Cap. 03:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

Era a primeira viagem de Isac ao estilo dos Demônios. A primeira de que se lembrava, pelo menos. Jacob a transformou em poeira e o guiou pela janela. Depois, assim que começaram a voar, ele os devolveu a forma natural, mantendo-o em seus braços.

- Não é muito longe - ele disse. - Avise-me se sentir muito frio.

Isac o segurava com tanta forca, com tanto desespero, que temia ter rasgado a seda fina da camisa dele. Depois de um tempo, porem, o coração foi batendo mais e mais compassado, permitindo que ele respirasse novamente.

Mesmo assim, ainda não tinha coragem para olhar em volta e apreciar a paisagem.

- Como se sente? - perguntou Jacob.

- Vou sobreviver - ele respondeu com voz tremula. - “Vou ficar bem... Assim que puser os pés no chão. “

Jacob empurrou sua cabeça de encontro ao ombro forte, sorrindo discretamente do pensamento sarcástico de Isac. Ele estava sempre esquecendo de que não havia mais privacidade para seus pensamentos, como esquecia também que poderia ler a mente dele, se quisesse.

- Aonde vamos? - murmurou bem perto de seu ouvido.

Os lábios suaves se movendo contra a pele de seu pescoço, o hálito quente na pele... Jacob não conteve um tremor, sentindo uma súbita e intensa necessidade que invadia seu corpo e se fazia mais forte a cada visita. Já havia percebido que, em breve, suas boas intenções não teriam nenhuma importância. Se continuasse perto dele, acabaria destruindo essa criatura com a força de seu desejo.

Ele era uma tentação forte demais. Quase irresistível, na verdade. O problema não era do outro. Ele era o descontrolado, o enlouquecido, o perigoso. Havia sido humilhante ter de reconhecer em si mesmo as faltas que condenava e censurava nos outros Demônios, inclusive em Kane. Fora forçosamente levado ao outro lado da rua. Agora conhecia a sensação de ser tragado para o fundo do poço da imoralidade, mesmo reconhecendo os princípios e as normas que exigiam correção e controle.

- Jacob?

A voz de Isac o fez perceber que ainda não havia dado uma resposta a pergunta que ele fizera.

- Vamos para minha casa - ele disse, usando a resposta como uma razão para aproximar o rosto do dele, sentir o perfume dos cabelos. Percebia que, pouco a pouco, ele absorvia mais e mais de sua fragrância pessoal.

Eles aterrissaram sobre um patamar rochoso de onde se tinha uma vista fascinante do que parecia ser a costa da Inglaterra, bem atrás da casa de Jacob.

Assim que Noah reassumiu sua forma normal ao lado deles, os três entraram. Quando passaram por uma porta, Isac notou uma rachadura entre as pedras que compunham a parede da casa.

- Com tudo que e capaz de fazer, devia usar seu poder para estalar os dedos e consertar aquela pare de - ele disse.

- Se fosse tão fácil assim resolver tudo com um estalar de dedos, estaríamos protegidos contra os seres cruéis que insistem em fazer uso das artes das trevas - Jacob respondeu resignado.

- Bem, não quero justificar ou desculpar atos condenáveis, mas os humanos não sabem que vocês integram uma raça de seres inteligentes, um grupo composto por famílias, costumes, tradições e cultura. - Ele franziu a testa e balançou a cabeça, reconhecendo a fragilidade do argumento. - Desculpe. Essa tem sido a desculpa para quase todas as guerras travadas pela humanidade ao longo da historia. Esqueça o que eu disse.

Jacob tocou-o no rosto, emocionado com a demonstração de compaixão por sua gente, especialmente depois de como os supostos representantes de seu povo o trataram. A presença de Noah desapareceu completamente de sua consciência, e ele o beijou nos lábios com ternura, ignorando a dor causada pelo esforço de contenção dos impulsos.

- Eu sinto muito, meu pequeno, os membros do Conselho não deviam ter tratado você tão mal. Não quando tem se esforçado tanto para tentar nos ajudar.

- Eles não sabem que tenho trabalhado para isso - ele sussurrou compreensivo, fazendo o coração do Defensor ficar ainda mais pesado diante de tanta benevolência. - Eles sentem medo, e tem direito a esse sentimento. - Isac tocou os cabelos de Jacob, ajeitando uma mecha atrás de sua orelha. - o medo sempre traz a tona o que há de pior nas criaturas.

Noah tossiu, tentando lembrá-los de sua presença. Os dois se afastaram sobressaltados. o rei estava surpreso com a energia que sentia entre eles. Jamais vira nada parecido entre um Demônio e um humano antes. Era algo que o fascinava e perturbava. Cada vez que os via juntos percebia a luz que os emoldurava como raios de sol. A luz era o fogo de almas complementares se unindo.

- Isac, você tinha alguma coisa para nos dizer... ele lembrou.

- Sim.

Mais uma vez, Noah sentiu a hesitação na voz dele. Podia ver em seu rosto as evidências do esforço que fazia para decidir se devia ou não falar. Era encantador para o Rei saber que ainda havia tanta inocência no mundo.

Isac deixou os pergaminhos sobre uma mesa. Jacob e Noah a seguiram. Os dois homens só precisaram de um momento para perceber que o texto diante deles estava escrito em sua linguagem arcaica. Era o mesmo texto que Noah traduzia com grande dificuldade na noite em que Jacob conhecera Isac Eles trocaram um olhar perplexo por cima da cabeça dele.

- Muito bem, olhem aqui - disse, apontando para um ponto no meio do pergaminho. Esse e o original do Pergaminho da Destruição. A propósito, um grande nome. Ele foi escrito séculos antes de um outro livro com o mesmo nome, o livro e uma tradução do pergaminho. Vejam aqui: "Quem quiser conhecer o destino da raça dos Demônios deve consultar essas profecias". E assim por diante. Certo? É bem parecido com sua versão de Revelação. Correto?

Noah assentiu devagar. Aquele era um dos documentos mais sagrados da raça. Era a lista dos destinos especiais e das leis originais. Isac removia as primeiras paginas do pergaminho com grande cuidado e reverencia.

- Já conhecem essas passagens do texto, sem duvida. As que se referem a como o nascimento do Cristianismo entre os humanos afetaria para sempre o destino dos Demônios. Estão vendo? Aqui diz como o Cristianismo iria se tomar uma religião majoritária entre os humanos, como a magia seria sufocada em conseqüência disso, diminuindo a ameaça dos "mal-intencionados", que presumo serem os nigromantes. Não é tão especifico, por isso fui fazendo deduções.

- Deduziu bem, meu pequeno - Jacob elogiou. - Você esta absolutamente certo.

Ele moveu a cabeça em sentido afirmativo e removeu mais algumas páginas.

- Ótimo. Bem, seguem-se paginas de várias profecias.

- No livro que e a versão mais moderna deste pergaminho, a tradução tem pequenas falhas nesse trecho. Mas segue-se esse outro pedaço - ele apontou para outro trecho do pergaminho -, e então tudo fica completamente maluco. De início não pude entender por que a tradução era tão ruim, cheia de erros, e pensei que, talvez, pudesse ter havido uma troca de tradutores. Mas então me lembrei que, como acontece com todas as grandes doutrinas religiosas, a influência daqueles que encomendam a tradução sempre determina o que é considerado aceitável e uniforme para a crença de maneira geral. Até hoje, trabalhos importantes não são aceitos em suas verdadeiras traduções porque isso abriria muitas brechas nas fundações desses sistemas de crença. Quando o texto é traduzido apropriadamente, fica fácil compreender porque houve tanta relutância em permanecer fiel ao pergaminho original. Aqui, vou ler uma passagem:

“E então vai acontecer que nessa grande era, as coisas retornarão ao foco de pureza que a raça dos Demônios sempre se esforçou para alcançar. Aqui virá o significado e o propósito de nossas mais estritas leis, a de que nenhum humano incorrupto deverá ser prejudicado, a de que a coexistência pacífica entre as raças deverá ser a norma... ”

- Não há nada diferente nisso do que é comumente conhecido - Noah comentou, fazendo um grande esforço para tentar acompanhar a tradução fluente.

- Espere, já vou chegar lá - Isac disse virando uma página. - Escutem:

“Devemos nos defender com maior rigor na medida em que o tempo se aproxima. Na era da rebelião da Terra e do Céu, quando fogo e água se lançam como o caos sobre todas as terras, o mais velho dos velhos retornará, tomará sua companheira, e o primeiro filho do elemento espaço nascerá, companheiro de infância do primeiro filho do tempo, nascidos de Defensores. O Demônio. O Druida. E tudo retornará ao estado em que tudo começou. Pureza restaurada.”

- Agora - Isac continuou, sem perceber a perplexidade dos dois homens , não consegui entender por que isso foi excluído da tradução - Isac comentou compenetrado. - É tão simples! Uma profecia, mais nada. Por que seria tão assustadora? Foi quando li todas as suas leis e percebi...

- Todas? - Noah interrompeu. - Você só esteve lá embaixo algumas horas por dia, e só por alguns dias!

- Eu leio depressa.

Noah se agarrou ao encosto de uma cadeira próxima, olhando para o Defensor em busca de consolo ou conforto, mas só viu a própria apreensão refletida nos olhos do amigo. Não tinha alternativa senão ficar ali parado enquanto o jovem seguia em frente como um trem desgovernado.

- De qualquer maneira, e aqui que entram em cena suas leis relativas a cruzamento entre raças - Isac dizia. O tempo todo eu pensei que podia ser uma incompatibilidade química, ou a possibilidade de, por terem esse comportamento animalesco em suas naturezas, temerem causar dano a uma parceira de outra raça. Vocês têm até livros sustentando essas teorias. Pureza. Essa é a palavra-chave. Ela é usada com freqüência nesse pergaminho e repetida em diversas leis. Agora, ouçam o que encontrei mais adiante no Pergaminho da Destruição. Esta bem aqui:

“Um Defensor nascerá e alcançará a maturidade quando a magia mais uma vez ameaçar o tempo, quando a paz dos Demônios se encaminhar para a insanidade. O Defensor nascerá para caçar os transformados, terá o poder de destruir, de caminhar sem ser notado, de rastrear, de ver o invisível, de lutar com coragem e instinto contra o mais poderoso e o mais corrupto. Os pensamentos desse Defensor serão selados, exceto para sangue e parceiro, e ele percorrerá o caminho dos Demônios de corpo e alma, embora não tenha nascido nele.”

- Entendem agora? Como pode haver o que chamam de "pureza" se o Defensor a ser indicado não será Demônio? E não e só isso. - Ele abriu um segundo pergaminho. - Pelos meus cálculos, este documento é ainda mais antigo que o outro. Escutem só:

“Demônio e Druida caminham como se um só fossem, unidos, fundidos, almas que se complementam. Um sem o outro estará perdido e vazio, uma raça sem a outra estará fadada a loucura e desvario, impureza e destruição.”

- Sabem o que isso significa? Sua raça supostamente pura já foi metade de outra raça, aquela que era uma combinação de Druidas e Demônios! Se isso é verdade, toda essa bobagem sobre pureza racial é algo que um fanático qualquer inventou há muitos anos. E propaganda, cavalheiros! Com toda a visão historicamente fanática sobre a pureza da raça, a idéia de forasteiros como salvadores deve ter apavorado os tradutores. Assim, eles omitiram esse trecho das novas traduções. E isso significa que vocês precisam de forasteiros para sobreviver. Querem a cura? É isso que procuram? Pois bem, aqui está ela! Os Druidas são a cura para a sua loucura sagrada!”

- Então nossa raça esta condenada! - deduziu Noah.

- Como assim? Se acabei de dizer... Confesso que não tive tempo para ler muito sobre os Druidas, porque só encontrei material sobre o assunto na ala leste da biblioteca...

- A ala leste é o arquivo dos Druidas, Isac - Jacob explicou com tom pesaroso.

Isac piscou confuso, olhando para Jacob em busca de alguma explicação.

Noah tomou a palavra.

- Há quase um milênio, o líder da raça dos Druidas enlouqueceu e assassinou o líder da raça dos Demônios. Entramos em guerra. Não há mais Druidas, Isac. Os Demônios os destruíram. Todos. Resta apenas a documentação que você encontrou na ala mais isolada da biblioteca em minha casa. Destruímos uma cultura inteira, assassinamos ate o último Druida.

- Se o que diz é verdade, destruímos também a nós mesmos - Jacob concluiu. - Durante todos esses séculos, tudo que ouvimos foi que os Druidas eram nossos inimigos, e que a guerra havia sido precipitada pela ganância do Rei deles. Jamais nos disseram que já caminhamos juntos, vivemos juntos... criamos uma historia em comum.

- Uma historia que os líderes desse tempo reescreveram para os próprios fins durante a guerra e depois dela. Como fui arrogante em pensar que nossos dedicados historiadores estavam acima dessas coisas.

- Não... Não, acho que está errado - Isac opinou, a voz expressando o medo enquanto ele refletia sobre as implicações de suas inocentes descobertas para essa raça. E a profecia? Como uma raça condenada por dar à luz novos elementos? Filhos com poder sobre o espaço e o tempo mudarão o mundo para sempre! E quando virem tal fato acontecer, não poderão mais negá-lo.

- Está supondo que o tempo da profecia é agora - Noah sugeriu.

- É claro que sim! Quero dizer, olhem para o que está acontecendo em volta de vocês! A era da rebelião da Terra e do Céu, quando fogo e água se lançam como o caos sobre todas as terras. Seu povo, os Demônios são os elementos. Vocês mesmos disseram isso. Fogo, Terra e o restante. Rebelião... . se lançar como o caos sobre todas as terras. Em muitos textos históricos, "terras" não é um termo usado para significar continentes, mas culturas. Sendo assim, isso significaria que os Demônios vão causar confusão em outras culturas. O Defensor mencionado acima existirá enquanto a paz se encaminhar para a insanidade. Esse é um marco ligando as duas profecias ao mesmo tempo. Vocês mesmos reconheceram que a cada ano a loucura vai se tornando pior para os de seu povo. E com a repentina aparição do nigromante, se pode afirmar que a magia retornou. É isso! Vocês não mataram todos os Druidas! Alguns escaparam. Com o tempo, sob influencia da ciência e da civilização, herança e conhecimento se perderam para seus descendentes como parte de sua cultura se perdeu para vocês. Um dia, quando começarem a aceitar outras raças no circulo de sua cultura, permitirão a chegada de um Druida que, no futuro próximo, quando Jacob... quando Jacob... - Ele torcia as mãos com evidente desespero.

Noah entendeu a situação. Se ele estava mesmo certo, o tempo profetizado era agora. Então, a morte de Jacob e sua substituição eram iminentes. Ele precisava concluir sua explicação lógica para impedir esse evento, ou adiá-lo o máximo possível.

- Estou me referindo a hipóteses - Isac tentou. Hipóteses muito remotas...

- Destino misericordioso! - Jacob murmurou.

Isac e Noah olharam para Jacob, que tinha no rosto uma expressão absolutamente chocada.

- O que é? - Noah quis saber.

- Ele disse! Disse claramente, e eu quase perdi... Noah, na profecia, ainda bem no inicio, ela leu: "...o primeiro filho do elemento do espaço nascerá, companheiro de infância do primeiro filho do tempo, nascidos de Defensores".

- E dai? - perguntou Isac.

- Tem certeza de que a profecia diz Defensores? No plural?

- É claro que tenho certeza. Veja, bem aqui. - Ele apontou a passagem.

- Isac, nunca houve dois Defensores contemporâneos. Sempre existiu só um. Nunca dois. Não e sobre mim que a profecia fala, nem sobre um Druida desconhecido do futuro distante, mas... - Ele piscou, tornado pelo mais absoluto choque. - É você! Noah, é ele!

- Será? - sussurrou o Rei, olhando espantado para o pequeno ser a sua frente – Um Defensor humano?

- Ei! Um minuto, rapazes! Não vamos perder o contato com a realidade aqui! Não sou Defensor. Sou pequeno demais para isso e... Sou bibliotecário! Vivo de livros! Sou humano! Esqueçam. Estão malucos.

- "o Defensor nascera para caçar os transformados, terá o poder de destruir." Saul, meu pequeno. Lembra? "... de rastrear, de ver o invisível, de lutar com coragem e instinto contra o mais poderoso e o mais corrupto". Você o matou.

- Aquilo foi um acidente!

- “... de caminhar sem ser visto...” Os anciões nem perceberam que ele estava em minha casa - lembrou Noah totalmente admirado. - Não sentiram o cheiro dele, não perceberam sua presença. "Os pensamentos desse Defensor serão selados, exceto para sangue..."

- Isso é ridículo! Jacob vive bisbilhotando dentro da minha cabeça, e posso garantir que não temos nenhum parentesco consangüíneo!

- "... e parceiro..." Isac ouviu as palavras pronunciadas por Jacob como se fossem um eco de seus pensamentos.

Em algum nível, sempre soubera que essa ligação com Jacob era algo mais complexo do que uma paixão passageira. Ele o tomara nos braços apesar de tudo que representava e todos os riscos, porque, de alguma forma, também sabia que isso tudo não era só a loucura sagrada.

Isac sentiu-se zonza. Todo o sangue do corpo fluiu para os órgãos que exigiam mais atenção. Coração disparado, cérebro confuso, estômago oprimido, membros que formigavam. Era repentinamente invadido por medo e entusiasmo, dominado por arrepios frios e quentes... Ele caiu no chão como uma pedra.

- Tem alguma idéia de como isso vai afetar todos? Jacob ergueu os olhos de onde estava, sentado ao lado de Isac, pressionando uma compressa fria contra um corte em sua testa. Não reagira em tempo de impedir a queda, e ainda não conseguira conter o sangramento.

- Sei como você será afetado - Noah respondeu de sua cadeira ao lado da janela. - E entendo agora por que não conseguiu resistir a esse homem!

- Podemos estar enganados. Ele e tão pequeno, tão frágil... Como pode ser capaz de fazer o que eu faço?

- Ele ainda nem é treinado e já rastreou e matou Saul.

- Foi um acidente.

- Ah, sim? E Elijah?

Comentários

Há 2 comentários.

Por Lycan em 2016-06-26 17:12:27
Adorei adoro sua serie cheia de detalhes ansioso pelo próximo capítulo
Por Anjinho Sonhador em 2016-06-26 07:46:54
incrivel, seu conto esta cada dia melhor, estou ancioso pelo proximo capitulo, por favor nao demore a postar.