Uma Longa Viagem (3x04)

Parte da série Entrando de "Cabeça"

A minha mãe me encarava sorridente, o meu pai estava ao lado dela, ele não sorria. Eu sabia que por dentro ele gritava “Tilcon não vá, fique e assista futebol comigo”. Mas se o meu pai gritasse, então, o negócio ficaria feio pra ele quando os dois chegassem em casa.

- Aproveite bem o acampamento, Tilcon – começou a minha mãe. Ela sorriu e voltou o olhar para o Patrick – E tire este tempo para resolver pendências lá... Você sabe bem quais são elas.

- Eu estou indo para fazer companhia a Bianca e não pra me agarrar com o Patrick – eu disse a ela sem humor. – Pare de tentar bancar o cupido.

O meu pai a encarou, ele aparentava estar furioso ao descobrir sobre o novo trabalho da minha mãe, “cupido nas horas vagas”.

- Você o que? A peste do Patrick mal saiu de nossas vidas e você já quer juntá-los de novo? – O olhar dele voltou-se para mim. – E você, Tilcon, nade de voltar namorando.

Eu não estava muito animado para começar uma discussão, então, apenas balancei a cabeça e me despedi deles. Logo a Bianca apareceu, ela estava com uma mala gigantesca, usava um chapéu preto, shorts jeans e uma bota sem salto.

- Pronto para muitas aventuras? – Perguntou-me ela tirando o chapéu em uma saudação. – Eu estou tão animada.

- Só me diz que você está fantasiada de “Dora a Aventureira”...

- Hoje, nem você vai conseguir me colocar pra baixo.

- Eu nem preciso, a sua bota não tem salto, você está menor que eu – disse em um ataque de risos.

Eu percebi que um garoto não parava de nos encarar. Quando digo “nos encarar”, na verdade, quero dizer “só a Bianca”. O Rodrigo não fazia questão nem de disfarçar os seus olhares, seus olhos a devoraram. Eu ainda não tinha aceitado bem a ideia de que ele não tinha uma queda por mim, mas pela minha amiga.

- Bianca, o Rodrigo tem uma queda por você – eu engoli o meu orgulho e consegui dizer. – Ele não para de te secar.

Ela olhou em direção a ele de um modo tão discreto que só faltou apontar o dedo e gritar “ei colega, nós estamos falando de você... É de você mesmo. É você de camisa vermelha!”. Eu revirei os olhos e fiquei mais vermelho que uma pimenta quando o Rodrigo retribuiu o olhar.

- Não... Ele gosta de você, qualquer um pode ver isso – respondeu a Bianca ainda o encarando. – O Rodrigo é gay e tem uma queda por você, não por mim.

- Mas...

Ela cutucou um garoto qualquer e perguntou: - você não acha que o Rodrigo tem uma queda pelo Tilcon?

O garoto encarou a nós dois com um olhar estranho, mas por fim, disse: - como é que eu vou saber? Eu nem conheço vocês.

- Vá embora então, seu inútil – respondeu a Bianca fazendo uma careta e mostrando o dedo do meio. – Obrigado por nada, idiota.

- Quem tem uma queda pelo Tilcon? – Perguntou a voz familiar atrás de mim. O Patrick se aproximou e tornou a perguntar: - quem?

- O Rodrigo – a Bianca continuou a tagarelar. Ela deu uma risadinha e perguntou: - você não acha?

O Patrick voltou o olhar em minha direção, ao vê-lo me analisar, eu fiquei desconcertado, mas me mantive calado. Após encarar o Rodrigo e eu, o meu ex-namorado disse: - ele tem uma queda por você, Tilcon.

- Não! – Eu disse tentando explicar que ele gostava da Bianca e não de mim. – Ele é hétero, eu tenho certeza.

- Então, porque ele te pagou lanche? – Disse a Bianca e a sua boca grande. – Você me disse que ele te deu lanches de graça no dia da luta.

O olhar do Patrick fuzilou o meu rosto.

- Você deixou que ele te pagasse lanches, é isso mesmo?

- Eu... Eu não... O lanche era pra você, ele se ofereceu pra pagar e eu aceitei – eu disse com um pouco de esforço. – Você que comeu o lanche pago por ele.

- Você deixou que ele me comprasse comida?

- Mas mudando de assunto – eu comecei a dizer. – Como vocês acham que vai ser a comida lá?

Ao perceber a burrada que fez, a Bianca sorriu dizendo: - eu não sei, mas espero que não seja nada muito natural... Não curto muito comer salada.

- Não sendo minhocas e nem larvas – ao pensar em um prato cheio de larvas, o meu estomago embrulhou – para mim, está de bom tamanho.

O Patrick ainda nos encarava de uma maneira estranha, era tão óbvio que ele pensava nos lanches pagos pelo Rodrigo, o que era uma total perda de tempo. Por mais que os dois não acreditassem, eu sabia que o Rodrigo gostava da Bianca e não de mim.

Quando o ônibus que nos levaria até o acampamento chegou, foi um tremendo tumulto, os adolescentes pareciam crianças em uma fila para ganhar doces, era como se ninguém tivesse a capacidade de entrar no veículo sem empurrar outra pessoa. Depois de muito esforço, nós três seguimos para os bancos do fundo.

Quando estava quase chegando ao acento, tropecei e caí. A queda foi tão feia que pude sentir o meu joelho sendo esfolado por baixo do jeans. Eu sabia que alguém havia colocado o pé propositalmente, era a única explicação. Quando me levantei, avistei o José, o mesmo idiota que eu soquei no dia em que “caí do armário” graças aos meus pais. Ao que tudo indicava, ele ainda não superara o ocorrido.

O Patrick estendeu a mão e me ajudou a levantar. As pessoas do ônibus nem se preocuparam em perguntar se eu estava machucado, elas só riam da minha cara. E porque não ririam?

- Quem foi o engraçadinho que o derrubou? – Perguntou o Patrick em um tom elevado. Era impossível ouvi-lo dizer sem se assustar. – Se me contar agora, só vai levar um soco. E se eu descobrir por outra pessoa, vai levar três.

Eu sabia quem era. No fundo, talvez até o Patrick soubesse que esta pessoa se tratava de José.

Ninguém disse uma só palavra, o ônibus entrou em um silêncio profundo, por algum motivo, o silêncio me irritou mais que o barulho de conversa que antes se propagava pelos quatro cantos do ônibus.

- Resolveram ficar quietos, é? – Continuou o Patrick com o mesmo tom ameaçador. – Desta vez passa, mas da próxima... Ah, eu quebro a cara da pessoa, nem que eu tenha que bater em todo mundo do ônibus.

Sentei-me ao lado da Bianca, o Patrick sentou-se próximo a mim, ele sorriu de leve e pousou a mão em cima do meu joelho e perguntou: - está doendo muito?

- Não foi nada.

- Como não? Alguém te derrubou de propósito – aqueles olhos azuis esverdeados passaram a encarar os meus. Ele estava preocupado comigo. – Uma coisa é escrever cartazes te ofendendo e outra coisa é te agredir, isso é grave.

- Quem te ouve falando assim até pensa que você luta melhor que o Tilcon – comentou alguém nas primeiras fileiras do ônibus.

O Patrick se levantou, serpenteou pelo ônibus e, por fim, disse: - quem foi o engraçadinho?

Ninguém respondeu.

- Então, além de burro é covarde?

Ao perceber que ninguém mais se manifestaria, o meu ex-namorado sentou-se novamente ao meu lado e segurou a minha mão, o seu olhar voltou-separa mim, ele abandonou toda aquela pose durona que usara há poucos segundos e sorriu mostrando os dentes brancos.

- Eu vou proteger você, Tilcon, não se preocupe – ele fez uma pausa, apertou a minha mãe com mais força e prosseguiu: - é isso ou a sua mãe me mata.

Definitivamente, não era isso o que eu queria ter ouvido. As palavras do Patrick soaram mais como uma obrigação. Até parecia que ele havia dito: “não se preocupe, mãe. Fique tranquila, depois eu passo no mercado”.

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