Cap. 02,6:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

Ele começou a penetrar em Isac com um dedo, a invadi-lo, só mais um instante, só mais um centímetro para ter certeza de que ele estava mesmo pronto e...

Jacob ficou imóvel. Paralisado. Algo extremamente importante acontecia ali.

De repente, a realidade o atingia com a forca de uma tempestade. Tudo. Cada detalhe da realidade. Ele fechou os olhos, gemendo em agonia enquanto o corpo se rebelava contra os impulsos de seguir um código moral. A besta que havia nele argumentava que já havia ido longe demais. Havia rompido o código de honra no momento em que planejara ir vê-lo sem o devido monitoramento. Como deixara de registrar um detalhe tão importante?

Ou havia ignorado os sinais num nível subconsciente, porque eles teriam interferido, como acontecia agora, com seus desejos egoístas? Se não o deixasse imediatamente, poderia prejudicá-lo de maneira intensa e irreversível, já que o risco de sua natureza sombria ainda estava ali, presente e palpável. Por outro lado, deixá-lo agora seria prejudicá-lo em outro nível. Seria o abandono.

Ele fez a escolha sem hesitar. E afastou-se. Era melhor assim.

Isac tinha lagrimas nos olhos quando, de cabeça baixa, começou a ajeitar as roupas.

- Por que? - perguntou com um fio de voz. - Por que?

- Isac, me perdoe. Eu imploro!

Antes que ele pudesse responder, Jacob desapareceu em uma espiral de poeira.

Isac caiu de joelhos, fraco demais para manter-se em pé, perplexa demais para chorar.

Não havia refúgio para o que sentia. Não havia remédio para a dor, para a frustração e o vazio. Não entendia, e não tinha ninguém a quem recorrer e pedir explicações. Logicamente, sabia por que ele o deixara, por que o abandonara sem dar explicações. Era obvio. Ele, um humano, era muito fraco para fazer amor com Jacob, um Demônio.

Tinha no corpo as marcas deixadas por aquelas mãos fortes e ávidas. Não eram acidentais. Ele as deixara deliberadamente. Isac secou as lagrimas com um gesto nervoso, revoltado, e olhou em volta respirando fundo. Jacob vivia de acordo com regras e leis, e ele estava ali cercado por livros que continham esse código de honra e de conduta. Neles estavam as explicações que procurava. Essa era a historia de uma raça de elitistas. Suas tradições se baseavam em crenças implacáveis, e aquela com que se deparava nesse momento era, em sua opinião, um preconceito. Demônios tinham uma preocupação excessiva com pureza. Não eram só os humanos que ostentavam títulos gerados por sua sagrada cultura. Havia lido a lei que dera origem aos deveres de Jacob há tanto tempo:

... é portanto proibido para qualquer Demônio unir-se fisicamente com criaturas que não sejam de sua natureza, que não tenham sua força ou poder. Essas criaturas menores devem estar sob nossa proteção, inclusive contra nos mesmos, e não devem ser violadas em impura abominação sexual. Essa é a lei. O cachorro não se deita com o gato, o gato não se deita com o rato. Quem quer que contrarie essa sagrada imposição terá de sofrer as penas da lei.

Isac queria acreditar que havia lógica nisso. Era uma pessoa lógica. Mas nunca havia lógica em afirmações generalistas, especialmente as que haviam sido redigidas fazia milhares de anos, como era o caso.

Se ele era o gato e Jacob era o cachorro, por que sentiam aquelas coisas? Por que duas espécies incompatíveis se sentiriam tão... tão perfeitas para atender as necessidades uma da outra?

Noah o considerava único. E acreditava que ele tinha um papel, um propósito no futuro da sociedade dos Demônios. De inicio, Isac concordara com a idéia, mas só para poder ficar e descobrir tudo sobre esse mundo paralelo ao seu, um mundo povoado por seres tão fascinantes. Ficaria contente se pudesse morrer velha naquela biblioteca. Havia conhecimento ali em quantidade suficiente para nutri-la por toda uma vida.

Mas agora...

Agora começava a acreditar que estava ali por algum propósito, realmente. Talvez tivesse a missão de encontrar um meio de livrar essa raça da rigidez que os dominava, chutar seus traseiros engomados. Sim, alguma coisa naquela biblioteca talvez pudesse explicar por que cada vez que Jacob rosnava, ele ronronava.

Rindo dos próprios pensamentos, Isac olhou em volta e viu os livros que havia derrubado da estante. Estavam espalhados pelo chão. Foi recolher os volumes empoeirados, tocando-os com cuidado e reverencia, quase como se pedisse desculpas, lamentando tê-los maltratado num momento de descuido. Ao remover o pó da capa de um deles, o titulo da obra chamou sua atenção.

Destruição.

Ele estremeceu, assustado com o tom premonitório do titulo. Mais uma vez tinha a prova do extremismo da raça dos Demônios. Isac se levantou para guardar o livro, mas, de repente, parou onde estava. Piscando algumas vezes, removendo da mente os últimos e inquietantes pensamentos, ele olhou novamente para o titulo na capa escura.

Destruição.

Inesperadamente, ele se sentiu tonto. O mundo girou e o livro caiu de sua mão.

Acabara de ler o titulo de um livro escrito em um idioma que não conseguira entender menos de vinte minutos antes.

Noah acompanhava com o olhar o constante caminhar de Jacob pela sala. A inquietação do Defensor começava a preocupá-lo.

Era evidente que Jacob não compartilharia de boa vontade seus pensamentos, e Noah seria forçado a especular. Porém, não interpelou o Defensor, por maior que fosse a vontade de obter respostas. Em vez disso, ficou ali sentado e quieto enquanto o velho amigo andava de um lado para o outro.

Então, de repente, ambos foram subitamente arrancados de suas reflexões quando a porta do grande salão da casa de Noah se abriu com um estrondo. Três segundos mais tarde, um grupo de Demônios entrou sem se anunciar. O criado os seguia ofegante.

- Desculpe, senhor! Não pude contê-los e não tive tempo para preveni-lo ou anunciá-los. Eles invadiram...

- Tudo bem, Ezekiel - Noah interrompeu com um gesto breve, eximindo o serviçal de toda culpa.

Nove Demônios olhavam para o Rei. Eram os anciões do Grande Conselho, exceto pelo capitão guerreiro, Elijah.

- Sejam bem-vindos, conselheiros. - o Rei os recebeu, concentrando-se naquela que parecia liderar o grupo. Ruth, será que pode explicar tanta urgência?

- Soubemos que tem conhecimento de eventos importantes que não dividiu com o Conselho. Será que pode nos informar agora?

- Se pudesse, eu mesmo os teria convocado - Noah respondeu com tom neutro, sem se desculpar ou dar maiores explicações, usando a própria conduta para lembrá-los da importante quebra de protocolo representada pela invasão. - Porém, já que tiveram tanto trabalho, vamos discutir alguns fatos recentes. Venham comigo - ele disse, levando-os a Sala do Conselho.

Jacob o seguia, abandonando os problemas pessoais para apoiar seu Rei naquele momento potencialmente explosivo.

Noah ocupou seu lugar a ponta da grande mesa triangular, tendo Jacob a seu lado e todos os outros em seus devidos lugares, preenchendo os três lados do triangulo. Só a terceira ponta, alem da cadeira de Elijah, permanecia vazia, como acontecia havia oito anos.

- Muito bem, Ruth o que quer saber? Ou melhor, o que ainda não sabe? - Noah disparou impaciente.

- É verdade que um dos nossos foi intimado e destruído?

Ruth nunca fora de fazer rodeios, apesar de sua natureza turbulenta e do gosto pelo confronto.

- Sim, é verdade. Perdemos Saul.

Um murmúrio de tristeza percorreu a mesa.

- Defensor, Ruth continuou, suponho que tenha perseguido e destruído a criatura responsável por isso?

- O nigromante não costuma usar um sino no pescoço, Ruth, mas, sim, eu o estou caçando.

- Está! Só isso! Então, ainda somos vulneráveis.

- Uma conclusão lógica. Devo lembrá-la, também, que a questão da imposição e execução da justiça sobre outros seres sobrenaturais pertence ao domínio dos guerreiros. De acordo com nossas leis e distinções, a caçada a um nigromante é responsabilidade de Elijah. Mas tenho mantido contato bem próximo com ele a respeito desse assunto já que fui eu quem mais se aproximou do feiticeiro. Vou continuar ajudando o capitão guerreiro nessa caçada. A calma de Jacob fez Ruth perceber o quanto estava se saindo mal em sua cruzada, e ela corou. Mas não se desculpou. E Jacob sabia que nunca se desculparia.

- Enquanto isso, o que vamos fazer, Noah? Vamos ficar sentados esperando para saber quem será o próximo intimado?

- Temos poucas alternativas no momento. Como todos sabem, não existe proteção contra os encantamentos da intimação. Mas tenham certeza de que estamos trabalhando nesse caso.

- E ainda assim o Defensor tem tempo para outros deveres - manifestou-se o conselheiro Simon. Ele se referia ao fato de, na noite anterior, Jacob ter perseguido seu filho e o devolvido aos limites do comportamento apropriado.

- Eu tenho tempo para tudo - Jacob sorriu.

Nesse momento, a porta da Sala do Conselho se abriu. - Noah! Jacob!

Todos olharam para Isac. Ela trazia os braços carregados de pergaminhos e os olhos brilhantes, mas se deteve ao perceber que interrompera uma reunião.

- Um humano! - Simon sussurrou.

- E com pergaminhos sagrados! - gritou outro conselheiro enquanto se levantava.

- Noah, o que significa isso? - Ruth explodiu, esquecendo a posição do Demônio a quem se dirigia.

Jacob levantou-se. Todos os olhos o seguiram quando ele se aproximou do jovem e o segurou pelos ombros. Protegendo-o entre os braços, o Defensor levou-o ate sua cadeira e o fez sentar. Colocar Isac em uma das posições mais poderosas do Conselho foi uma atitude arrojada que causou espanto entre todos.

- Como ousa, Defensor? - Ruth levantou-se como se pretendesse arrancar o jovem da cadeira ela mesma.

A força do olhar de Jacob a deteve.

- Nossa lei mais sagrada é não fazer mal a humanos que não nos façam mal, Ruth. Transgrediria essa lei na presença do Demônio que pode puni-la por isso? - ele perguntou, a voz calma transmitindo uma ameaça assustadora.

- Ele não tem o direito de estar aqui, Defensor! - Ruth argumentou, incapaz de dar ao protesto a indignação pretendida, já que o choque de ver o mais implacável membro de sua raça tomando sob sua proteção um humano suplantava todas as outras emoções.

- Ele tem informações vitais justamente sobre as questões que a perturbam, sobre assuntos que tentamos compreender - Jacob explicou, tendo examinado rapidamente o conteúdo da mente de Isac.

-Jacob, não creio que seja um bom momento... - tentou Isac.

- Bobagem, humano! Fale o que sabe! - exigiu Simon.

Isac o encarou furiosa.

- Meu nome e Isac - ele disse com tom caustico. Simon piscou, como se nao acreditasse que um humano o houvesse enfrentado.

Noah levantou-se e apoiou as mãos sobre a mesa.

- Quero que todos saiam. Vou conversar com Isac em particular. Voltaremos a nos reunir amanha a noite.

Todos se levantaram, lançando olhares de desconfiança e crítica na direção de Jacob, embora obedecessem a ordem dada pelo monarca, Isac podia sentir o descontentamento generalizado.

Foi quando ele sentiu o impacto no interior da cabeça, um golpe seco e doloroso como um soco.

Começou como dedos gelados deslizando pelo couro cabeludo. Pedaços de gelo penetravam o crânio, invadindo sua mente como dúzias de agulhas, cada uma delas estrategicamente colocada em sua mem6ria para sugar o conhecimento das sinapses que o continham.

Isac ficou tensa, alertando Jacob de sua perturbação.

Os Demônios continuavam se levantando para sair, e um segundo golpe a fez levar as mãos a cabeça, soltando todos os papéis que se espalharam pelo chão. Ele os recolheu rapidamente. Essa invasão também falhou, mas logo ocorreu a terceira. Isac conseguiu identificar a origem dos ataques. Alguém tentava forçá-lo a divulgar a informação que Noah não queria dividir. A cabeça doía muito, e ele se dobrou para a frente tomado pela agonia. Seus pensamentos tomaram-se os de Jacob, e imediatamente ele soube o que lhe causava tão grande desconforto.

- Parem imediatamente! - ele gritou, imobilizando todos os presentes. - Obedeçam Noah e esperem pela informação. Parem de tentar escanear a mente de Isac, ou terão de acertar contas comigo.

Havia três Demônios da mente no Conselho, incluindo Ruth, e todos podiam ser responsáveis pelo ataque. Todos se mostravam chocados, como os outros anciões presentes na sala. Enfrentar o Defensor era algo que não os enchia de entusiasmo.

Livre da dor, Isac relaxou. Todos os Demônios se retiraram.

Noah fechou a porta e se aproximou dele, ajoelhando-se a seu lado e tocando seu queixo, buscando fitá-lo nos olhos. Só então ele percebeu como o Rei havia ficado furioso com os que o atacaram. Não havia nenhum sinal extemo, nenhuma demonstração da ira no rosto do soberano, mas podia ver a revolta na sombra que encobria seus olhos.

- Isac? Sente-se bem?

Era bom sentir a gentileza do gesto, especialmente depois de ter sido alvo de tanta hostilidade por parte dos estranhos, mas havia alguma coisa muito inquietante em sua mente. Dessa vez não sentia dor, mas reconhecia a sensação. Era familiar, sem duvida. Seus olhos buscaram os de Jacob, mas ele os mantinha baixos. Os dedos se fechavam compondo um gesto agressivo, beligerante. Isac sentiu o coração bater mais depressa ao vê-lo fechar os olhos e ranger os dentes. Era evidente que ele tentava preservar o comportamento racional e civilizado, evitar ofensas ao Rei, embora Noah o tocasse e demonstrasse preocupação com seu bem-estar.

- Eu... estou bem. - Ele forçou um sorriso, apesar de se sentir confuso e exausto. O comportamento de Jacob era instável, sempre oscilando de um extremo a outro, da doçura a violência, do ardor à frieza. Ele decidiu que o melhor seria se dedicar apenas as necessidades do momento.

Delicadamente, removeu o queixo dos dedos do rei sob o pretexto de organizar as folhas de papel que recolhera do chão. O Rei se aproximou para ajudá-lo, tomando entre as mãos uma pilha de pergaminhos antes de se levantar. Ele era um bom homem, Isac pensou, gentil e inteligente, sempre pensando nos outros antes de considerar as próprias necessidades.

- Eu... sinto muito. - Ele engoliu em seco. - Não queria interromper a reunião ou incomodá-lo, mas a informação é importante. Eu podia ter esperado, mas... Pensando bem, eu posso esperar. - Isac se levantou e tirou os pergaminhos das mãos de Noah. - Só queria ajuda com uma interpretação, mas vejo que estão ocupados. - Ele contornou a mesa enquanto falava, tentando se comportar de maneira casual, forçando um sorriso que, esperava, não parecesse tão falso quanto era. - Há muitos livros lá embaixo, e deve haver uma tradução... - Bateu a mão contra a testa, censurando-se por não ter pensado antes de agir. Caminhou para a porta e a fechou ainda mais depressa do que conseguira abri-la.

Dentro da sala, Noah olhou para Jacob com ar intrigado, erguendo uma sobrancelha.

- Ele... Ele tem alguma idéia de como mente mal?

- Acho que não. Mas e melhor irmos atrás dele.

- Relaxe. - Noah riu. - Ele está do outro lado da porta, tentando recuperar o fôlego.

- Eu sei. Só pensei que seria divertido se abríssemos a porta agora.

- Nunca imaginei que se divertisse sendo cruel, Jacob! - comentou o rei rindo.

Os dois caminharam para a saída da sala. Noah abriu a porta, e Jacob estendeu a mão para pegar Isac e os pergaminhos.

Comentários

Há 1 comentários.

Por Anjinho Sonhador em 2016-06-23 18:58:38
incrivel, capitulo maravilhoso, ancioso pelo proximo.