Cap. 05,1:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

O Rei tinha os pulmões inundados de fumaça, mas pele e cabelo haviam sofrido mais que outras partes do corpo. Para um humano o incidente teria sido fatal, mas, no Rei dos Demônios, o reparo seria rápido e eficiente. Gideon começou bloqueando todos os receptores de dor no corpo ferido. Primeiro curou os pulmões, depois, trabalhando depressa, começou a substituir pedaços de pele, rejuvenescendo-a, célula a célula. Quando conseguiu substituir metade da pele do corpo de Noah, Gideon começou a trabalhar em Legna. Não podia concluir antes o trabalho com o Rei, ou ela não teria chance de sobreviver. Os dedos tocaram o rosto antes tão lindo.

Jacob assistia a tudo fascinado. O processo era rápido e impecável. O tom natural voltava à pele de Legna, e ela já respirava melhor, também.

Mas Gideon ainda precisava retomar ao Rei. Emocionado, ele usou uma das mãos para continuar trocando a pele queimada de Noah enquanto, com a outra, devolvia os longos cabelos castanhos de Legna.

Quando restava apenas a última tarefa de devolver os cabelos a cabeça do soberano, Gideon interrompeu novamente o trabalho com o monarca para cuidar de Isac.

Ele havia sido o menos atingido, pelo menos internamente. E isso era ilógico. Gideon estava confuso. Se alguém devia ter saído ileso da conflagração, esse alguém era Noah. O dano causado a pele de Isac foi rapidamente reparado, e Gideon tentou encontrar durante o exame, alguma pista da razão de ele ter sido o menos lesado. Enquanto fazia crescer seus cabelos, ele o induziu num sono profundo que reforçou duas ou três vezes, impedindo-o de despertar em seguida.

Satisfeito, ele se levantou e saiu de perto dos Demônios caídos no chão, indo se debruçar sobre um quarto corpo que ninguém havia nota do ate então.

- Samson - Gideon respondeu a pergunta silenciosa.

Elijah ajudava Jacob a mudar os convalescentes de lugar, levando-os para uma área mais segura e limpa.

- Descanse, Elijah. Vou levá-los para minha casa.

- Não pode! Ainda não sabemos se outros nigromantes podem chegar lá depois do incidente daquela outra noite.

- O feiticeiro de Dover está preso. Não voltou para dar sua localização aos outros.

- Eu sei, mas... Ah, Jacob, me desculpe. Não devia estar aqui tentando ensinar você a fazer seu trabalho. Faça como achar melhor.

- Venha comigo, Elijah. Tenho espaço suficiente em minha casa, se precisar repousar em local seguro.

Quando Gideon entrou no quarto, Jacob estava sentado em uma cadeira ao lado da cama de Isac, segurando as mãos dele.

- Quando vai acordá-lo? - perguntou o Defensor.

- Acho que ele deveria dormir por mais dois dias, pelo menos - respondeu o médico.

Lá fora, a lua brilhava cheia no céu. Jacob nunca mais teria de temer a loucura da lua, Gideon pensou. Como seria viver livre dessa ameaça a sanidade? Passara os últimos anos estudando formas de preservar a paz interior durante esses tempos sagrados. Podia afastar a loucura, evitá-la, ignorá-la, mas nunca eliminá-la. A marca era a única cura.

Mas havia uma armadilha. Nas noites de Samhain e Beltane, na lua cheia, um par marcado seria aproximado por simples e puro impulso sexual, um desespero impossível de ignorar. Por isso, historicamente, um Defensor era forçado a se retirar, caso sofresse a marca. Como permanecer vigilante nas duas piores noites do ano para a loucura dos Demônios, se ele mesmo estaria obcecado pelo par? Jacob, por exemplo, não se afastava da cabeceira da cama de Isac.

Gideon nada revelara ao Conselho sobre essa descoberta, esperando que ter um casal de Defensores pudesse servir para modificar a situação, impedindo-o de roubar de Jacob tudo pelo que ele vivera nos últimos séculos.

- Jacob, você não pode ficar aqui - Gideon anunciou. - Ele não vai precisar da sua presença. Não hoje. Está curado, e o sono vai servir para restaurar as energias do druida. Ele ainda estará dormindo quando você voltar, ao nascer do sol.

O Defensor não respondeu.

- Jacob... Jacob, não pode ficar ai sentado até ele acordar. Tem obrigações a cumprir esta noite.

- A noite já acabou.

- Ainda restam três horas. Precisa ter certeza...

- Não se atreva a dizer o que devo ou não fazer! - Jacob explodiu, levantando-se com os punhos cerrados e chutando a cadeira contra a parede, estilhaçando-a. - Conheço minhas obrigações!

Gideon nem piscou diante da demonstração de violência. - Vejo que ainda não compreende a intensidade da união em que entrou, Jacob. Contos de fada e a memória distante dos pais de Noah não são suficientes para explicar a marca.

- É mesmo? Gostaria de dizer isso a Noah?

- Nosso Rei conhece as alegrias e os infortúnios da marca. Viver com pais marcados é bem diferente de vê-los de longe. Porém, você agora sabe mais do que ele, mais do que ele jamais poderá saber, sobre o que é estar ligado irremediavelmente a presença e a existência de outro ser. É imperativo que você lembre que sei mais sobre essa história toda do que você, e por isso deve seguir meus conselhos. Isac nunca poderá ter importância maior do que o seu trabalho para você.

- Não pode me dizer...

- Jacob, há uma lei exigindo a remoção do Defensor que se torna marcado.

- O que? Eu nunca ouvi falar...

- Também nunca ouviu falar em Demônios e Druidas unidos para a vida. Jacob, já fomos bons companheiros, e lamento que isso tenha mudado com o tempo. Não estou dizendo que a lei tem de ser aplicada, nem que alguém vai saber de sua existência. Espero que ninguém saiba dela até termos tempo para... Para você provar que a aplicação da lei não é necessária no seu caso.

Jacob respirou fundo, tentando relaxar e raciocinar.

- Porém, se um único Demônio conseguir passar por sua vigilância agora, se um único humano for prejudicado, especialmente agora que as noticias sobre os Druidas se espalharam, as ramificações serão rápidas e dolorosas. Você nunca falhou antes. Seu irmão jamais falhou antes de você. Não se exponha ao risco da condenação, agora que esta tão próximo da felicidade.

- Sabe o que fez de mim Defensor, Gideon?

- Você foi escolhido por Noah.

- Como meu irmão antes de mim. Como meu avô e pelo menos uma dúzia de outros ancestrais. Dizem que esse é o único trono no mundo dos Demônios onde se encontra alguma ascensão biológica direta. Há algo no sangue de minha família que nos predestina a ser Defensores. Quando Adam foi escolhido, pensei que eu nunca seria chamado. Eu era... diferente quando ele ainda vivia.

- Isso foi há muito tempo, Jacob. Éramos todos muito diferentes.

- Sim, duzentos anos... Eu era o caçula, o bebe da mamãe, independentemente da idade. - Jacob riu. - Era mimado, quase indolente, inconseqüente...

- Estávamos em guerra com os Vampiros. Você se tomou um caçador impressionante.

- Excitação e glória. E mulheres... Naquela época eu ainda não havia me cansado delas. Então, Adam desapareceu de repente, sem explicação, e deduzimos que ele havia perecido... e que eu seria convocado para ocupar seu lugar. Nunca perdi uma batalha, Gideon. E, enquanto eu viver, jamais permitirei que um Demônio transgrida a lei, prejudicando seres de outras espécies. E aqueles que transgredirem não escaparão da justiça. Essa é minha vocação. Não há lei ou amor que possa me afastar dela. Só a morte. Se mencionar essa lei para os membros do Conselho, serei afastado por aqueles que me odeiam. Kane ainda não está preparado, e só ele tem os instintos de Defensor que marcam minha família.

- Uma anomalia genética.

- Exatamente. Sinto em minha mente o exato instante em que um Demônio começa a ultrapassar a linha da razão em seus pensamentos. É como um anúncio, e eu sou o único ser vivo capaz de ouvi-lo e interpretá-lo. Senti-lo. Por que acha que sempre sei? Se continuo aqui sentado, é porque não sinto necessidade de deixá-lo para ir cuidar do meu dever. Se fico, e para proteger o futuro dos Demônios, para protegê-los deles mesmos. Eu não terei herdeiro não de sangue, não genético. Então, se fico aqui sentado velando por seu sono, é porque sinto que essa é minha obrigação. E não creio que tenhamos de voltar a essa discussão Gideon.

O médico entendia a mensagem. Jacob não se deixaria atormentar pela culpa por estar protegendo sua família.

- Sou grato por ter salvado minha vida e a de pessoas que tanto amo, Gideon. Saiba que serei sempre grato, e que pode cobrar essa dívida de gratidão, caso algum dia julgue ser necessário.

- Pode contar comigo sempre. Virei servi-lo sempre que precisar de mim, Jacob.

- Eu sei. Mas... não consigo mais entender você, velho amigo. De repente tornou-se um estranho para mim. Sempre o considerei um homem de sabedoria e benevolência, alguém que, como eu, jamais suportaria ver um inocente prejudicado ou ferido. Não posso crer que em todos esses anos não tenha pensado em contar a Noah que a cura de nossa doença havia sido obliterada com os Druidas. Ele passou todo esse tempo obcecado pela busca da cura! E você o deixou procurar, deixou que ele alimentasse esperanças... Foi cruel e arrogante. Não teve consideração. Não foi uma atitude típica de um ancião reverenciado e respeitado. Não temos mais nada em comum, Gideon, e sinto muito por isso.

Noah foi o primeiro a acordar do sono induzido. Legna e Isac ainda dormiam.

- O que aconteceu, afinal? - Jacob quis saber.

- O druida quase nos matou.

- O quê?

- Isac estava assustada com a situação. Legna e eu erigíamos barreiras de proteção, e ele se aproximou de nós em busca de conforto e segurança. E drenou minha energia com uma violência jamais vista antes. Foi como se uma luz se apagasse dentro de mim. Fiquei... vazio, morto... cego, surdo e paralisado perante um poder que comando sem hesitação desde os oito anos de idade.

- O poder de anular as forças alheias despertou, então?

- Com força avassaladora, meu amigo.

- Mas, se você e Legna foram drenados, como conseguiu provocar aquela poderosa parede de fogo?

- Eu não fiz nada. Isac não só nos privou do poder. Ele o roubou de nós. Foi ele quem gerou a parede de fogo. E usou minha energia e meu poder para isso.

- Impossível, Noah!

- Não é impossível. Quando foi dominado pelo terror, Isac tornou-se o epicentro de todo o poder que havia naquela sala. E foi uma experiência ainda mais aterrorizante para ele do que a anterior.

- Gideon não me disse nada sobre isso... Por favor, Noah, peço que não o culpe por isso. Não foi intencional. Como ele podia saber? Ninguém sabia! E se Gideon sabia e não me contou, juro que dessa vez o matarei por isso!

- Não creio que ele saiba. Antes da chegada de Isac, eu me encontrava com dois acadêmicos lendo um pergaminho que explicava em detalhes a natureza de um Druida. Não havia no documento nada que Gideon já não houvesse mencionado. Não. Isso é algo diferente, Jacob. Algo de que ninguém jamais teve notícia. Não culpo o druida pelo que aconteceu, mas confesso que, agora, depois de tudo isso, entendo o que significa ter medo de alguma coisa. De alguém. E tenho certeza de que compreende que estar sob o mesmo teto que ele me apavora.

- Então, isso significa que não foi uma força externa que tentou transformar Isac em poeira.

Jacob e Noah se viraram para o médico. Ele havia entrado no quarto sem ser visto, usando sua habilidade de projeção astral.

- Foi o próprio Isac. Extraindo seu poder, Jacob, e usando-o para satisfazer o que era, naquele momento, um forte desejo.

- Sim, ele já comentou alguma coisa sobre desejar poder levar-nos a alguns lugares, como eu faço. Mas... Você nunca mencionou que ele teria essa habilidade!

- Uma aberração. Uma mutação provocada pelo cruzamento de Druidas e humanos. Não posso explicar com precisão. É uma anormalidade construída ao longo de muitos séculos. Eu disse que algumas coisas poderiam ter mudado. Porém esperava encontrar um certo enfraquecimento em função dessa improvável combinação genética. Nunca suspeitei de que um Druida pudesse ficar mais forte pela associação com os humanos. E também estou percebendo que, se Isac não é a única, essas mesmas aberrações estarão presentes em outros. Não vai haver dois Druidas iguais. Eles terão poderes que serão conseqüência direta dos parceiros. Isac é praticamente um espelho para Jacob. Absorve sua imagem, seu poder, tomando-se assim seu reflexo. Por isso eles são tão perfeitos para nós. Por isso ajudam a conter nossa natureza mais básica. - Gideon olhou para Noah. - Isac não é diferente de você ou de mim quando éramos jovens e ainda estávamos nos primeiros estágios do desenvolvimento. O que toma a situação tão difícil para você, Noah, é a humilhação de ter sido surpreendido.

- Eu sei. Entendo o que está dizendo. Mas ele pode fazer o mesmo com todos os Nightwalkers? E com os nigromantes? Tem idéia de quanto isso o torna poderoso e perigoso como individuo?

- Isac é doce e bondoso. Uma alma diplomática - Jacob apressou-se em dizer. - Será nossa responsabilidade cuidar para que ele fortaleça o respeito e a consideração que já estão enraizados em seu código moral. Ele é capaz de dar a vida por qualquer um de nós. Vai ser horrível ter de contar a ele sobre o que houve. Quando souber que algo que ele tem dentro de si e que não pode controlar causou toda aquela destruição... Quando ele entender que causou sofrimento e quase destruiu dois seres de quem aprendeu a gostar muito... Como acha que ele vai se sentir, Noah?

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