03 - GIRASSOL

Conto de escritor.sincero como (Seguir)

Parte da série PANDEMIC LOVE - DIÁRIO DE UMA QUARENTENA

Eu sempre fui diferente dos outros meninos, não vou mentir. Odiava futebol, detestava ter que fazer educação física, sempre escolhia brincar ao lado das meninas, mas sempre achei isso normal. No dia em que caí em cima do André, senti como se todas as peças que estavam fora do lugar começassem a se encaixar.

Doutora, acho que esse um daqueles momentos onde a senhora pede para eu ser sincero, não é? Então, fiquei apavorado com a possibilidade de estar gostando de outro homem. Eu nunca senti atração por ninguém, quer dizer, teve a Suzy na terceira série, mas acho que o encanto aconteceu por causa dos brinquedos dela. Ela tinha a sorveteria da Eliana, por favor!

Conforme cresci, não participava de festas ou viagens da escola, ainda mais quando os meus colegas descobriram que a minha mãe era a famosa atriz Hellena Duarte. Lembro que uma vez, os alunos brigaram para ver quem faria o trabalho de história comigo, eles foram para a porrada, Dô. Aquilo ficou conhecido como a rebelião do 5º ano B.

O meu distanciamento das pessoas ficou mais grave quando descobri o mundo dos games. Passava horas trancado dentro do meu quarto. Afinal, no universo dos jogos, precisamos tomar decisões difíceis que podem decidir coisas como o futuro de uma nação romana ou a resolução do sequestro de uma princesa por uma tartaruga diabólica.

Outra coisa que me fascina nos jogos é que temos uma porção infinita de vidas. Cair no buraco? Ser atropelado por um carro? Comido vivo pelo zumbi? Isso tudo é fichinha. Quero ver enfrentar o mundo real. Tenho certeza, que a Jill Valentine (personagem de um game de zumbi chamado Resident Evil 3) prefere enfrentar o Nêmesis (o inimigo mortal de Jill Valentine) no modo pesadelo a ter que conhecer o cenário político do Brasil e a pandemia que nos atinge.

Enfim, Dô. Quem eu quero enganar? Não tenho a força de vontade da Jill, muito menos, a coragem do Mário para enfrentar um réptil gigante. Vou ficar calado. Não vou assumir nada, afinal, ninguém sabe, calado ficarei, isso não é ser covarde, certo? A minha vida é uma bagunça, imagina agora sendo gay. Devo ser o cliente que a senhora mais ama, não é?

Depois que a gente tomou banho na cachoeira, voltamos para a sede da fazenda. Na entrada havia uma equipe trabalhando, de início não entendi direito, mas André me explicou que os meus pais haviam contratado um serviço de esterilização, acho que devido ao Covid-19.

A estrutura era gigante, formava uma espécie de corredor para a limpeza de carros e pessoas. Minha família observava tudo do jardim. A gente se aproximou, e claro, que a Regina ia lançar o seu charme para cima do André.

— Nossa, André. Você fica uma gracinha molhadinho. — Ela soltou, fingindo se desequilibrar e apoiando as mãos no André. — Opa, falha minha.

Idiota. Nem sei porque senti ciúmes. O André não significava nada para mim. Voltei a minha atenção para os trabalhadores. Meu pai explicou que tudo, até mesmo, os carros iam ser desinfetados por um produto a base de quaternário de amônia. Fingi demência, balancei a cabeça e soltei um: "Nossa, que legal". E não, não achei legal.

— Mãe, porque nunca ouvi falar da cachoeira nos limites do terreno? — Questionei pegando nos ombros da minha mãe que estava sentada na espreguiçadeira.

— Ué, você não sabia?

Odeio quem me responde com uma pergunta. Aparentemente, todos sabiam da existência da cachoeira, até a Regina, exceto eu. De repente, o debate sobre os produtos químicos acabou e se tornou uma verdadeira guerra por causa da bendita cachoeira.

— Filho, você e o André, viviam tomando banho lá. — Meu pai soltou para a minha surpresa.

— Eu? — Questionei.

— Sim. — Ele respondeu, antes de entrar na casa, pegar um álbum de fotografia e voltar todo serelepe.

Odeio o lado competitivo do meu pai, ele mostrou uma antiga fotografia minha tomando banho na cachoeira, e ao meu lado, um garotinho, o André. Um misto de sentimentos tomou conta do meu peito novamente, como assim eu esqueci do André? Lembrei de tudo, Doutora.

Recordei das brincadeiras, ele era o bandido, eu o policial, a gente explorando a fazenda, fingindo que éramos dois caçadores de tesouro e, principalmente, dos abraços carinhosos que trocávamos. Por algum motivo, no meio do caminho, esqueci do André. Nem preciso dizer que fiquei mal.

— Caramba. — Soltei pegando o álbum das mãos do meu pai e mostrando para o André. — Você lembra?

— Sim. Você era a única criança que vinha para a fazenda. — Ele falou.

— Que memória péssima, hein? — Brincou Quintino. — Higor é um idoso preso no corpo de um adolescente.

Senti uma tristeza nos olhos do André. Acho que eu também ficaria decepcionado se alguém esquecesse de mim. A Rosa informou que o jantar estava pronto. Com vergonha, falei para todos que jantaria no meu quarto. Não estava afim de olhar para a cara de superioridade do meu pai, afinal, ele acertou na mosca.

A enxerida da Regina chamou André para jantar em casa, então, havia mais um motivo para evitar esse constrangimento.

No chuveiro, comecei a lembrar dos bons momentos que passamos na cachoeira. A água quente caiu no meu corpo, mas eu desejei que fosse a mesma água gelada daquela tarde. Devo ser maluco, queria negar tanto um fato sobre mim, mas ele me consumia.

O vapor começou a subir, olhei meu reflexo no box do banheiro, fiquei com vergonha. Aos poucos, minha imagem ia se perdendo no vidro, então, escrevi em letras garrafais: "SOU GAY?".

De banho tomado, sentei de frente a meu notebook e quase te envio uma mensagem, Doutora. Escrevi vários rascunhos, mas na hora "H", eu desistia. Queria conversar, desabafar, mas a internet que o Lukas contratou estava podre, ou seja, sem desabafar no grupo do LOL. Peguei o celular, conectei na caixa de música e deixei rolando a playlist aleatória.

Um dia te mando uma lista das músicas que eu salvo no Spotify, sério! Depois que terminou a música "Semana que vem" da Pitty, foi a vez de "Zero to Hero" da animação "Hércules". Cara, como eu adoro essa trilha sonora.

Na infância, a gente encenava "Hércules" para os nossos pais. A Rêh encarnava a Mégara; o Lukas, claro, era o Hércules, e eu dava vida ao Phil. Parecia mais uma produção de filme B dos anos 80, porém, a gente deixava nosso lado criança falar mais alto.

— Boa tarde. — André desejou entrando na sala.

— André! — Rêh, praticamente, se jogou em cima dele.

— Que oferecida. — Pensei ficando mais chateado que o normal.

— Onde está a goteira? — Ele perguntou.

— No meu quarto. Acho que é uma infiltração. Quase não me deixou dormir. É lá em cima. — Ela disse arrastando o menino pela escada acima.

Mas a inveja da minha irmã serviu para algo, consegui desvendar a dica do vovô. Era tão óbvio, corri para o quarto do Quintino, não bati na porta, queria me vingar, eu sei, foi errado e babaquice, eu sei. Só que eu peguei o meu primo querido, fazendo poses de fisiculturismo na frente do espelho. Juro, ri demais.

O coitado vestiu a blusa tão apressado que ficou do avesso, então, precisou tirar para colocar da forma correta. Só o Quintino para fazer com que eu esquecesse do André. Pedi para ele me seguir até o jardim. No caminho, tentei bisbilhotar o trabalho do André, mas a porta estava fechada.

Quintino fez um milhão de perguntas, só que eu queria fazer uma surpresa. Ao chegarmos no jardim, reli a dica.

"Dentre elas, eu sou a mais bela, apesar de estar em maior quantidade, não exalo perfume. Já servi como um elo de ligação para o R & A. Estou sempre em busca da luz, o seu brilho me sustenta"

— Quintino, Girassol. Girassol, Quintino. — Falei como estivesse apresentando os dois pela primeira vez.

Entre as flores do jardim, havia uma parte dedicada aos girassóis. Com cuidado para não quebrar as flores, Quintino e eu, começamos a cavar atrás de uma possível pista. Nunca vi tanta terra na minha vida, as minhas mãos começaram a doer, mas estávamos tão focados que nada importou.

De repente, o meu primo levantou uma caixinha para cima, nem ligou para a terra que caiu sob sua cabeça. Não sei se foi a emoção de achar a caixa, mas acabei abraçando ele. Sim, Doutora, o meu segundo abraço em menos de 24 horas. Meu recorde pessoal.

Celebramos, rimos e levamos uma bronca, pelo menos uma fofa, a Rosa não conseguiria brigar conosco, porém pediu para limparmos tudo. Estava suado, sujo de terra e feliz. A gente colocou a caixa no chão e abrimos. Para nossa surpresa, encontramos várias fotos de dois homens, no verso de cada uma, as letras "R e A".

— R & A. Será que um deles é o vovô? — Perguntou Quintino analisando as imagens.

— Deve ser. Não lembro de nenhum amigo dele com a letra R.

— Tua mãe/A mamãe! — Exclamou juntos e corremos para dentro da casa.

Encontramos a minha mãe praticando Yoga perto da piscina. Ela ficou surpresa quando viu uma fotografia do vovô mais moço. A gente teve que contar toda a história da caça ao tesouro, pensei que a mamãe ficaria feliz, mas nem deu muita bola. Perguntamos sobre o homem ao lado dele, outra negativa. Isso me irritava demais, nem fingir se importar ela fingia.

A mamãe sempre foi adorada pelos fãs, ainda mais quando fazia papéis da donzela indefesa que precisava passar o pão que o diabo amassou para no último capítulo ser feliz. Será que existiria um capítulo na vida dela que eu seria importante o suficiente para ter um feliz para sempre?

Pedi para Quintino desistir, pois, dali não saíria nenhuma informação útil. Voltamos para o jardim e André estava organizando a nossa bagunça. Pedi desculpa, dei um tempo na investigação para ajudá-lo, afinal, o coitado não tinha culpa.

— Achamos mais uma pista. — Falei, aparentemente desconfortável.

— Percebi. — Ele disse juntando um pouco de terra do chão.

Eu não conseguia pensar em nada, Dô. Eu tentava achar formas de conversar com o André, mas as palavras simplesmente desapareciam como fumaça no céu. Fiquei responsável por arrumar as flores, enquanto ele tirava a terra. O Quintino, inútil, ficou olhando e reclamando do nosso trabalho.

— Ei, aquele girassol ainda tá torto. Credo, não tem noção de equilibro? – Questionou meu primo como se fosse o patrão.

— Primo querido, pode pegar outro saco de lixo, por favor? — Pedi fingindo uma educação não existente dentro de mim.

— Tudo eu, tudo eu. — Contra vontade, o Quintino entrou em casa.

— Menino esquisito, mas boa gente. — Comentei para André, que deu um riso abafado.

— É sério? — Ele perguntou.

— O quê? — Perguntei de volta, mas nesse caso não sabia do que se tratava mesmo.

— Você não lembra nada de mim?

Fui pego no pulo, Doutora. E não, não sabia o que responder. Podia inventar mil desculpas, só que mesmo vendo as fotografias, as lembranças do André na minha cabeça não estavam liberadas pelo meu HD.

— Cara, eu....

"Que eu seja todo dia como um girassol

De costas pro escuro e de frente pra luz

E de frente pra luz

E de frente pra luz

Se a vida fosse fácil como a gente quer"

(Whindersson Nunes)

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