...

— Tenho a bexiga de velho, se eu dormir do lado direito, provavelmente, vou ter que passar por cima de você durante a noite. E, isso, querido primo, não é legal.

Passamos a noite conversando sobre o vovô. Eu tive muitos momentos legais, mas a maioria na fazenda. Por causa dos pais, Quintino, não teve tanto contanto, então, relembrei algumas histórias para ele. Como por exemplo, no dia em que o seu Aroldo encheu a piscina com 10 mil bolinhas de gel, ou quando, a gente empinou a pipa tão alto que perdemos de vista.

— Ele foi um vô excepcional. — Comentei perdido em minhas memórias.

— Você pegou a fase boa. Quando a gente veio para a fazenda, ele já estava bem debilitado. Quase não falava. Um pouco assustador, confesso. — Lembrou Quintino. — Ei, primo. Obrigado.

— Por? — Perguntei me virando para ele.

— Sei lá, cara. Eu nasci numa família de cinco irmãos. Todos mais velhos. Sinto que estou numa corrida, sabe, e por mais que eu me esforce, nunca é suficiente.

— Eu entendo, primo. Eu quero te pedir desculpa também. É que eu sempre tive essa dinâmica de ficar sozinho. O Lukas com as viagens, a Rêh nas gravações. Acho que usei como defesa. De verdade, acho que você é um dos poucos amigos reais que tenho.

— Eu fico feliz. Amigo. — Ele soltou no auge das nossas confissões.

— Mas isso não tira o fato de você ser um "pela—saco", bem, algumas vezes só. — Desabafei, tirando um sorriso abafado do meu primo.

Um conselho de amigo? Nunca durma com o Quintino. Sério. Acordei com o sabor do pé dele na minha boca. No susto, acabei caindo da cama e o descarado ainda reclamou do barulho. Me recompus, deitei novamente e dormi. Tive um sonho, eu estava na fazenda, mas ela se encontrava coberta por uma neblina espessa, quando vejo duas crianças correndo.

No início confesso, fiquei desesperado, imaginei o Freddy Krueguer me atacando. Comecei a explorar, mesmo com um possível ataque. Cheguei na área da piscina, as crianças estavam brincando. Eles subiam no trampolim e saltavam. Eu não conseguia ver os rostos, apenas ouvir as risadas.

Acordei ao som de "Mulher de Fases", e não era o despertador. A minha tia Ana, mãe do Quintino, ligou para saber notícias da nossa família. Ainda sonolento, o meu primo respondeu de forma monossilábica, acho que eu atenderia da mesma forma.

Durante o café da manhã, o Lukas pareceu outra pessoa, mais falante e sorridente, até a brincadeira da tetinha ele fez com o Quintino. A Rosa sempre apaziguando os ânimos, de uma forma gentil, pediu para que parássemos com algazarra à mesa. Ela sempre zelosa, principalmente, conosco, no caso, eu e Lukas.

— Se forem para a piscina, por favor, usem protetor, depois levo um lanche.

— Eu vou, Rosinha. — Soltou meu irmão levantando e baixando a bermuda na nossa frente.

— Para com isso, menino, arretado. Ninguém quer ver essas coisas. — Brincou Rosa jogando um pano de prato em cima do Lukas.

"Operação Vô Aroldo", gritou Quintino com a boca cheia de pão. A nossa missão do dia era achar as árvores de Oliveira, novamente, recorremos ao mapa da fazenda. O André ia nos ajudar nessa missão, afinal, quem mais conhecia a propriedade com perfeição? Tá, Doutora, no fundo, eu queria ficar mais tempo com ele.

A Rosinha, perfeita como sempre, preparou um verdadeiro kit sobrevivência, havia água, suco, sanduíches, barras de proteína e frutas. Pegamos três cavalos, confesso que sou péssimo em montaria, o exibido do Quintino aprendeu nos primeiros momentos. André é um ótimo professor, eu é que não tenho habilidades motoras para tal.

— Você pode vir montado comigo. — Sugeriu André.

— Não, não. Só não ir rápido demais. Eu consigo! Onde você acha que as árvores estão? — Perguntei desesperado para mudar de assunto.

— Ei, seus molengas. Eu vou ganhar! — Gritou Quintino galopando como um profissional.

— Garoto metido. — Falei enfezado.

Seguimos até o extremo do terreno, quase na divisa com a fazenda vizinha. O pasto era tão verdinho, parecia até o protetor de tela do Windows. O Quintino parecia um cavaleiro, saltitando de um lado para o outro. O André por outro lado, ficou junto a mim, andava no meu ritmo.

— Crianças... — Disse André sorrindo.

— Ele é um exibido.

— Você está mandando bem. Caiu só duas vezes. — André falou na esperança de que eu me sentisse um pouco melhor.

— Desculpa por atrasar o teu trabalho. Juro que se a gente achar o tesouro, eu te dou a metade. — Prometi.

— Para com isso. O importante é a jornada. Sabe, eu nunca tive muitos amigos. Ei, Quintino, vai devagar. — Ele pediu para o meu primo, e pensou um pouco para voltar com a linha de raciocínio.

André explicou que sempre viveu sozinho na fazenda. O pai era alcoólatra, a mãe se perdeu no mundo. Por causa dessa situação familiar complicada, ele atrasou muitos anos na escola, até tentou algumas vezes, mas simplesmente não conseguia absorver as coisas.

— Depois, o meu pai sumiu também. Fiquei sozinho. Se não fosse o seu Nestor e os seus pais. Eu não sei o que seria de mim.

— Pera aí, os meus pais sabiam da sua situação? — Quis saber.

— Sim. Eles ajudaram o seu Nestor a ter minha guarda.

— Caramba!

— Ei, seus bundões! Eu achei! — Gritou Quintino, descendo do cavalo.

As árvores de Oliveira são lindas. Dô, se você pesquisar no Google certamente vai achar. Elas são gigantescas, quer dizer, algumas, outras parecem ser divididas em três. Coloquei as mochilas no chão, água no balde para os cavalos e explorei o lugar. O clima estava agradável demais, o vento soprava em nossa direção e os galhos pareciam dançar. Poético, não é?

De repente, o Quintino ligou o Wikipedia que existia dentro dele. Começou a exaltar todas as qualidades da Oliveira. Antes, detestava o conhecimento exacerbado dele, mas isso fazia o André sorrir, então, conseguiria viver com isso.

— Vocês sabiam que a Oliveira é considerada a árvore da Vida? E quanto mais velha, mais retorcidos ficam os troncos? Tem espécies com mais de 2 mil anos na Europa e Israel. — Disparou meu primo.

— Higor, ele não tem um botão de desligar? — Brincou André e seu maldito sorriso.

— Ainda não inventaram isso.

Entre uma informação e outra, Quintino simplesmente sumiu, tipo, desapareceu. Eu não acreditei naquilo. Chegamos perto e uma cratera se abriu no chão. Olhei para o André e corremos em direção ao buraco.

Eu conseguia ver as mãos de meu primo, mas ele não reagia, em cima dele uma quantidade enorme de terra. Entrei em pânico e comecei a gritar, tentando o chamar. Sem resposta nenhuma, olhei para André, que correu até os cavalos e me deixou sozinho, gritando pelo Quintino.

*****

"Te amo desse jeito

Meio sem jeito

Saudade aperta o peito

Mesmo ao teu lado

Não vê que eu sou assim

Perdida de amor

Começo pelo fim

Te amo desse jeito

Meio do avesso"

(Sandy)

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