Sob a luz do luar

Conto de escritor da noite como (Seguir)

Parte da série A dama da noite

Pra vocês verem um pouquinho do que eu escrevo. Estou pensando em adaptá-la pro site.

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A DAMA DA NOITE

Capítulo 1

Do bar do velho português saiam os cinco velhos amigos Tarcísio (o delegado), Rui (o advogado), Clóvis (o professor), Irineu (o banqueiro) e Afonso (o médico), podres de bêbados, com uma baita vontade de chegar em casa, bater na cama e descansar depois de mais um miserável dia de trabalho. Cada um seguiu seu rumo na escuridão da noite do Rio de Janeiro dos anos 10. Ruas escassas de luz, os postes não iluminavam um metro sequer à frente deles, era admirável o feito de eles conseguirem chegar em casa.

Falaram de tudo naquela noite, desde os assuntos presidenciais, às danças das prostitutas do puteiro ao lado. Pobre coitado do seu Manoel, que estava endividado até o pescoço devido à abolição e tinha que ouvir tantas lorotas e conversas fiadas até aquele momento.

Despediram-se. Bateram em retirada cada um para seu canto. Eles gostavam das reuniões de quinta, mas pra valer o ditado "a despedida era o pior momento". Na verdade era pior saber que tinham que ir a pé para casa. Nesse momento até o mais abolicionistas de todos pensava como seria bom ter um escravo carregando-o no ombro até sua casa.

Afonso Henrique Correa era considerado por muitos um louco. Até seus quatro amigos o achavam de uma insanidade medonha. Ora bolas, o médico da equipe saía do Flamengo e ia até a praça da Aclamação todos os dias desacompanhado. Nem o delegado do grupo, Tarcísio Alcântara do Amaral se arriscava a fazer tal loucura. Às vezes, diziam que Afonso não possuía medo, pois o que tinha de honroso já era:

- É o que dizem, cu de bêbado não tem dono, não é Afonso? - gritava Tarcísio.

O médico andava sempre pelas ruas longas, onde não tivesse que fazer esforço para lembrar o rumo de casa. Por isso pegava a Rua São Pedro, passava na 1° de março, ia pra Santa Luzia, seguia pela Rua da Lapa, até chegar à Rua do Catete na praia do Flamengo. Esse era o melhor caminho, descobrira isso por experiência própria.

Para se precaver de uma eventual sede, o médico sempre levava uma garrafa. De cachaça, é claro. A aguardente lhe dava ânimo, ao mesmo tempo que desequilíbrio. Talvez fosse essa a combinação perfeita para se andar uma distância tão longa sem pestanejar.

A sexta-feira que lhe seria um problema. O cansaço acumulado, somado aos quilômetros andados, multiplicado pela noite mal dormida davam um resultado terrível. Dor. Mas o pobrezinho estava tão "ilúcido" -não bêbado- que não temia as consequências. Melhor seria ter ficado na Praça da Aclamação ou importunando o lusitano o resto da noite.

Depois de trombar co um poste da 1° de março, Afonso seguiu pela Santa Luzia. Mas parecia que naquela noite a santa não estava de bom humor. O doutor tropeçou num buraco, caiu na calçada, quebrou uma vidraça do salão do barbeiro. E isso porque ele escolhia as ruas mais retas possíveis. Quando o moribundo chegou ao final da rua, a santa parecia ter mudado de ideia. Ela resolveu presenteá-lo com algo que não tinha a anos: uma mulher.

Afonso era casado com Maria das Graças Venturini Correa e Correa, sua prima, que na juventude tinha um corpo esbelto, cabelos longos, olhos verdes e uma simplicidade nunca antes vista. Depois do casamento, só a simplicidade permaneceu. Ela engordou mais de vinte quilos durante a gravidez dos filhos,os cabelos caíram e até os olhos verdes pareciam ter escurecido o que tirava completamente a vontade do marido de se deitar com a esposa. Para se satisfazer, ele recorria toda quinta ao prostíbulo perto do bar antes de encontrar os amigos. Fora umas e outras que tinha com as pacientes.

Dobrando à esquerda, ele entrava pela rua do Catete. Esfregava os olhos o máximo que conseguia para ver direito a cena que se apresentava a sua frente. Não era apenas uma mulher, estava vestida como uma donzela, uma dama, que o fazia lembrar de suas saidinhas com Maria das Graças na juventude. Cambaleando, ele seguia a divina figura que andava mais adiante.

A dama era alta, não gigante, mas modestamente superior às moças da época, usava um vestido branco longo que lhe cobria as pernas, as mãos e os braços estavam cobertos por uma luva de cetim, o que fazia aumentar sua realeza, os cabelos eram louros, completamente encaracolados, mas eram de boa qualidade, ela trazia em uma das mãos uma sombrinha, típica das donzelas durante o dia, e na outra uma bolsa cravejada de brilhantes que causaria inveja a qualquer princesa. Afonso não viu todos os detalhes, talvez nem metade dos descritos, mas esteve atento a um, seu gingado. Nunca em toda sua vida ele havia visto um rebolado tão majestoso quanto o dela. Não era exagerado como as moças do mundo, não era sem graça, como as riquinhas da cidade, tão pouco como as mulatas do morro que ele quase não via. Era gracioso, devagar mas caliente.

O coitado estava perdidamente atraído. O som dos sapatos dela tocando o chão ditavam o ritmo da caminhada. A sedução de Afonso era tamanha que ele não percebeu que havia saído da rota para sua casa. Sem perceber, ele, andando atrás dela, dobrou a esquina da Silveira, do mesmo jeito de antes, batendo em todos os postes, tropeçando nas calçadas e buracos, com o devido cuidado de não quebrar seu vidro de cachaça e fazer qualquer barulho que fizesse a figura misteriosamente atraente notar sua presença. Enfim, chegou à praia. Nunca se soube se foi por causa da bebida ou da sedução, ou talvez dos dois, que ele não notou o mar, ou sua brisa, ou percebeu mas não queria parar de segui-la.

A radiante benção cedida ao doutor o levou até a praia do Russel. Lá ela entrou numa cabana, com o teto meio destelhado, situada no final da praia junto a um conjunto de rochas. O agraciado, agora de longe, percebeu a praia e deixou a bebida de lado, coisa rara das madrugadas de quinta, e seguiu rumo a cabana.

Agora em frente à casa e com a timidez curada pela aguardente, o médico bateu na porta. Ninguém atendeu. Parecia que não havia sequer uma pessoa no barraco. Bateu outra vez. Nada. Afonso não podia acreditar que aquela deslumbrante visão era apenas uma miragem, uma missão. Acreditava menos ainda ao lembrar do brilho do corpo da moça ao caminhar sob o luar até a casa. Então, ele resolveu entrar.

A casa não era bonita, muito menos arrumada, mas era grande. Possuía dois andares, com uma imensa sala, que mais parecia um estábulo de tão suja que estava no momento. Ele apoiou-se no sofá tentando curar a embriaguez, ou ainda, precocemente, a ressaca. Chamou pela moça, num alto e agudo "Ô de casa", sem resultado. Ficou desapontado, como se a moça devesse alguma coisa a ele por o ter levado até ali. Pensou em voltar, mas não queria se consolar no fim da noite, à beira da praia com suas mãos, ou com sua mulher, sua grande mulher. Chamou outra vez. Umas dez pelo menos: fracasso total.

O local estava tão sujo, que mesmo seu corpo transpirando cachaça, Afonso não suportava mais. E nem queria mais ficar, afinal o único motivo de estar ali não estava mais presente. Resolveu sair.

Quando virou-se para a porta e pôs as mãos na tranca, o bêbado ouviu o ascender de uma lamparina, três em uma sequência desencadeada. O barraco não estava escuro, pois a luz da lua atravessava os buracos do telhado, que pareciam ter enfrentado um furacão norte-americano, mas as lamparinas eram de grande ajuda.

Ele tornou a se virar procurando o tão esperado presente da rua Santa Luzia. Ao olhar a donzela notou que havia algo de errado com ela. Ela estava com a cabeça abaixada. A sombrinha não estava mais em suas mãos, visto que essas abriam naquela hora sua bolsa. Numa tentativa de aproveitar-se da ocasião, o médico retirou seu lenço todo suado e a passos demorados e curtos ia entregá-la. A bolsa já tinha sido aberta. Ela levantou o olhar - agora dava pra ver seus lábios sorridentes. Afonso parou. Realmente interessado em ter uma noite agradável com ela, ele puxou assunto:

-Achei que estivesses tristes, já ia até dar-lhe este lencinho - e sorriu. A moça ficou séria e ele continuou-. Você mora aqui? Sozinha? - ela mantinha a expressão fechada e o doutor permanecia tentando a comunicação - Não tem medo de andar a noite pela cidade? Afinal és uma donzela tão bonita.

A única e última resposta que obteve foi:

-E o senhor? Não tem medo?

Ela terminou de erguer sua cabeça, deu um sorriso, tirou um revólver da bolsa e pôs fim àquela perseguição.

Antes de ser surpreendido com a arma Afonso pensou mil coisas:

- Como ela sabe que ando à noite? O que esta acontecendo? Por que não levanta a cabeça? Quem é ela?

Mas o último pensamento foi o principal. Era curto, condizente com o pouco tempo que lhe restava, tanto que nem pode falar à assassina: VOCÊ!?

Já caído, morto, ele finalmente recebeu seu prêmio. Na testa, de batom, ela escreveu em algarismo romano "I", talvez fosse para enganar o delegado, ou para dar um aviso. "Ainda há mais por vir". Sobre seu ferimento uma das luvas foi milimetricamente colocada. Ela estava retocando sua obra de arte, tinha que ficar perfeita para o público e os críticos.

Com cuidado para não se sujar, ela abriu a porta com a mão que ainda tinha luva. Tomou para si seus pertences e foi-se embora como uma miragem sob a luz do luar.

Comentários

Há 2 comentários.

Por O tall em 2014-11-01 18:46:09
Ameiiii
Por fran em 2014-11-01 17:52:04
amei. perfeito. até parece filme de vingança, que ficou obvio ao final. mau poso esperar pelo proximo. pensei que era apenas uma visão alcoolica. kkk na verdade quando estamos alcoolizado o caminho não importa, nossos sentidos mesmo que fracos e desnorteados sabem o caminho de volta. experiencia propria.kkk bjos e abraços.