Capítulo 1 - Ladrão?

Parte da série O sobrinho do Papai Noel

Véspera de Natal. O normaço me atinge com um bafo de dragão enquanto olho a noite da cidade pela janela do meu apartamento. Sinto-a fria como sempre, mesmo vendo alguns enfeites nas ruas, pirilampos artificiais. Obviamente, nenhum floco de neve está pairando no ar.

Este ano estive bem sobrecarregado no trabalho. Consegui com algum custo folgar durante o derradeiro final do ano, mesmo assim, no aconchego do lar, não consigo descansar e dormir.

Liguei para a minha irmã há pouco. Ela gostaria que eu estivesse passando o Natal com ela, acha que ando muito sozinho, mas a verdade inconfessável é que não suporto meu cunhado e acabo me sentindo um tanto deslocado e solitário mesmo na companhia deles.

Por isso, prefiro ficar como estou. Literalmente só. Sem as falsidades impostas pela data, e que não sobrevivem depois dela neste mundo cão. Enfrento sozinho, semi-nu e desarmado, as reflexões que mais um final de ano inevitavelmente traz, e aos poucos, me vejo derrotado, perdendo o sono e a coragem.

Meu olhar se volta para o interior do meu apartamento, e é atraído por um monumento à minha contradição. Comprei um pinheiro, e o deixei todo enfeitado com diversos penduricalhos e um tradicional pisca-pisca. São curiosas essas coisas que a gente faz, mesmo que racionalmente não concordemos com a essência delas.

Bebo um gole do vinho barato da cesta básica de Natal, e ele desce seco pela garganta, me despertando ainda mais de início. Exatamente como se não tivesse para onde ir, meus indecisos pés descalços vão sentindo o carpete do corredor, até o meu quarto. Sento na cama, e me distraio ouvindo o murmurar distante da conversa dos vizinhos. O único termo que identifico vem de vozes infantes: Papai Noel.

Trago mais um pouco no gargalo da garrafa, enquanto penso na enganação imposta às inocentes crianças. E penso, com ironia, que se Papai Noel existe, esta noite vou ganhar um homem. Bonito, másculo, sincero, sensível, companheiro e muito bom de cama. E vou viver muito feliz com ele, até o fim da vida.

Rio um pouco, da minha própria tolice. De fato, um cara assim não era fácil de encontrar. Já tentei, sem sucesso, claro, e não acho que o problema seja comigo. Eu mesmo sou um cara que costumam chamar de gatão, gostoso, tesudo. E me acho razoavelmente fácil de se conviver. Mas sempre me ferrei em minhas tentativas de encontrar um companheiro. E assim começam a me passar pela cabeça nomes e rostos que eu preferia esquecer.

A garrafa logo é abandonada vazia e largada, assim como eu na cama, descartado, envolto pelo calor implacável, mas brando se comparado à solidão. Finalmente, depois de remoer exaustivamente o âmago da minha própria ferida, sou agraciado com um momento de sono...

Minha consciência ressurge entorpecida, num daqueles momentos em que a gente desperta à noite mas logo adormece novamente. Só que repentinamente, começo a ouvir um ruído. Abro os olhos, e alerta, percebo que os sons parecem vir da minha sala! O mais discretamente possível, olho pelo corredor e vejo exatamente a parte onde está a Árvore de Natal.

Agaixado de costas para mim, está um indivíduo, vestido de Papai Noel, procurando alguma coisa no saco todo enfeitado ao lado dele. Mesmo na penumbra, iluminada fugazmente pelo fraco pisca-pisca, vejo que o invasor não tem nada do físico do bom velhinho, parecendo bem mais forte. Pisquei os olhos, para ter certeza de que não era um efeito do vinho, mas ele continuava ali!!! Logo percebo que só poderia ser um ladrão, aproveitando-se da data para poder andar na rua com propriedade alheia desapercebido.

Esse pensamento provoca-me uma descarga de adrenalina. Sem pensar direito, avancei pelo corredor, peguei a primeira coisa que pude e golpeei-o violentamente na cabeça, ele mal pode reagir. Mesmo caido, o acertei mais duas vezes, até perceber que o objeto na minha mão se quebrara. Se eu soubesse, teria desejado que o Papai Noel me trouxesse um telefone sem fio.

Arfando, olho para os lados afobado, tentando pensar no que fazer agora. O cara poderia acordar e reagir. Eu tenho que imobilizá-lo. A única coisa que me pareceu forte o suficiente para isso foi o pisca-pisca na árvore de Natal. Retirei a ponta dele o mais rápido que pude, coloquei o cara de bruços e amarrei as duas mãos dele por trás das costas. Para garantir, amarrei os dois tornozelos dele juntos também, e forcei os dois nós a ficarem bem unidos. Fiquei satisfeito. Esse meliante com certeza está tendo o que merece!!!

Agora, só precisava chamar a polícia. Lembrei-me que havia quebrado o telefone da sala. Sorte que tenho uma extensão no quarto, o problema é que esse aparelho é um usual, com fio. Um pouco cismado por tirar os olhos do ladrão, mas não vendo outra alternativa, fui para o quarto.

Mas fui atendido por uma gravação, aquela voz simpática com a desagradável informação de que eu não haviam atendentes disponíveis no momento. Me sentei na cama, enquanto começava a tocar uma música, que curiosamente eu ainda não havia ouvido nesses sistemas telefônicos.

Meia hora mais tarde, já íntimo daquela melodia, imaginava policiais jantando com suas famílias, e me perguntava por que nunca me lembrava de ligar a esses serviços nas noites de insônia, pois a eficácia em fazer qualquer um adormecer rapidamente estava para se confirmar...

Comentários

Há 1 comentários.

Por em 2012-11-30 13:17:28
Caracaaa esse conto é perfeito *-*