1- Meu Porto Seguro
Parte da série Slow Fade
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Capítulo 1: Meu Porto Seguro
A noite gélida e silenciosa cobria toda a cidade de Nova Iorque, e a cidade que nunca dorme parecia estar em sono profundo. A neve cobria o chão com delicadeza, e eram poucas as almas aventureiras que se arriscavam a sair do conforto frente à lareira. Nem mesmo os turistas se atreviam a sair do aconchegante seu aconchegante hotel para ver a bela cidade, agora tingida de branco.
O frio era amigo de todos, e a neve mais amiga ainda. As lojas estavam fechadas, as janelas e cortinas nem sequer brilhavam com o feixe de luz vindo das residências.
Só uma pessoa era corajosa o suficiente para enfrentar a neve e chegar ao seu destino. Essa pessoa tinha longos cabelos negros e olhos azuis intensos, como o mar numa noite de lua cheia. Essa pessoa era uma mulher, que andava segura e graciosamente pelas ruas vazias da enorme cidade. Os passos apressados e ao mesmo tempo relaxados, ela era um exemplo universal não apenas de beleza, mas também de coragem. Seu vestido branco cobria os pés, mas não era um vestido de noiva. Era algo mais intenso que um casamento, um voto que era tão poderoso quanto o voto de fidelidade até a morte.
Claire parou frente à Catedral de São Patrício, na 5ª avenida. As portas estavam fechadas, e não havia um único feixe de luz no local. O vento frio soprou, e a neve que antes caía serena sobre a cidade, agora dava espaço a uma grande tempestade de gelo, que se alarmava gradativamente. Isso não podia ser a mãe natureza, e Claire sabia disso mais do que qualquer outro mortal... Ou imortal.
As portas se abriram enquanto Claire ainda se aproximava.
Finalmente um feixe de luz surgiu, vindo de uma única vela que queimava sobre o altar, próxima a uma escultura de Jesus. Ele estava lá. Claire o sentia em cada rajada de vento que tocava seu corpo, em cada partícula de oxigênio que adentrava em seus pulmões e em cada partícula de gás carbônico que seu corpo expelia. Seu poder emanava pelo ar, era quase palpável. Mas Claire não estava com medo, a jovem moça enterrou o medo no seu subconsciente e o substituiu por coragem.
– Sem jogos, por favor. – Claire disse impassível, estava se tornando mais humana do que supunha que poderia ser.
Uma risada grave e bonita ecoou no ar, fazendo Claire estremecer. Ela não podia demonstrar medo, ele se aproveitaria da situação, assim como tem feito nos últimos meses. Ele a subornaria e extrairia tudo o que podia dela. Ele a usaria, e se não a mandasse diretamente para o inferno, a condenaria a um destino ainda mais apavorante: ele a obrigaria a ficar com ele, por toda a eternidade.
– Não gosta de jogos, doce Claire? – A voz ecoou, e Claire não pôde distinguir de qual direção era viera – É um tanto irônico, já que você jogou comigo desde que nos conhecemos. Deixe-me brincar com você meu amor, eu prometo que será divertido.
De repente todas as luzes de acenderam, causando uma breve cegueira em Claire. Quando a bela mulher abriu os olhos, era tarde demais. Fora atingida em cheio no peito, sendo lançada próximo à grande porta. Claire se ergueu, e novamente foi surpreendida. A mão grande do inimigo envolveu seu pescoço a lançou para o altar, próxima a uma parede onde continha a escultura de um anjo com uma espada na mão. Claire sabia o que ele faria a ela, e então deixou seu medo surgir, misturando-se ao ódio. Ela não podia partir, não agora.
Era o único jeito de bani-la, e ela não deixaria isso acontecer.
Claire se levantou com velocidade, desviando do próximo golpe vindo do inimigo, fazendo-o cair sobre o altar de joelhos. Ela mal teve tempo de olhar para o rosto do homem que lutava.
O homem se virou com cautela, sabendo que não adiantaria atacar agora. Os olhos verdes congelante do homem se prenderam aos olhos azuis de Claire. O cabelo dourado estava bagunçado, e em seu rosto era visível o ódio. Ele realmente tinha motivos para odiar Claire, afinal ela o enganara, ela brincara com a coisa mais preciosa que um ser, imortal ou não, poderia ter. Claire brincou com o amor dele.
O homem avançou novamente, saltando no ar majestosamente. Claire puxou a espada do anjo e a fincou no estômago do homem que vinha em sua direção do alto. Carregou o homem até a parede do altar e o prendeu ali. Aquilo não o mataria, apenas o deixaria mais vulnerável.
– Não vamos levar isso longe demais, Victor. – Claire disse ofegante, ainda assustada com o que acabara de fazer – Me diga o que você quer para me deixar em paz, e eu o darei. Depois disso, você some para sempre.
– Eu quero destruir tudo o que você ama. – Ele rosnou – Eu quero que você sofra, e não vou descansar, não vou parar. Não há nada nesse mundo, nada nos céus e nada no inferno que vá me fazer parar, por que eles estão me apoiando. Eles sabem da profecia, eles sabem... – A voz dele aos poucos se tornara um sussurro.
– Eu vou sumir. – Claire disse surpreendendo a si mesma – Eu vou embora, me isolo do mundo... Se você jurar deixá-los em paz. Se nunca os tocar...
– Eu vou mandar o seu namoradinho para o inferno... – A voz de Victor soou em um sorriso sombrio e cansado – E junto com ele, vou com todo prazer amarrar...
– Não! – Claire gritou, fincando ainda mais a espada em Victor. Ela sabia que aquilo não o machucaria, já que não era diamante celestial. Nem sequer era diamante. Era apenas metal.
Novamente, Claire sentiu o poder emanar, e sabia de onde ele vinha. Ela se perguntava como ele podia ter se tornado tão poderoso. Ele só pode ter sido promovido.
Victor agarrou a espada com as duas mãos, e antes que Claire pudesse impedir que ele a tirasse, foi atingida pelos dois pés de Victor.
Victor removeu a espada de suas entranhas e caminhou até Claire com calma, fazendo com que o objeto de metal se transformasse lentamente em diamante. Claire estremeceu.
As asas de Victor se revelaram gloriosamente, e então Claire entendeu por que dele emanava tamanho poder. Victor não fora promovido, fora convertido pela magia negra. As asas que deveriam ser brancas estavam fortemente tingidas de negro e suas penas se desintegravam gradualmente.
Algo como sombras negras prendiam Claire ao chão, impossibilitando-a de mover qualquer parte do seu corpo. Victor ergueu a espada, e então a lançou sobre Claire.
(...)
Acordei de repente, sufocando o grito em minha garganta, e me assustando com a silhueta que estava parada na porta.
Papai se aproximou de mim cauteloso, seu rosto ficando mais claro conforme se aproximava, mas ao mesmo tempo mais embaçado. Eu sentia as lágrimas se formando no canto dos olhos, e saberia que eu explodiria quando papai fizesse o que estava prestes a fazer.
– Aquela mulher outra vez? – Papai perguntou sentando na cama ao meu lado. Assenti – O que você viu desta vez?
Eu não conseguia falar, só conseguia sentir raiva. Raiva de mim, que sonhava há meses com a mesma mulher desconhecida, raiva dessa mulher desconhecida, que eu nem sabia se realmente existia, raiva do homem que a matara no meu sonho...
Papai envolveu seu braço no meu ombro e me puxou para um abraço, enterrando meu rosto no peito depilado e despido de papai. Ele me apertava com força e ternura, indicando o quanto ele me amava, e indicando que ele me protegeria de tudo. Mas ele não podia me proteger dos sonhos ruins, eles me perseguiam com uma insistência irritante e audaciosa, sempre inovando, sempre me mostrando detalhes que eu não via antes.
– Claire. – Sussurrei entre os soluços e as lágrimas que banhavam o peito de papai – O nome dela é Claire, e havia um homem com ela. Victor...
Eu sabia que isso não era real. Sabia que nem Victor e muito menos Claire eram reais. Eles só existiam em meus sonhos, era uma invenção da minha mente por causa das aulas idiotas de ensinamento bíblico que papai me obrigou a frequentar. Estamos a quase três meses falando sobre anjos e demônios, e aquilo havia me deixado paranoico, por causa daquele professor mais paranoico ainda, que repetia dezenas de vezes que havia demônios em todos os cantos, em todos os lugares. Meu psicólogo (eu me sinto um tolo por ter um) explicara isso. Ele disse que o homem com asas negras, até então denominado “vulto”, representava os demônios, e a mulher de branco, Claire, representava os anjos. Mas se ela representava os anjos, por que ela perdia a batalha com Victor? Ela deveria ganhar, não deveria?
– Claire... – papai sussurrou, me fazendo lembrar que eu ainda estava em seu peito.
Tentei me soltar dele, mas papai me prendeu aos seus braços, me erguendo com facilidade e me pondo em seu colo. Eu me senti ridículo, mas confortável. Era inaceitável que um garoto de 16 anos de idade ainda se sentisse carente de colo, mas aquilo era justamente o que eu precisava. O colo do meu pai.
Olhei para papai. Seu rosto estava terno. Os olhos cinza fitavam a parede do meu quarto, sua respiração fraca me afetava devido aos movimentos do seu peito. Ele tem cabelos negros curtos e ainda usa barba, dando a ele um ar mais jovial. Papai é claro, mas não tem a pele tão pálida quanto a minha.
– Você pode ficar aqui comigo? – Perguntei me sentindo ruborizado. O que ele pensaria de mim?
– Claro que posso. – Papai sussurrou uma resposta – É só uma fase. Vai passar. Eu amo você.
– Eu amo você pai. – sussurrei e fechei os olhos – Muito.
A respiração de papai ainda me afetava, e me Fe abrir os olhos. Ao lado da cama, na porta do meu guarda-roupa, um espelho de corpo mostrava a diferença entre papai e eu. Não eram muitas, mas as poucas que tinham eram visíveis. Ele era forte, com os braços musculosos, rosto mais quadrado, olhos cinza, a barriga cheia daqueles gominhos que fazem as meninas acharem um homem gostoso. Eu era mais magro, sem todos aqueles músculos residentes. Não tinha aquele monte de gomos, na verdade não tinha gomo nenhum, era apenas uma barriga lisa, braços com poucas curvaturas, nada que possa ser chamado de músculo. Meus olhos eram azuis, meus cabelos negros, como o de papai, mas era maior e dava pra deixar ele para o lado, com uma franja. As minhas pernas são grossas, mas sinceramente, tudo em papai era maior.
Fechei meus olhos novamente, sincronizando a minha respiração com a de papai. Tentei não ficar bravo com a respiração de papai, que fazia seu peito e inflar e murchar, e me movia para trás e para frente. Nos braços ele, eu podia dormir em segurança.
No criado-mudo havia um porta-retratos com as bordas douradas e uma foto da minha mãe, já falecida há 13 anos. Ela era loira, e tinha traços parecidos com os meus como os olhos azuis e a pele pálida. Seu nome era Violet, e ela morreu em um acidente de carro. Eu não lembro muito dela pois era muito novo na época, mas ainda sentia a presença dela em mim. Eu a amava, e tinha certeza disso.
Senti o corpo de papai relaxar. Dei na cama e deixei que ele deitasse ao meu lado, apena segurando-me em um abraço caloroso. Perto dele, meus sonhos não eram nada. Eu não tinha medo de nada.
Fechei os olhos e deixei o sono me embalar, sem medo do que minha mente iria aprontar dessa vez.
(...)
Acordei de manhã com os braços do meu pai no meu pescoço, e as pernas entrelaçadas nas minhas. Seu corpo grande esmagava o meu, me deixando sem fôlego. E apesar do desconforto, e do pesadelo na madrugada, eu sonhei com uma barra de chocolate sendo mastigada por um touro verde sem os dentes da frente. Hilário, ou esquisito. Mas como ultimamente tudo sobre mim tem sido esquisito, eu quis variar um pouco e batizar o sonho como hilário.
– Pai... – Sussurrei sem efeito. Eu precisava ir para a escola, hoje era o ultimo dia do bimestre para recuperar notas, cá entre nós, eu tenho uma mania feia de deixar tudo para a última hora – Pai... – Falei o empurrando para o lado.
Papai resmungou e se espreguiçou, acertando seu braço em mim.
– O que foi? – ele disse com a voz arrastada.
– Eu tenho aula. – Falei o empurrando – E você deveria ir trabalhar né? Eu acho que sim.
Meu pai é CEO de uma joalheria aqui em Londres, a cidade onde eu nasci. Ele sempre me trazia uma peça ou outra, sempre de diamantes. Ele tinha certa atração por diamantes que eu não conseguia entender, mas me fazia rir sempre.
Papai levantou com pressa, revelando seu corpo seminu, coberto apenas por uma samba canção de seda azul. Eu corei, e agradeci por ter dormido de calça moletom, apesar de estar sem camisa.
Meu pai dizia que dormir sem camisa era uma maldição de família. Eu me sentia incomodado ao dormir com qualquer coisa cobrindo o meu peito que não fosse o edredom.
Tomei um banho rápido enquanto papai preparava o café da manhã. Os famosos ovos com bacon e torradas que me abriam o apetite. Ambos comemos com pressa. Ele sempre me dava uma carona até a escola, já que ficava a caminho da joalheria.
Entramos no Audi cinza e papai dirigiu quase que desesperadamente até a porta do colégio. Estávamos mega atrasados, e a culpa era toda dele. Quem mandou aquele homem ter braços tão reconfortantes? Meu porto seguro.
Olhei para papai no volante e me perguntei se ele pensava o mesmo sobre dormir comigo. Algo no seu sorriso satisfeito me dizia que sim, mas algo nesse mesmo sorriso satisfeito me dizia que não. Ele era um mistério, um mistério que eu ainda iria desvendar.
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E então gente? Espero de todo coração que tenham gostado, ainda tem muito mais pela frente.
Obrigado, até logo.
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