01 - ME ENCONTRAR

Conto de escritor.sincero como (Seguir)

Parte da série PANDEMIC LOVE - DIÁRIO DE UMA QUARENTENA

Oi, gente. Tudo bem? Estou começando o meu novo romance na Casa dos Contos Eróticos. Espero que vocês me ajudem com curtidas e comentários. A história é leve, um romance para passar um tempo agradável. Desde já agradeço!

— É como se eu estivesse em um concurso de música, sabe? A torcida gritando, segurando cartazes e felizes, mas eu não conseguia cantar. Tenho 17 anos, acabei de me formar e não sei o que eu quero da vida. — Falei sem olhar para a Dra. Cida.

— Higor, o que aconteceu foi grave, mas não pode deixar que esse episódio tome conta da sua vida. — Ela aconselhou, antes de pegar um caderno e me entregar. — Olha, que tal você ter um diário?

— Isso é coisa de menina, Dô. — Comentei.

— Dô?

— Sim, Dô de Doutora. — Soltei, tentando rir da minha própria piada ruim, sem sucesso.

— Sério, Higor. Um jovem tão estudado, filho de atores, de uma família tão criativa. Não imaginava ouvir isso de você e, não estou falando da piada ruim, mas de achar que um diário é exclusivo para meninas.

— Desculpa, Dô. Falei sem pensar, não quero ser um babaca que reclama do tratamento. Eu vou tentar, só que posso escrever no notebook? Acho que facilitaria muito mais a minha vida.

— Tudo bem. Vamos dividir uma conta no Google Docs, que tal?

— Claro, dividir uma conta com a minha terapeuta. Ebaaa! — Fingindo uma falsa alegria.

— Eu sei que pode parecer perda de tempo, mas vamos fazer dar certo, eu prometo. E você começa hoje, falando sobre o que aconteceu em dezembro. — Ela disse me entregando um cartão. — Esse é o meu e-mail.

SEIS MESES DEPOIS

Oi, tudo bem, Dô? Escrever, né? Eu vou conseguir, eu sei disso. Tá, vamos lá. Estou alguns meses atrasado, eu sei, mas aconteceu tanta coisa nessa quarentena e, eu estava sem qualquer contato com o mundo, perdido na fazenda da minha família em Borá, no estado de São Paulo. Eu tenho tanta coisa para te contar, que nem sei o que dizer primeiro. Tá, vou focar. Vamos lá.

Tudo começou quando a dona Hellena Duarte, também conhecida como mamãe, teve a brilhante de ideia de gravar um programa ao vivo lá em casa. Era sobre o Natal e, ela faria uma receita de Peru Recheado, só que o problema é: minha mãe não sabe cozinhar, então, ela e a cozinheira de casa montaram todo um plano mirabolante para não passar vergonha.

A equipe da TV chegou cedo, umas 9 horas da manhã e, trouxe uma parafernália de equipamento, o quadro tinha 10 minutos, ou seja, uma coisa simples. De repente, umas 20 pessoas estavam posicionadas na cozinha de casa. Enquanto a minha mãe se maquiava, eu tentava tomar meu café da manhã. Um dos cinegrafistas ficou me olhando, confesso que me senti estranho, então, peguei a comida, coloquei em uma bandeja e fui assistir na sala.

Mesmo os produtores nos dando os vídeos, a Dona Hellena queria que assistíssemos suas entrevistas. Acho que já vi mais de mil vídeos dela, não aguentaria essa rotina, ainda mais em turnê de filmes. São as mesmas perguntas, e dependendo do programa, as coisas podiam ser bizarras, como quando um YouTuber perguntou a idade dela em uma live. A mamãe quis morrer, e eu claro, me divertir para valer.

Depois de muita espera, o programa finalmente começou. Eu e os funcionários da casa assistimos a mamãe fingir que sabia cozinhar, tudo já estava encaminhado. Durante o bate—papo com a apresentadora, a dona Hellena começou a falar dos seus próximos projetos e o assunto caiu na família.

— Bem, Aninha. Família para mim é a base de tudo. — Ela falou enquanto enchia o Peru com uma farofa de nozes.

— Todos os seus filhos seguiram a carreira artística, não é? — Questionou a apresentadora.

— Quase todos. O Lukas está arrasando na banda e a Rêh nem se fala, brilhando muito na TV. O meu filho mais novo acabou de se formar, mas ainda não decidiu o que quer fazer.

Do nada, a praga da apresentadora pediu para falar comigo, ali e ao vivo. A produtora correu desesperada a minha procura. Eu fiquei congelado, não conseguia formular um pensamento. Com a ajuda de Rosa, a minha babá e segunda mãe, a pobre funcionária, que aparentava ter uns vinte anos, me levou para a cozinha.

Nem sei quem me passou o microfone. E lá estava eu, Dô. Parado na frente de umas 30 pessoas, sem ter noção do que ia falar. Um fato curioso? As lâmpadas que eles usam para as entrevistas esquentam muito. Parecia que eu estava de cara para o sol. Enfim, a minha mãe respondeu praticamente todas as perguntas feitas para mim.

— Então, Higor. Quer dizer que você é o único que ainda não decidiu o que quer? Podemos te esperar na televisão, teatro, música ou artes plásticas?

— Er, eu... quer dizer, sabe como é Ana, ainda não sei... e....

E foi nessa hora, Dô. Aquele maldito momento que eu queria apagar para toda minha vida. A mamãe tirava o peru do forno (sim, a frase ficou estranha, eu sei), e pediu a minha ajuda. Para quê? Eu sou um ser humano desprovido de qualquer coordenação motora. Ao tentar segurar o maldito peru tropecei em um dos milhares de fios de câmera, a pobre ave voou e acertou a cabeça de um dos cinegrafistas, aquele que me olhou estranho.

O homem ficou estatelado no chão, alguns produtores foram ao seu socorro, a minha mãe me fulminou com aqueles olhos castanhos e grandes. Não sei se foi o nervosismo, a culpa ou estresse, mas eu fiz xixi na calça, sim, mijei e, na frente de todo o Brasil. O líquido amarelo escorria pelas minhas pernas, claro, que a dignidade também, graças a Deus, o diretor cortou aquele momento deplorável.

Virei meme, vídeo no Tik-Tok, a sensação do twitter, com certeza, a senhora deve ter visto. Me senti tão miserável, sabe. Eu lá tinha culpa. A mamãe ficou sem falar comigo por três semanas, graças a Deus que eu pude contar com a Rosa. Até o meu irmão deixou a turnê dele e passou uns dias em casa. E confesso, só entre nós, ainda não superei esse dia.

— Rosa, quando será que isso vai passar? — Perguntei deitando ao lado dela.

— Meu filho, não se preocupe. Daqui a pouco, algum artista vai falar coisa errada e vão te esquecer. — Ela disse me abraçando.

— Acredita que o papai queria que eu aproveitasse para ingressar no mundo artístico. "Vira um comediante, meu filho". — Falei tentando imitar o meu pai.

A única coisa que me fazia esquecer os problemas era o League of Legends, também conhecido como LOL. É um jogo, Dô, onde duas equipes precisam se enfrentar para sair vitorioso, e cá entre nós, eu mando muito bem. Fiz bons amigos no LOL, e eles não sabem que eu sou filho da Hellena e Otávio Duarte. Os meus companheiros gostam de mim pelo o que eu sou e, não por um vídeo no Tik-Tok e possíveis regalias.

Enfim, o tempo passou e começou a surgir essa pandemia. De início, nem prestei atenção, mas as coisas saíram do controle. Pessoas ficando infectadas e morrendo. O papai voltou para casa mais cedo, a produção do filme "No Balanço da Onda" foi adiada. A novela da mamãe também entrou em hiato. De repente, todo mundo entrou em quarentena. Inclusive, Doutora, espero que a senhora e sua família estejam bem.

Com medo de que acontecesse alguma coisa conosco, os meus pais decidiram dar férias para os funcionários e a gente partiria para a fazenda da família em São Paulo. Lembro de ir na minha infância, adorava o meu avô. O seu Aroldo sempre realizou todos os meus desejos. Tenho muita saudade dessa época.

A nossa última consulta foi no dia 20 de março, lembra? Sei que te dei trabalho, Dô, e desculpa por isso. Enfim, quando cheguei em casa naquela tarde, tive uma surpresa nada agradável, o meu primo Quintino, filho da tia Ana, irmã de mamãe. Ela teve cinco filhos, mas todos estavam em algum lugar do mundo, só o traste ficou no Brasil e iria para a fazenda conosco.

Aos poucos fomos arrumando nossas coisas, ainda tive tempo de jogar uma última partida de LOL e adivinha? Eu ganhei. Consegui comprar vários livros para levar, afinal, a fazenda não tinha internet, o meu irmão estava tentando contratar um serviço de internet via satélite, só que estava tudo parando.

— Ei, Lukas, a Rêh vem? — Perguntei sentando no sofá.

— Eu acho que não, ela tem que gravar uns programas extras. Ah, consegui uma operadora de internet, eles vão ver a possibilidade de colocar uma torre na fazenda. Eu sei, sou demais. — Ele soltou piscando na minha direção.

— Vamos ter internet? — Questionou Quintino aparecendo do nada.

— Ei, garoto. Nossa, que susto. Não aparece assim. — Esbravejei.

Rosa foi a única funcionária à ir para a fazenda. A mamãe deu férias para os outros, a gente atrasou, pois, ficou esperando um funcionário do ministério do trabalho, não sabia que era tão burocrático. Depois de todas as carteiras assinadas, entramos na van. O papai seria o responsável por nos levar para Borá.

Na estrada, ouvi toda a minha playlist do Spotify. Tenho um gosto muito peculiar e eclético, vou do samba ao rock; do gospel ao funk, e claro, alguns musicais da Broadway. Foram 10 horas dentro do carro, o meu pai e Lukas dividiram o volante, fizemos algumas paradas para ir ao banheiro e comer. Tive que ir conversando com o meu primo, sério, que guri sem noção, Dô. Se eu pudesse jogá—lo na estrada, mas eu tenho bom senso, e não, não sou um psicopata, pelo menos, eu acho.

— Chegamos! — Anunciou o meu pai, parecendo mais animado que o normal.

— Graças a Deus. Minha coluna está um caco. — Reclamou minha mãe, que usava aqueles travesseiros de avião e um óculos de sol à noite.

— Você dormiu todo o caminho. — Comentou Lukas olhando para mim e piscando.

— Verdade, mãe. Acho que até roncou. — Soltei rindo.

— Crianças. Deixem a sua mãe. — Interveio Rosa.

— Só você, Rosinha. — Disse a minha mãe esticando a mão e pegando em Rosa.

A casa estava do jeito que eu lembrava. Havia uma estrada com árvores de ambos os lados, uma piscina imensa e a casa de dois pisos. Minhas pernas tremeram quando desci da van, levantei os braços e alonguei, ouvi meus ossinhos reclamando. Lukas me pegou de surpresa e abraçou forte, mais uma vez meus ossos estralaram. Eu poderia sair dali com facilidade, só que foi tão terapêutico.

— Ei, vocês dois. Comportem—se. Temos que levar as malas para dentro. — Avisou Rosa abrindo a mala da van.

— Cara, cadê o caseiro? — Perguntou Quintino.

— O Seu Nestor está dormindo. São 23h. Vamos levar só o necessário. Amanhã pegamos o resto. — Disse meu pai.

Peguei minha mochila e duas malas. Caramba, a viagem acabou comigo. Eu não aconselho ninguém a viajar do Rio de Janeiro a São Paulo de carro. Os meus pais queriam evitar os aeroportos, por esse motivo, pegamos a estrada. Entrei no meu quarto e as coisas continuavam no mesmo lugar.

O quarto ficava de frente para uma grande varanda. Havia uma enorme porta de vidro com uma cortina branca, e claro, o blackout. Os móveis foram trocados recentemente, então, o cheiro de quarto novo exalava no ar. Tudo decorado no tom azul, o meu favorito. Tirei o notebook da mochila e coloquei na escrivaninha, conectei a caixinha de som, adoro ouvir música.

— Vovô, que falta o senhor faz. — Pensei.

—Ei, vamos tomar banho de piscina? — Lukas atravessou a porta como uma bala, quase não consigo entender o que ele falou.

— Oi?

— Piscina, eu e tú, tú e eu.

— Está louco? Eu estou morto. Não tenho condições psicológicas de sair do meu quarto. Vaza. — Falei, o expulsando.

Quando expulsei a visita indesejada, coloquei a playlist no modo aleatório. Começou a tocar a canção "Preciso me Encontrar" do Cartola, eu te falei, o meu gosto musical é uma bagunça, mas eu amo cada música que está na seleção. Enquanto curtia a canção, abri minha mochila e encontrei o caderno que você me deu. Sabe qual foi a primeira coisa que escrevi? "Quem é você?".

É meio triste não saber quem a gente é, né? Ouvindo a voz do Cartola e olhando para o meu quarto, não sei. Me deu uma vontade de chorar, e eu quase não choro. Respirei fundo e, decidi que eu ia aproveitar a quarentena para tentar reconectar comigo. Só que adormeci, o cansaço era tanto que nem tomei banho, e para variar, acordei cheio de dores.

— Ótimo. Bom dia, novo eu. — Desejei a mim mesmo.

Desci e a mesa estava posta, meu irmão já estava na piscina, só ouvia ele pulando e gritando. Não sou uma pessoa matutina, a Rosa já deixou o meu Nescau pronto, uma das poucas coisas que não me deixa rabugento. Graças a Deus, o chato do Quintino ainda não tinha acordado. Comi umas torradinhas, algumas frutas e subi para tomar meu banho.

Precisei pegar as minhas malas, ainda bem que eu fui inteligente e escolhi só o necessário. O papai que sofreu levando as 10 malas da Dona Hellena para o quarto. Fiquei com pena e o ajudei, diferente do folgado do Lukas, garoto sem empatia. Como o dia estava bonito, coloquei a minha sunga azul do Pokémon e decidi curtir a piscina.

Quando passei na sala, Rosa disse que havia deixado os óculos na Van, eu como o bom samaritano, coloquei na minha lista de prioridades do dia. Desci para o estacionamento e fiquei assustado com um enorme cavalo marrom, na verdade, ele ficou assustou comigo. Havia um garoto montado nele, por minha culpa, o animal se levantou e o menino se estatelou no chão.

— Puta merda! — Gritei. — Ei, moço. Você está bem?

Dô, eu me caguei todo, não literalmente, Deus me livre, já não basta o trauma do xixi. O cavalo começou a ficar impaciente e o garoto continuava deitado no chão. Por um segundo, me vi preso e tendo que escolher uma facção no presídio.

Um outro homem apareceu, acalmou o animal e ajudou o rapaz. Eu pedi desculpa, tremia todo.

— Eu vou levar o Nescau para o estábulo, você pode cuidar do André? — Perguntou o homem.

— Claro. — Abri a porta da Van, segurei no ombro de André e o fiz sentar. — Cara, desculpa, eu não tinha visto o cavalo e me assustei.

— Relaxa. Estou bem. Só fiquei um pouco tonto. — Ele respondeu me tranquilizando. — Eu sou forte!

— Graças a Deus. - respirei fundo.

— Me chamo André. Você é filho do patrão, não é?

Assenti com a cabeça que sim. Do nada, o garoto tirou a camisa. Fique sem graça, afinal, não acho normal as pessoas se despirem dessa forma. André pegou a roupa e usou para estancar o sangue que estava saindo do cotovelo. Levantei, bruscamente, bati a cabeça no teto da van. Ele riu de mim e, também acabei fazendo a mesma coisa.

O levei para casa e corri atrás de uma caixa de primeiros socorros. Ele ficou me esperando na cozinha, quando retornei, a Rosa estava o acompanhando e pediu para fazer o curativo. Na hora de passar o antisséptico, o machão da fazenda fez uma carinha de dor, juro que segurei o riso.

— Quer dizer que você fez isso com o garoto? — Perguntou Rosa colocando um band-aid no cotovelo do André.

— Mais ou menos, na verdade, a culpa foi de nós dois. — Assumiu André. — Fiquei hipnotizado por uma coisa.

— Mesmo, o quê? — quis saber Rosa, guardando os produtos de volta na malinha branca.

— Deixa para lá.

Meu irmão invadiu a cozinha e todas as atenções foram para ele. Lukas começou a se gabar da torre que estavam construindo para a internet via—satélite, afinal, não sabíamos o tempo que ficaríamos presos na fazenda. A pandemia crescia cada dia mais e quase todos os estados do país sofriam com a doença.

De repente, ouvimos um forte barulho de helicóptero. Quintino entrou correndo e avisou que havia alguém pousando no jardim da fazenda. Seguimos para lá, não acreditei na cena, Dô. Era a minha irmã mais velha, a Rêh, chegando da forma mais clichê, pelo menos, eu pensei dessa forma.

Se houvesse uma palavra para definir a Regina Duarte, era diva. Ela cresceu no meio do luxo e festas, então, se acostumou a ser o centro das atenções. Sempre usava salto alto, pois se achava baixa demais, apesar de ser mais velha, a Rêh era a menor de nós três.

Meus pais ficaram atônitos, meu irmão não gostou muito, ele não se dá bem com a Regina. Ela abraçou todos nós, disse que queria ficar mais um tempo em família. Do helicóptero, um empregado descarregou várias malas, acho que mais de oito.

Na mesma hora, os funcionários da internet conseguiram ligar o modem, nem preciso dizer a festa que fizemos, não é? Acho que merecia uma internet rápida, já que ia aguentar o meu primo mala e minha irmã diabólica. A Rêh deu um forte abraço em André, pensava que era algum parente distante.

Várias mensagens começaram a apitar nos nossos celulares. E nem te conto, Dô. A bonita da Rêh viralizou nas redes sociais por um motivo muito escroto. Ela foi flagrada em uma festa e o vídeo repercutiu negativamente. A mamãe queria esganar a minha irmã.

— Qual é, mãe? Foi uma festinha de nada. Tinha umas 15 pessoas. — Se defendeu Rêh.

— Regina Duarte. A TV Mundo quer cancelar o contrato. Você está de castigo! Para sempre! — Gritou a minha mãe, andando de um lado para o outro.

— Calma, Hellena. — Interveio meu pai.

A reunião online com o gerenciador de crise durou cinco horas. A Rêh precisou fazer uma carta que a assessoria soltou para a imprensa, além de dois vídeos pedindo desculpas para o público. Ela também foi obrigada a fechar as redes sociais por tempo indeterminado. Naquela noite, para fugir do climão que estava na casa, decidi ir para o estábulo da fazenda.

Segui para o segundo andar, tinha uma laje que dava para ver o céu. E a lua no interior, Dô, é magnifica. Ouvi uma voz e fui investigar. Encontrei André alimentando os cavalos, com um balde de feno, deve ser nutritivo. Eu ficava estranho perto dele, não conseguia entender o motivo. Enquanto conversamos, observei uma velha estante que era do escritório do meu avô.

— Nossa, quanto documento antigo. — Comentei.

— Sim, depois que o seu Aroldo morreu, sua mãe pediu para tirar as coisas do escritório. — Explicou André, deixando o balde no chão e se aproximando de mim.

A gente começou a revirar todas as gavetas, e ele encontrou uma caixa estranha. Eu abri e achei uma carta escrita pelo vovô.

"A gente nunca acha que vai morrer, não é?

Quando jovem, juro para você, achava que viveria para sempre. Meu sonho sempre foi viajar pelo mundo, conhecer novos lugares e culturas, mas acho que nasci na época errada. Hoje, os jovens possuem mais liberdade. Meu pai pensava só no meu futuro, num emprego estável, e claro, o famoso casamento.

Nessa caixa, decidi depositar todos os sonhos que não realizei. E vou te adiantar, o primeiro é um panfleto de um curso de arte circense, nem preciso dizer que o meu pai reprovou a ideia. Hoje em dia, minha filha é uma das atrizes mais famosas do Brasil. Eu a deixei livre, livre para seguir o seu caminho e viver à vida em toda sua plenitude.

Enfim, estou escrevendo essa carta para você. Você mesmo. Dentro da minha propriedade tem um tesouro, algo muito valioso, se você foi bisbilhoteiro o suficiente para achar essa carta, acho que vai gostar de participar dessa caça ao tesouro, não é?

Estou torcendo muito para que sejam os meus netos, Lukas ou Higor, vocês eram os meus preferidos. Se for a minha filha Hellena, bem, eu espero que esteja preparada para participar dessa pequena brincadeira e quem sabe conhecer melhor o seu velho pai.

Que a caçada comece!"

Dô, eu li aquela carta com cara de *#. O André pegou o papel, deu uma olhada e confirmou que aquela letra era de fato do meu avó. Ele pediu para que eu lesse a carta em voz alta, pedido estranho, mas eu acabei lendo novamente. Eu não conseguia acreditar, o meu avó deixou um tipo de jogo.

Dentro de outro envelope, havia um papel escrito: "Onde as coisas nascem, um aroma gostoso e a felicidade na vida das pessoas. Basta procurar dentro do coração". Li a mensagem para André, ele não conseguia pensar em nada. A gente conversou por alguns minutos, mas o sono bateu, o dia tinha sido agitado. Nos despedimos e voltei para o meu quarto.

Na cama, li pela terceira vez a mensagem do meu avó. Pelo jeito que escreveu aquilo, não sei, me deu um nó na garganta. Será que ele tinha sido feliz? Não imagino viver uma vida de opressão, os meus pais sempre foram liberais conosco, principalmente, com o Lukas, afinal, o garoto tem umas 19 tatuagens e um piercing horrível no nariz.

Fechei a noite com mais uma rodada de Cartola, por algum motivo desconhecido, as suas canções me acalmam. Acordei cedo e encontrei o Quintino lendo a carta do vovô, esqueci de trancar a porta e o desgraçado achou a mensagem. De início, o retardado do meu primo ficou revoltado por não ser o neto favorito. Só se fosse favorito para afogar no açude.

— Eba, a gente vai achar esse tesouro, não é?

— Não existe nós, querido primo. Isso não é coisa de criança. — Tentei justificar.

— Tenho 15 anos. Sou um adolescente. E muito mais inteligente que você, pois, já sei qual é a primeira pista.

— Já sabe? — Perguntei, antes de receber a chantagem.

— Sim, querido primo. Mas, como eu posso dizer... eu só libero a pista se me deixar participar. E quero 50% do tesouro.

— 10%. — Rebati.

— 40%. — Ele falou em seguida.

— 35%, e não falamos mais disso.

— Tudo bem. Eu aceito, nem sou tão ganancioso, viu?

— Eu estou muito lascado. — Falei me jogando na cama de novo.

***

"Deixe-me ir preciso andar

Vou por aí a procurar

Sorrir pra não chorar

(Deixe-me ir preciso andar

Vou por aí a procurar

Sorrir pra não chorar)"

(Cartola)

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