Cap. 04,1:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

- Ele disse alguma coisa sobre nosso... estranhamento?

- Não. Você disse.

- Eu?

- Quando ele foi atacado. Disse que ele não gostaria de saber que você o curou. A propósito, ele não disse nada nem quando soube disso.

- Não?

- Não. Eu diria que Jacob aceitou os fatos com bastante facilidade e serenidade.

- Entendo

Gideon já começara seu exame. Ele era pequeno demais para um druida, mas podia ver a marca clara como o dia; e via também a marca de Jacob nele. Sentia o poder que crescia a cada instante. Em poucas horas, ele se transformara, tomara-se mais forte em aspectos que já conhecia e em outros que ainda descobriria.

Jacob e o druida haviam se unido. O defensor quebrara justamente o tabu que jurara proteger. O mesmo tabu que o levara a enfrentá-lo oito anos atrás. Gideon sabia que, naquela ocasião, Jacob tinha o direito e o dever de enfrentá-lo e contê-lo, mas nem por isso seu orgulho ficara menos ferido. Não desejava o mal do Defensor, mas detestara a descoberta por ele promovida. O medo.

Havia sido humilhante descobrir que nenhum poder, nem mesmo o de um ancião com um milênio de conhecimento, experiência e sabedoria, podia impedi-lo de cair vitima dos mais primitivos comportamentos. Julgava-se acima de tudo isso. Agora tinha medo de si mesmo. O isolamento tinha por objetivo proteger outros seres. De qualquer maneira, era reconfortante saber que Jacob não guardava ressentimentos. O que o perturbava era constatar que o pequena ser hibrido compreendia que ele precisava saber disso.

- Vim para falar sobre sua existência - ele anunciou com tom seco. - Peço desculpas se pareço rude, mas minha cultura é diferente da sua. Valorizamos a privacidade, mas sabemos que às vezes temos de desrespeitá-la para dar atenção a questões mais importantes. Seguimos convenções diferentes aqui. Nascemos com meios para estabelecer comunicação ou para viajar sem usar a tecnologia dos humanos. E você, pelo que tenho notado, é um sinal. Uma nova fraqueza.

- Como assim?

- Sempre aprendemos que a união entre um Demônio e um humano teria repercussões.

- Isso é fabula. Descobri uma profecia...

- Sim, já sei, mas não é fabula. Não totalmente. Há sempre uma dose de verdade em todas as histórias.

- Então... o que há de tão terrível nessa união? Jacob será prejudicado? Eu vou morrer?

- Você é imortal.

- Eu sou... o quê?

- Druidas são imortais. E você é meio druida. Portanto, é imortal.

- E como sabe disso?

- Os imortais têm um código genético especifico. Posso ver esse código em você. E sei também que o despertar do DNA adormecido é a causa das mudanças que está experimentando.

- Ah... E por que o DNA despertou agora?

- Por causa do seu contato com Jacob. O despertar se deu no momento do primeiro contato físico.

- Como?

A voz masculina chamou a atenção dos dois para a janela, onde um funil de poeira ganhava a forma física de Jacob. O Defensor aproximou-se da cama, sentou-se ao lado da cabeça do menor e o tomou nos braços, como se quisesse protegê-lo. Os olhos permaneciam fixos em Gideon.

O médico decidiu que a melhor coisa a fazer seria responder, dar continuidade a conversa com naturalidade.

- Quer saber como despertou as habilidades latentes dele? Sem entrar numa complexa e longa explicação dos detalhes, há um código inscrito no seu DNA que, quando próximo do dele, desencadeia maciças alterações sistemáticas no DNA de Isac, mudanças que são repetidas no seu DNA, embora em menor escala.

- No meu? Mas eu não sou diferente.

- Não notou novas habilidades?

- Não. Eu teria percebido se algo fosse diferente.

- Jacob, esta esquecendo algo.

- O que, meu pequeno?

- Você tem uma nova habilidade. E a esta usando agora.

Ele estava certo.

- Isac acaba de lembrar um poder que é novo para mim.

- Telepatia - Gideon concluiu. - Isso se encaixa não só no que sei, mas na profecia, também. É um dos primeiros sinais.

- E eu tenho uma certa empatia com relação aos inimigos.

- Não, Isac. O que você tem é premonição. Você não sente o que o inimigo está sentindo, mas antecipa os sentimentos de alguém envolvido em uma situação prestes a ocorrer.

- Então... Ontem a noite eu senti a tensão do nosso encontro com o nigromante segundos antes de tudo acontecer de verdade?

- Sim, é isso.

- E de que adianta pressentir algo que já está para acontecer? Não tenho tempo para impedir o evento!

- Esse intervalo entre premonição e ocorrência do fato vai aumentar. Em breve terá também a compreensão do que está sentindo. Tudo virá com o tempo, com o treinamento e a experiência. Premonição não e um traço normal para os Druidas, mas notei sua predisposição genética para ela quando fomos apresentados. Druidas tinham... Têm habilidades específicas, como ocorre com todas as raças. Elas estão inscritas em nós, no nosso código, desde sempre, inalteradas, com exceções resguardadas para evolução ou mutação, é claro Agora, é possível que séculos de cruzamento entre humanos e Druidas, toda essa miscigenação que gerou o que você é hoje e agora, tenha causado algumas mutações inesperadas, uma suposição que é sustentada por sua incomum habilidade de premonição. Como nós, os Druidas tiram forças da natureza. Por exemplo, seus sentidos aguçados, a habilidade de cicatrizar rapidamente, a resistência excepcional. Suas novas habilidades de combate físico também são incomuns, uma anomalia, mas é somente da natureza que você empresta a capacidade de sentir a presença de um poder, especialmente do Mal. É uma intuição semelhante a da presa que sente a aproximação do predador.

- O nigromante - Jacob disse. - Eu não o senti, mas ele sim. Foi a premonição? Ainda não entendo como pude deixar de rastreá-lo depois do primeiro ataque.

- Faltou informação. Muitos Demônios vivem em isolamento. Se são intimados, ninguém sabe. E só uma questão de tempo até os nigromantes chegarem a alguém mais próximo do intimidado.

-Então... ?

- Recentemente descobri que Lucas está desaparecido. Presumo que tenha sido intimado.

- Ah... - Jacob ficou tenso. - Lucas é um Demônio da mente. Se eles o aprisionaram, ele os transportará para todos os lugares que quiserem, o que vai permitir que surjam sem aviso prévio.

- Mas não houve fumaça ou cheiro de enxofre como quando Legna se transporta.

- Os mais velhos não deixam mais esse tipo de rastro. O treinamento e a experiência permitem que se transportem e carreguem outros com absoluta limpeza. Enquanto Lucas estiver com eles, será forçado a transportá-los sem aviso prévio, e essa é outra razão pela qual sua segurança está ameaçada. Lucas é alguém muito próximo de todos nos.

- Vamos nos concentrar nos poderes de Isac. Devemos esperar mais alguma coisa?

- Infelizmente, sim.

- Infelizmente? - ele repetiu.

- Estou falando da perspectiva de um Demônio que já participou da guerra com os Druidas. Vou tentar me manifestar sem esse preconceito.

- Por favor - Isac o encorajou com tom seco.

- Mas não sou o único que vai refletir esse preconceito quando a notícia sobre seu poder tomar-se conhecida. Vai enfrentar forte resistência.

- Mais do que já enfrento por ser humano?

- Acho que não fui claro. Você pode ser considerado uma ameaça grande o bastante para renovar as hostilidades que opuseram Demônios e Druidas tantos séculos atrás. Sua vida pode estar em perigo.

- Espere um minuto, pensei que atacar humanos fosse tabu!

- Você não é totalmente humana. Evoluímos muito desde aquele período, mas temos nossos fanáticos, como qualquer sociedade. Gostamos de acreditar que superamos certas fraquezas e estamos além de comportamentos mesquinhos e preconceituosos, mas o medo é um poderoso motivador.

- Fale de uma vez, Gideon - Jacob pediu.

- Ele pode amortecer o poder. Funciona com qualquer criatura sobrenatural. Nigromante, Vampiro, Licantropo...

- Demônio?

- Sim, Gideon confirmou. - E não é só uma redução moderada a menos que sua herança hibrida tenha alterado tudo isso. Ele pode deixá-los temporariamente impotentes. E quando a habilidade desperta, Isac, é para sempre. Terá sempre esse poder de anular a força alheia. Foi assim que o Rei dos Druidas matou o Rei dos Demônios. Eles se encontraram sob razões pretensamente pacificadoras. Quando ficaram sozinhos, o Druida anulou os poderes do Demônio e o matou.

- E como ainda conseguiram confiar um no outro? Sabendo que os Druidas tinham essa superioridade sobre sua raça, como conseguiram conviver, dividir uma cultura com eles? E como puderam erradicar uma raça se nem conseguiram chegar perto deles sem perderem seus poderes?

- Em primeiro lugar, não foi uma questão de confiança, mas de necessidade. Druidas e Demônios deviam ter uma relação simbiótica. Druidas precisam dos Demônios para despertar seus poderes. E um Demônio precisa de um Druida para reduzir sua força.

- E por que um Demônio ia querer... ? Ah! A loucura da lua! - Isac deduziu espantado.

- Sim, em grande parte, embora nossos ancestrais enfrentassem a loucura em grau bem reduzido. Porém, se revisarmos tudo que nos é dito sobre a associação física com os humanos, encontramos uma razão igualmente forte. Prova disso vimos em sua casa ontem à noite, Jacob. Se ele fosse simplesmente humano, seu descontrole teria sido mortal, não só para Isac, como para outros na vizinhança. Felizmente, o poder do druida já esta despertando. Considerando as circunstâncias silenciosas daqueles... daqueles momentos menos focados... Você não percebeu. Quanto a erradicar os Druidas, não foi uma tarefa fácil. A guerra nunca é fácil. Porém, os Druidas têm suas fraquezas, como os Demônios, e basta dizer que elas foram exploradas completamente. Agora, o que temos, o que devo revelar ao Conselho, é que os Demônios nunca encontrarão seus parceiros na raça, mas entre os Druidas. Destruindo os Druidas, sacrificamos o conhecimento de como seria encontrar o espírito perfeitamente complementar. Os humanos chamam de alma gêmea. Nós chamamos essa união de marca. Por isso tantos aqui são solitários e por isso tantos Demônios não conseguem encontrar conforto em um membro carnal. Por isso não há uma marca faz séculos... Até agora. Jacob, você é providencial entre os Demônios. Por isso você e Isac não conseguiram se separar desde que se conheceram. A marca é gloriosa e implacável em sua intensidade. Não pode ser ignorada. Quando um Demônio e um Druida que devem ser unidos pela marca se encontram pela primeira vez, esse encontro desencadeia imediatamente as alterações de DNA que já mencionei. Como vê, estavam destinados a• se encontrarem por esse propósito antes mesmo de nascerem, não obstante a profecia. E isso nos leva a sua fraqueza, Isac. Quando um Druida tem seu poder desencadeado por um Demônio, é necessário que haja uma dose regular de exposição a esse Demônio, mais ou menos como um humano precisa de exposição regular a luz do sol para preservar a saúde.

- Esta dizendo que Jacob é para mim como uma... vitamina?

- É mais como uma fonte de energia. A presença dele a recarrega, especialmente depois de usar suas habilidades em grande medida. Sem essa recarga... Bem, você sabe o que acontece com uma bateria que se descarrega.

- Morre!- Isac murmurou tomado por um medo súbito. - Então... destruíram os Druidas privando-os de sua fonte de energia?

- Foi pior que isso, Isac - Jacob respondeu com tom tenso. - Almas gêmeas unidas pela marca foram separadas.

- Gideon, como puderam destruir as criaturas que mais amavam e de que mais precisavam?

- Poucos agiram dessa maneira espontaneamente. Quase nenhum, para ser mais franco. Coube a nós, os que não tinham parceiros, a dura tarefa de impor aos outros essa norma.

- Jacob... - Isac estremeceu de medo.

- Não me orgulho dessa historia, druida. Fui membro das forças encarregadas de prender membros relutantes de minha própria espécie, forçando-os assim a matar seus amados parceiros. Eu era muito jovem na época, mas isso não desculpa nem justifica o que fiz. Só posso pedir que nos perdoe por nosso comportamento bárbaro, como uma sociedade perdoa outra pelos erros do passado e da juventude. Não espero nem peço sua piedade por isso, mas quero que saiba que sofremos igualmente por nossa loucura. Depois da guerra, uma onda de suicídios quase acabou com a nossa população. Hoje, vivemos sem amor, levamos vidas incompletas e constantemente atormentadas pela loucura. Somos como desertos áridos.

Isac não conseguia assimilar o que estava ouvindo. Tinha a cabeça cheia de imagens de Demônios aprisionados por semelhantes, as almas clamando pelos parceiros que morriam de inanição sem eles. Ele mesma não conseguia imaginar como seria viver sem Jacob, mesmo depois de tão pouco tempo.

- Guardou tudo isso durante todos esses séculos, Gideon? Jacob perguntou. - Tem consciência das implicações da existência de Isac?

- Sim. Eu tenho.

Isac olhou para Jacob esperando por uma explicação.

- Tudo isso significa, Isac, que Druidas sempre existiram, durante todo esse tempo, e mesmo enfraquecidos e reduzidos em número, alguns podem ter atravessado o caminho de um ou outro Demônio. E como nenhum deles sabia, o Druida, nesse caso, pode ter morrido inexplicavelmente em conseqüência da privação que se seguiu a esse encontro. Também significa que, durante todos esses séculos como Defensor, eu posso ter contido inadvertidamente Demônios que se sentiram intuitivamente atraídos por outros híbridos de humano e Druida. Gideon, não devia ter guardado esse segredo!

- Eu também não sabia de nada. Não até encontrar Isac. Acreditava ter visto o ultimo Druida há um milênio. Creia-me, Jacob, tenho plena consciência das ramificações de meu silencio. Não preciso da sua condenação alimentando minha culpa. - Gideon levantou-se. - Vou pedir a Noah para convocar o Conselho ainda esta noite. Repetirei nessa reunião tudo que acabei de dizer aqui, e então sua parceira estará em perigo. Vim preveni-lo o para que possa tomar providências e garantir sua segurança e a dele. Se algo acontecer com você, Isac não sobreviverá por muito tempo.

Depois dessa declaração, ele desapareceu num raio de luz prateada.

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