Cap. 02,5:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

Ignorando todo o resto, Isac segurou os ombros do homem caído ao seu lado. Ele estava ofegante, como se fosse difícil respirar.

- Jacob!

- Isac, saia daqui! - ele rosnou a ordem imperiosa, levantando-se de um salto e agarrando-o pelos braços para arranca-lo dali a qualquer preço. O movimento brusco e violento o jogou longe, e ele caiu deitado de costas no chão. Isac ficou atordoado por um momento, mas logo recuperou a capacidade de ação, praguejando contra a dor e a posição embaraçosa em que se encontrava, absolutamente disposto a mandar Jacob para o inferno.

As palavras ficaram retidas em sua garganta quando o homem que havia aterrissado sobre as caixas se levantou rapidamente sobre eles.

Ele estava pairando. Literalmente pairando! Flutuando no ar.

Boquiaberto, Isac notou varias coisas extremamente importantes. O homem que pairava sobre ela não era um homem. Bípede, relativamente humanóide, a enorme criatura tinha olhos verdes que brilhavam como lâmpadas em sua cabeça deformada, um brilho malévolo que causava pavor. As orelhas eram enormes e tinham extremidades pontudas e pretas que se abriam numa espécie de leque.

E ele tinha presas. Sim, presas enormes.

Isac sentiu uma estranha vontade de rir. Sabia que a reação era um prenuncio de histeria.

Tudo bem, ele pensou, quando foi que eu dormi?

Era isso! Ninguém pega no ar alguém que cai de uma janela. Ele nunca teria seguido um estranho pela rua ate um galpão abandonado, especialmente no meio da noite. E não existiam seres de orelhas em forma de leque, presas na boca e cara de morcego. Não no Bronx! Muito menos voando pelo Bronx!

A criatura olhou diretamente para ele.

Tudo bem, hora de acordar, ele pensou ao ser invadido pelo pânico.

A coisa alada mergulhou em sua direção. E exibiu as presas. Como um relâmpago cortando o céu, Jacob deixou o chão em outro salto fenomenal, chocando-se com o monstro ainda no ar.

A colisão provocou um ruído assustador de carne e ossos se encontrando, e Isac se encolheu. O choque os jogou sobre outra pilha de caixas do outro lado do galpão.

Desesperado, olhou em volta buscando algum tipo de proteção. A primeira coisa que viu foi um bastão pesado e enferrujado. Ao pegá-lo, sentiu os arranhões deixados pelo metal áspero em suas mãos. Ela se levantou, segurando-o como um bastão de beisebol, brandindo-o com ar ameaçador e pronta para agir, caso Jacob não houvesse terminado o trabalho com o ser espantoso. E ele não havia.

De repente, os dois corpos em luta surgiram no ar numa explosão de caixas de papelão. Dessa vez a besta gosmenta estava em posição de vantagem, as asas batendo freneticamente e ganhando altura, as unhas em forma de garras prendendo Jacob e arrastando-o para o alto, ate arremessa-lo contra o teto com violência assustadora. O estrondo do corpo encontrando o chão foi aterrorizante e levantou uma nuvem de poeira. Horrorizado, Isac viu uma substancia escura jorrando da cabeça de Jacob, formando uma poça sob ele.

Apavorado, ele ficou onde estava, paralisado, vendo a criatura voar em círculos que iam chegando cada vez mais perto, como o vôo de um abutre que antecipa a morte de uma presa suculenta, ate que ele aterrissou com leveza inesperada a sua frente. Podia vê-lo bem agora. Peito saliente, pele emaciada e ventre côncavo. Os lábios eram finos e repuxados, expondo duas fileiras de dentes pontiagudos e as presas. As mãos eram a pior parte. Os dedos magros tinham unhas longas, verdes e finas, e delas jorrava um líquido que era muito parecido com o que já formava uma poça sob a cabeça de Jacob.

- Bonito... - ele sibilou.

- Você podia fazer uma plástica - ele respondeu, levando a mão coberta de ferrugem a boca. - Muito bem, Isac, Ótima idéia a sua! Desafie a grande e ma criatura! Vá em frente!

- Bonita carne, a coisa repugnante continuou.

Ah, agora a situação esta ficando ainda pior, ele pensou.

- Ah, bem... ouvi dizer que ser vegetariano e a moda - ele tentou, recuando um passo ao ver a criatura se aproximar. - Carne quente. Carne gostosa. - A coisa fez uma especulação grosseira e pornográfica sobre a Carne de uma parte especifica de sua anatomia.

- Ei, cuidado com a boca, meu chapa! E fique onde esta, ou eu... eu... - Ele levantou o bastão, tentando pensar em uma boa maneira de intimidar um ser sobrenatural e assustador. - Eu vou dar uma boa paulada em outro pedaço de carne, e você não vai gostar nada do que vai sentir!

Bem, se era um ser do sexo masculino, e só podia ser, pelo que acabara de ouvir, ele ficaria impressionado. Algumas coisas são universais.

Por outro lado, ele pensou, vendo-o sorrir e tocar-se entre as pernas, talvez não. O olhar que ele lançava em sua direção era de pura lascívia. Os olhos reviravam nas órbitas, e uma baba espessa e nojenta escorria por seu queixo.

Bem, se isso não era universal, não sabia mais o que era. De repente, a criatura cansou de brincar e saltou para frente. Isac gritou alarmado, atirando-se instintivamente no chão e rolando para o lado, escapando da área que o monstro determinara como alvo de ataque. Puro instinto, mas o movimento o livrou da primeira tentativa de ataque. Ele se levantou com facilidade muito maior do que esperava para um bibliotecário sedentário, virou-se com o coração aos saltos e viu a coisa se levantando e investindo contra ele novamente. Dessa vez ele decidiu usar o bastão, rezando para não errar o golpe.

Mas errou.

A inércia o fez girar em tomo de si mesmo e cair de costas. Imediatamente, a criatura se atirou sobre ele, rindo e babando de prazer num minuto...

E emitindo um terrível grito de dor no instante seguinte.

O monstro se atirou exatamente sobre o bastão que ele ainda empunhava, enterrando-o no próprio peito. Isac piscou, estranhando a facilidade com que havia perfurado o peito da criatura. Sem nenhum esforço!

Mãos fortes o tiraram de onde ele estava, bem a tempo de salva-lo da explosão que destruiu o monstro numa violenta conflagração de chamas.

Depois de arder por algum tempo, a criatura se desintegrou numa nuvem de fumaça e cinza. O cheiro de enxofre quase sufocou Isac. Teria sufocado realmente, se seu protetor não o houvesse carregado para fora do galpão usando o casaco como um véu para isolar seu rosto do ar impregnado. O ar puro a fez voltar a realidade. Pela primeira vez ele percebeu que tinha o rosto molhado pelas lagrimas.

- Jacob! Pensei que estivesse morto!

- Não. - Ele tocou-o no rosto para limpar a mistura de ferrugem, fuligem e lagrimas. - Só fiquei um pouco... abalado.

- Esta sangrando!

Ele tentou tocar o ferimento em sua cabeça, mas Jacob segurou-o pelo pulso antes que os dedos pudessem toca-lo.

- Estou bem, já disse. E sou eu quem tem de se preocupar.

Como conseguiu manter... aquilo longe de você?

- Não sei. Agarrei a primeira coisa que vi.

Ele levantou um braço, percebendo que ainda segurava o bastão enferrujado. Estava coberto de uma substancia pegajosa. Ele o ofereceu a Jacob, que o recusou como se temesse sofrer algum tipo de agressão. Depois, ele segurou seu pulso e sacudiu seu braço até ele soltar a arma improvisada.

- Ferro - disse ele com tom surpreso, quase divertido.

- Como sabia que devia usar ferro?

- Eu não sabia. Foi a única coisa que encontrei lá dentro. Sorte, acho.

Jacob duvidava disso, mas não disse nada.

- Jacob, o que era aquela coisa? Quero dizer... era real? Espere! Não responda. É claro que era real! Mas como? Foi algum tipo de experiência cientifica que não deu certo? Nunca vi nada parecido antes!

- Aquilo... - Ele parou e respirou fundo, reunindo forcas. - Aquilo já foi um de meus amigos.

Jacob andava pelo salão de sua casa, passando os dedos pelos cabelos que já tinham marcas que mais pareciam valetas, tal a freqüência com que repetia o movimento. Não havia apreciado a tarefa de informar Myrrh-Ann da morte do marido, mas, como sempre, cumprira sua tarefa com seriedade e fora ate o fim. Ela sabia desde o inicio das implicações da captura de Saul, e Noah tivera o cuidado de prepará-la para o pior, mas, ainda assim, Myrrh-Ann reagira com uma compreensível mistura de dor e fúria. Ela havia atacado Jacob com a força dos punhos.

Ela não tivera tempo para causar dor física. Noah estendera a mão e a tocara, drenando toda a energia de seu corpo. Myrrh-Ann desmaiou nos braços do Defensor, e Jacob não suportara carregá-la. Quando amparara o peso do corpo, ele havia sentido o movimento de uma nova vida no interior do ventre distendido. Havia sido como uma traição sentir algo tão intimo sabendo que a mãe da criança jamais teria permitido um contato tão próximo, se pudesse escolher.

Myrrh-Ann não precisava saber que um humano matara Saul. Era melhor que ela o odiasse, Jacob decidiu. Ele tinha a justificativa para isso. Revelar a identidade do verdadeiro responsável pela morte de Saul, nomear o jovem frágil que nem sabia o que havia feito... Não. Noah sentira que ele sonegava informação. O Defensor sentira a percepção aguçada do monarca totalmente focada nele, mas não julgara apropriado dar explicações naquele momento. Antes, precisava ter tempo para pensar. Precisava refletir sobre todas as implicações daquela noite antes de divulgar o que realmente ocorrera no galpão abandonado.

Acima de tudo, o evento era prova incontestável da existência de um verdadeiro nigromante, alguém com poder e conhecimento suficientes para intimar um Demônio. Isso ele havia visto com os próprios olhos, embora se envergonhasse e enfurecesse diante da necessidade de admitir o que vira, porque, então, era forcado a admitir também, que deixara o ser detesmível e ameaçador escapar impune, e agora ele vagava pelo mundo, o nigromante estava solto, o que não era bom para sua raça. Não era bom para nenhum clã de Nightwalkers. Onde havia um, quase sempre havia outros, e Demônios não eram suas únicas vítimas.

E ainda havia...

Ele parou, olhando para o teto. Isac dormia no quarto lá em cima. Rompera uma cápsula de ervas sob o nariz dele, uma combinação que o induzira ao sono, e assim conseguira levá-lo para sua casa na Inglaterra sem dar explicações ou revelar seu endereço.

O homem fizera o impossível. Destruíra um Demônio. E antes disso ele o sentira, ligara-se a sua energia e o localizara! Um ser humano não podia fazer tudo isso. A menos que... A menos que fosse um nigromante.

Isac não era usuário de magia. Jacob teria sentido imediatamente. Havia uma aura natural, um cheiro típico que os identificava. o bastardo que havia capturado Saul impregnara o galpão com seu olor repugnante. A aura de putrefação ainda estava alojada nas narinas de Jacob. o cheiro de Isac era limpo e deliciosamente puro. Mesmo no meio de toda a podridão e da imundície que dominavam o galpão, Jacob ainda pudera sentir a integridade intrínseca aquele aroma. Nada de perfume ou loções, nada de hábitos dissolutos, nem mesmo o almíscar territorial da presença de um macho da espécie.

Ele também não era um dos seres imortais que perambulavam pela noite. Nightwalkers que andavam entre os homens eram quase indistinguíveis deles. Mesmo assim, as raças se reconheciam, percebiam pequenos sinais que os identificavam. Não. Isac era humano.

Mas um humano que podia matar um Demônio? A tarefa era difícil ate para os próprios Demônios! Por isso ser Defensor era um trabalho tão letal. Só o mais velho de sua espécie era poderoso o bastante para causar dano mortal, e só Jacob tinha permissão incondicional para tal. Punição capital era terrivelmente rara, e executá-la não era fácil.

Como havia ficado evidente essa noite.

Isac simplesmente se armara de um bastão de ferro e perfurara o coração de Saul. Jacob não poderia ter feito o mesmo, porque nenhum Demônio podia tocar o ferro. O contato era como ácido sobre a pele. A dor era angustiante. Uma perfuração era pura agonia. E no coração ou no cérebro, a ferida era mortal. Jacob olhou para os dedos queimados pelo contato com a ferrugem no rosto de Isac. Só havia percebido o que acontecia ao sentir o ardor e a dor.

De qualquer maneira, o esqueleto de um Demônio era forte como o aço. Como uma criatura pequena como ele havia conseguido enterrar o bastão no coração de Saul, passando por costelas e caixa torácica? Diferente da vulnerabilidade dos Licantropos a prata, tão conhecida universalmente, a fraqueza de um Demônio diante do ferro era desconhecida pelo ser humano. Isac conhecia todos esses detalhes, e reconhecera na criatura diabólica que a atacara um Demônio intimado? Ou tudo havia sido mesmo uma simples e feliz coincidência?

Jacob lembrou-se de recobrar a consciência no galpão abandonado, no chão, e sacudir a cabeça para remover os cabelos e o sangue que o impediam de enxergar. Bem em tempo, vira o monstruoso Saul debruçado sobre o jovem e reconhecera que não poderia chegar até ele a tempo. Sua cabeça doía tanto, que mal podia se concentrar no poder de que fora dotado. Jamais antes havia experimentado aquele sentimento de impotência e frustração. Cometera enganos imperdoáveis no encontro, e esses erros quase haviam custado duas vidas, a dele e a de Isac. Não deveria ter sido necessária a interferência providencial na situação. Mesmo depois de tanto tempo, mesmo com mais de um século separando esse encontro do anterior, devia ter lembrado de todas as características de um transformado.

Sabia em que a mente dementada de Saul estivera focada, o que o corpo deformado buscava quando avançara contra o pequeno ser. Um Demônio no estado em que Saul se encontrava tinha apenas duas necessidades básicas, urgentes. A primeira era a autopreservação. Por isso era tão vantajoso ter um Demônio escravizado. Assim que se removia dele as camadas de civilização por meio de encantamentos que eram como acido descamando sua natureza, a criatura capturada faria qualquer coisa por seu mestre, desde que ele prometesse a vida ou a eventual liberdade, e para obter essas vantagens o Demônio transformado não hesitaria em seus poderes elementares para servir aquele que o escravizara.

Satisfeita a necessidade de autopreservação, a segunda necessidade dessa criatura era, obviamente, saciar sua luxúria incontrolável, um estado especialmente ampliado durante a lua cheia de Samhain, período que viviam. Era uma forma similar de reação aquela que o obrigara a perseguir e conter o irmão. Era o que a mulher ruiva teria vivido, se ele não houvesse interferido e obrigado Kane a recuperar o senso e a razão. Mas o tratamento que Kane teria dispensado aquela mulher seria uma sombra pálida do que Saul, transformado e pervertido como havia estado, teria dispensado a Isac.

Pensar nisso causava repulsa, revolta, sensações que faziam seu coração bater mais depressa. Jacob pôde ver o falo distendido de Saul no momento em que tentava se colocar sobre Isac. Agora, era preciso fechar os olhos para impedir que as imagens nítidas de sua imaginação o inundassem. Ele cerrava os punhos enquanto as bania da mente.

Era proibido para um Demônio fazer mal a um ser humano inocente. Essa era a regra dourada da espécie. A lei que Jacob havia jurado cumprir acima de tudo. Era tabu tentar se unir fisicamente a um ser humano. O amor entre Demônios era sempre permeado por uma ferocidade elementar que freqüentemente ultrapassava a agressão excessiva. Isac se partiria como porcelana sob tamanha pressão.

Isso não significava que Kane, Gideon ou todos os outros que Jacob havia sido forçado a conter ao longo dos séculos, fossem transviados da pior espécie. Eles eram apenas vítimas da maldição de sua raça. Os Demônios passavam todo o período de crescente e minguante relacionado as luas sagradas de Samhain e Beltane lutando para manter o controle. Cada minuto desses dois poderosos períodos era um exercício de tormento enquanto corpo e espírito clamavam pela lua que os enlouquecia. Em algum lugar de seu código genético estava escrito que, nesses períodos, o impulso da copula seria mais forte que tudo. Normalmente, os Demônios se satisfaziam uns com os outros, mas como viviam em constante proximidade com os humanos, tomava-se fácil direcionar de maneira errada esse instinto de procriação.

Todos os anos, era forçado a conter anciões por quem tinha grande estima, e causava-lhe grande sofrimento ver a loucura se manifestar naqueles por quem tinha amizade, ou, no caso de Kane, amor.

Ele mesmo nunca fora vitima desse descontrole. Nem mesmo na adolescência, centenas de anos atrás, quando não havia no mundo mais de seis bilhões de seres humanos, como agora. Sempre tivera dificuldade para imaginar como seria essa atração incontrolável. Apesar da aparência física semelhante, Demônios e humanos eram distintos na química, na mente e no intelecto. Por que um Demônio se sentia atraído por um ser inferior? Era a maldição da lua. E, algum tempo antes, Jacob chegara a pensar que podia haver mais do que isso. Experimentara o poder de um corpo delicado, de um par de olhos cor de negro...

Jacob praguejou mentalmente e passou os dedos pelos cabelos mais uma vez, indo se servir de uma bebida. Não era o álcool consumido pelos mortais, mas leite, de preferência na temperatura do corpo. Leite de cabra, ovelha e até de animais mais exóticos tinham sobre os Demônios o mesmo efeito inebriante do álcool sobre os mortais; o leite pasteurizado vendido em lojas era como,suco de frutas, o leite de zebra ou girafa, por exemplo, podia ser comparado a um bom conhaque.

Jacob serviu-se de um copo de leite de cabra do Himalaia e sentou-se em uma poltrona confortável. Girando a cabeça de um lado para o outro, tentava amenizar a tensão na nuca, revendo tudo que acontecera mais uma vez, ruminando pensamentos, sabendo que em breve teria de conversar com Noah, mesmo que não chegasse a uma conclusão sobre tudo que vivera nas Ultimas horas.

Ele ainda estava ali, refletindo sobre os últimos eventos, quando ouviu uma voz hesitante, doce.

- Olá?

Jacob pôs-se em pé de um salto, virando-se para a criatura que esfregava os olhos e caminhava com passos pesados, lentos.

Impossível!

Ele não era capaz de lançar encantamentos do sono sobre a mente das pessoas como Kane fazia com tanta facilidade, nem podia drenar a energia de um corpo com um simples gesto de mão, como Noah, mas sabia como misturar ervas e criar uma poção forte o bastante para induzir um sono profundo e prolongado. Isac deveria dormir por horas sob efeito do poderoso coquetel de ervas. Mas estava ali, ao pé da escada e sorrindo sonolento.

- Ah, ai esta você. Jacob, certo?

- Sim - ele confirmou, sem saber o que fazer.

Ele a estudava enquanto tentava pensar numa solução, mas só conseguia reconhecer sua beleza e seus inegáveis encantos. O confronto no galpão o deixara sujo e com as roupas molhadas, e ele o despira do jeans, da camiseta e das meias e o cobrira com uma de suas camisas. A imagem era um poderoso estimulo visual. O cabelo negro e sedoso emoldurava o rosto inocente. O corpo era perfeito. O decote da camisa sob o pescoço, uma abertura causada pelos botões que deixara de fechar ao vesti-lo.

Jacob sentiu o sangue pulsar em resposta a essa análise e desviou o olhar, deixando o copo vazio sobre a mesa. Sentia que Isac se aproximava, registrava seu aroma e os sons de seus movimentos, e sua presença despertava-lhe a lembrança de uma sensual noite de verão.

Era uma fragrância pura, quente e tentadora a atração. E ele se aproximava passo a passo.

- Devia estar dormindo - ele disse de repente, sentindo o sobressalto que causara com a brusca interrupção do silêncio opressor.

- Eu acordei.

Ele o imaginou encolhendo os ombros. Era como se tudo ali fizesse perfeito sentido para o jovem, enquanto que, para ele, a situação era cada vez mais confusa. Isac deu mais um passo. E outro.

Não! Maldição! Você é mais forte que um frágil humano! Não. Não permitiria que a loucura da lua o dominasse. Jamais havia perdido o controle, e essa não seria a primeira vez. Criara um exemplo de solidez e estabilidade por mais de quatrocentos anos, e não macularia uma reputação tão ilibada e superior.

Com o rosto composto numa expressão austera, ele se virou para encará-lo.

- O que estou fazendo aqui? Que lugar é esse? Os dedos tocaram um bibelô sobre uma mesa muito antiga, desenhando sua forma, explorando a textura e o trabalho artesanal até fazê-lo sorrir numa resposta apreciativa. O prazer causado pela beleza rara do objeto iluminou seus olhos. - Presumo que essa seja sua casa...

- Sim, você esta em minha casa.

- Não me lembro de ter vindo. Sua casa é linda - ele elogiou, olhando em volta e captando a riqueza da decoração do ambiente. - Vejo que gosta de antiguidades.

Jacob assentiu. As pecas que ele chamava de antiguidade eram novas quando ele as comprara, mas isso era algo que não precisava revelar.

- Você não e de falar muito, e? - Isac perguntou, tocando uma estatueta de madeira que fora esculpida por uma mulher de uma tribo africana extinta havia muitos anos. - Entendo que não se sinta muito animado depois do que aconteceu ontem, mas...

Isac devolveu a estatueta ao lugar de origem, sobre uma estante, passando ao objeto seguinte, indo de um em um enquanto sua curiosidade sensorial devorava todas as curvas e detalhes de cada peça. Os dedos acariciaram a superfície de uma mesa, aproximando-se da mão dele.

Jacob removeu a mão da madeira, que usava como um artifício para permanecer ligado a razão e ao concreto, e recuou um passo, destruindo sua graça habitual com o movimento desajeitado e a aflição gerada pela necessidade de se afastar da presença perturbadora.

Inferno, ele pensou com veemência, o outro devia ter mais juízo! Devia saber que não é sensato se aproximar de um homem que nem conhece direito! Especialmente um homem humano. Ele não possuía poder, nenhuma forca inata com que pudesse proteger-se, mas ali estava, colocando-se ao alcance de sua mão e demonstrando uma confiança ingênua, quase tola.

- Não quero parecer grosseiro ou antipático - ele conseguiu dizer com tom polido, apesar do turbilhão de emoções, mas não estou habituado a ter companhia de outras pessoas.

Isac inclinou a cabeça para o lado, causando um movimento sedutor, o olhar se assemelhava a uma caricia física, o brilho negro transmitia uma curiosidade que o levava a estudar seu rosto sem reservas, um estudo que seguiu pelos ombros e terminou em seu peito largo. E em todos os lugares em que esse olhar pousava, Jacob sentia a pele queimar, os músculos enrijecerem, a roupa se tomar insignificante como medida de proteção, o abdome se contraiu, os tendões das coxas estavam tensos, e a inspeção ainda continuava. Logo ela perceberia a constrangedora ereção.

- Um solitário - ele comentou finalmente. Era uma afirmação, e ele assentiu como se concordasse com a própria declaração e a confirmasse. - Bem, pelo menos sei que não tem seis filhos correndo pela casa. Não com todas essas pecas preciosas espalhadas pela sala. A propósito... Ele o encarou diretamente, e Jacob sentiu que não podia respirar direito. - Você me despiu?

Nesse momento Jacob teve certeza de que ele não podia ser humano. Nenhuma mortal ousaria formular essa pergunta de maneira tão direta e serena. Não para um homem que mal conhecia. Um homem evidentemente excitado e a poucos passos dele.

Isac não percebeu o movimento. Num minuto ele estava parado, no outro as mãos estavam sobre seus braços. Os dedos fortes a tiraram do chão e a puxaram contra o peito musculoso. Ele emitiu um grito abafado e surpreso, e o ar deixou seus pulmões num jato poderoso. Antes que pudesse inspirar, os lábios de Jacob cobriram os seus com ferocidade contida.

As mãos de Isac se ergueram instintivamente, agarrando o tecido da camisa em busca de equilíbrio e planejando um potencial protesto, o protesto pretendido nem chegou a germinar, porque o corpo másculo e atlético projetava sua forca nos quadris dele, mais suave e suplicante. Ele era esguio, dono de músculos definidos e perfeitamente desenhados, e podia sentir nele a vibração da vida. Masculinidade e potencia. Podia sentir essas características em todas as partes daquele corpo. As mãos de Jacob eram firmes e seguras em seus movimentos, mantendo-o colado em seu peito.

A boca de Jacob parecia queimar a dela com sensualidade, uma mistura equilibrada de natureza e talento. Era um beijo diferente de todos que havia experimentado no passado, e não havia nada de platônico ou ingênuo nas sensações por ele despertadas. Ele o beijava com agressividade, a boca quente e a ponta da língua to canto seus lábios, provocando e exigindo ao mesmo tempo, como se ele conhecesse um segredo, algo pessoal de que ele mesma jamais tivera conhecimento. Havia vertigens, ondas de calor e alterações de freqüência cardíaca. O peito formigava e o corpo ardia em chamas. Estava inundado pela adrenalina, tomado por um desejo sensual que jamais imaginara que existisse. Ele relaxou os lábios contra os do maior, o coração batendo como as asas de um pássaro pego numa armadilha.

Jacob sentiu o convite instintivo. Estivera esperando por ele. E o aceitou com uma ousadia erótica, a língua invadindo a boca tímida e quente do humano, buscando despertar a porção animal que ele mantinha adormecida. Esse era o único pensamento em sua mente... Fazer contato, saboreá-lo de um jeito especifico, sorver seu sabor e ir buscá-lo em dimensões ricas o bastante para enlouquecer um santo. Todas as outras idéias giravam em tomo do paraíso de um beijo quente 'e doce. Não havia mais nada.

Isac sentiu uma onda de calor brotando da essência de seu corpo, espalhando-se em todas as direções e inundando vasos e veias. O sentimento era extraordinário. Ate experimentá-lo ele mesma, mantivera-se ignorante quanto ao efeito que provocava nele. Agora, tomado por aquele fogo incontrolável que fazia arder a pele, deduziu que Jacob sentia o mesmo. A língua buscou a dele. Curiosidade e ousadia se misturavam, calando a voz da precaução.

A boca explorava a dele com desespero, com uma necessidade primitiva que ele nem tinha esperança de compreender em sua ingenuidade. Era como se fosse o último homem da terra, o única que merecia ser beijado. Sentia o hálito momo e úmido envolvendo seu rosto, misturando-se a sua respiração. Os dedos de Jacob percorriam sua coluna, subindo e descendo.

Jacob gemeu quando a boca sob a dele se abriu um pouco mais, convidando-o a exploração. Isac era doce, incrivelmente doce, como se tivesse o ingrediente secreto de um néctar proibido e tentador. A temperatura da pele subia rapidamente, diferente da pele fria de um Demônio, e ele podia sentir cada grau como um toque provocante. Ate sua pele, normalmente tépida, alcançava uma temperatura incomum para os de sua raça. Uma cacofonia de urgências ecoava em seu interior, tantas que os pensamentos mergulharam no caos. o instinto assumiu o controle enquanto as mãos percorriam o corpo do outro, sorvendo o calor da pele macia. Tocava-o do ombro ate a cintura, descendo um pouco mais para tatear o início da curva de um glúteo arredondado. Era como se ele se encaixasse perfeitamente na forma de sua mão. Os dedos apertaram um glúteo, erguendo-o do chão e puxando-o para um contato ainda mais completo com seu corpo.

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