Cap. 02,3:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

- E sentidos - Jacob e Isac falaram ao mesmo tempo, as vozes soando em perfeito uníssono. - Tudo é muito mais intenso, muito maior do que era antes.

A declaração atingiu Legna em sua essência. Nunca presenciara nada parecido antes. Tinha os sentidos invadidos por informações emocionalmente carregadas, o que a forçava a se retrair e usar defesas mais poderosas. Sua reação instintiva e impulsiva ao que acontecia ali foi invocar Noah com toda a intensidade de suas capacidades mentais.

Isac levou um susto tão grande com a explosão de chamas perto dele que quase caiu. Jacob estendeu a mão instintivamente para ampará-lo, mas teve o pulso agarrado por dedos de aço antes que pudesse tocá-lo. Ele se sobressaltou, olhando na direção da mão forte e se deparando com o olhar implacável do rei.

- Não toque nele, Jacob.

- Solte-me - exigiu o Defensor, a voz baixa transmitindo toda a extensão de seu ultraje e uma certa dose de impaciência. Sua postura era ameaçadora.

- Sei que não tem a menor intenção de fazer mal a esse jovem, Jacob, mas nos dois sabemos que sua boa intenção perdera o valor no instante em que você o tocar. Ele já deu provas de ser uma perigosa tentação. Não se torture ainda mais com essa proximidade.

Isac corou diante das referencias ofensivas feitas a sua pessoa.

- Ah, com licença? Não gosto de ser tratado como uma doença contagiosa.

Noah ignorou-o, mantendo toda a sua atenção em Jacob. O Rei havia sido tirado da cama sem aviso prévio, a julgar pelo cabelo em desalinho e pela pouca roupa que estava usando. Um calção que deixava transparecer sua forma física. Ele ouviu o som baixo e ameaçador, uma espécie de rosnado. O predador em Jacob despertava prometendo confusão. O Rei preparou-se para o confronto, consciente de que poderia se ver obrigado a enfrentar Jacob em um momento de emoções amplificadas pela lua cheia. Ele cometeu o engano de pensar que Jacob o atacaria.

Jacob usou sua velocidade espantosa para girar e passar pelo monarca, livrando-se da mão de Noah no mesmo momento em que pegava Isac e o levava cinco ou seis metros acima do chão, longe do Rei e de sua irmã. Ele o girou e o colocou atrás do próprio corpo, protegendo-o do olhar de Noah.

O Rei cerrou os punhos, o corpo todo tenso enquanto encarava o velho amigo. Jacob recebeu sua visível agressividade com outro rugido territorial. O coração de Isac batia acelerado com uma mistura de medo e tristeza. Sabia o que havia provocado a ira de Jacob. Combinando instintos e moral, Jacob via Noah como uma ameaça e uma ofensa ao seu sentimento de posse por ele.

Afastado de Noah como estava, Isac só podia encontrar uma pessoa a quem recorrer. Ele olhou para Legna, implorando pela ajuda do Demônio fêmea, torcendo para que ela compreendesse o que estava acontecendo. Os olhos de Legna, cinzentos como os do irmão, estavam voltados para o lado oposto. Por estar em uma sala tomada por grande volatilidade, protegera a própria mente com uma barricada contra a tempestade que a ameaçava. Mas no momento em que Isac projetou sua necessidade, seu desespero e toda a intensidade de suas emoções, Legna se virou sobressaltada para fitá-lo.

Por que você não pode sentir Jacob? Por que não pode entender o que esta acontecendo?, Isac indagava desesperado. Estaria mal informada sobre o poder da bela diplomata? Era nova ali. Tudo para ela era uma grande incógnita nesse mundo misterioso e místico; talvez sua noção do poder desses seres fosse apenas imaginação.

Esse pensamento foi rapidamente descartado quando uma onda de calor radiou de Noah, a explosão atingindo-os como uma sufocante rajada de vento do deserto. O Demônio Rei ergueu um braço e abriu a mão. Uma bola de fogo emergiu da palma voltada para cima.

- Legna, aproveite sua chance de buscar segurança Noah orientou-a, a voz firme sugerindo um poder ameaçador.

Houve um som retumbante como o de um trovão, e Isac sentiu a terra tremer. Ele se agarrou a camisa de Jacob, tentando preservar o equilíbrio enquanto, com um braço, Jacob o protegia e o mantinha próximo dele.

- Noah, espere!

O grito partiu de Legna, que enfrentou o calor que cercava o irmão e agarrou o braço de onde brotavam línguas de fogo. A primeira reação de Noah foi reabsorver a bola de fogo de forma a não ferir a irmã.

- Graças a Deus - Isac gemeu aliviado, enterrando o rosto nas costas de Jacob enquanto continuava agarrado a ele em busca de apoio.

- Legna! - Noah exclamou furioso, censurando o comportamento da irmã.

- Noah, não é o que esta pensando! Pare! - Ela o continha com força inesperada para alguém de aparência tão delicada, consciente da dificuldade que teria para afastar o irmão do confronto, fazê-lo recuar e ignorar a raiva depois de ter ido tão longe. Sabia que a atitude do Rei era mais do que justificada diante das circunstâncias que viviam, e podia sentir a turbulência nele causada pela necessidade de enfrentar um amigo. Ele estava zangado. Zangado com a lua sagrada, que responsabilizava pela brutalidade de Jacob e de tantos outros de seu povo, pela banalização de espíritos nobres e pela vergonha causada por comportamentos animalescos e baixos. - Noah, escute o que estou dizendo - pediu Legna com voz baixa e suave, com tom doce e quase musical.

Isac sentiu a mudança em Jacob, pequena, mas detectável. O som retumbante e sufocado que estivera ecoando em sua garganta aquietou-se, resumindo-se num ruído baixo e entrecortado, uma espécie de aviso amistoso.

- Jacob não esta sob o efeito da lua. Ele não esta transtornado - Legna continuou, a suavidade aveludada de suas palavras fluindo pelo ambiente, tocando os dois homens e Isac - Escute o que eu digo, meu querido irmão. Eu sinto o que ele sente. Eu sei. Confie em mim.

- Jacob jamais teria me ameaçado em sã consciência argumentou o Rei, finalmente desviando os olhos do alvo de suas bolas de fogo, fitando a irmã e descobrindo em sua expressão uma súplica aflita.

- A menos que tenha feito alguma coisa que ele considerou ameaçadora para Isac - Legna respondeu. - Noah, não pode esquecer que ha algo ligando os dois, algo que os atrai.

- Essa lua maldita e a causa - Noah disparou irritado.

- A lua e só um amplificador. O que digo é verdade, e todos nós sabemos disso. No coração, em essência, Jacob é um protetor de inocentes. Isso é o que ele sempre será. E ele os protege até mesmo de você. O maior temor de Jacob é um dia ter de enfrentar seu Rei pelo bem de um inocente. Legna tocou os cabelos do irmão numa demonstração incontestável de afeto e atenção. - Combine todos esses fatores, e a menor ofensa vai assumir as proporções de uma grande falta, como invadir o território de um vampiro.

A comparação fez Noah erguer uma sobrancelha, fitando-a com repentina compreensão. O ardor da batalha se apagara dos olhos cor de jade, e agora ele olhava para Jacob sem a agressividade anterior.

Legna passou por Noah e se colocou entre os dois homens sem demonstrar medo ou apreensão.

- Jacob - ela disse, adotando novamente um tom doce e conciliador, tentando acalmar a besta que ainda se mantinha em alerta dentro do Defensor -, ninguém vai fazer mal a Isac. Jamais faríamos tal coisa. Nem poderíamos, porque você e o protetor dele.

- Não podem me manter afastado dele.

- Não é essa nossa intenção. Não enquanto não sentirmos que pode prejudicá-lo de alguma forma. Nesse caso, bem sabe que teremos de intervir.

Isac olhou por cima de um ombro de Jacob para tentar estudar sua expressão. O rosto bronzeado ainda era sombrio e tenso, um pouco agressivo, mas já era possível ver os primeiros sinais de razão penetrando a densa névoa do descontrole. Podia sentir a mente e os sentimentos de Jacob respondendo ao esforço de Legna para acalmá-lo, trazê-lo de volta a sanidade.

- Jamais farei mal algum a ele. Prefiro por fim a minha própria vida antes disso. A minha... - Ele olhou para Noah com seriedade - e a de qualquer pessoa que possa ferir Isac.

- Quando foi que eu a feri? - Noah disparou indignado. - Eu nunca... Eu nem olhei para ele!

- Mas ele olhou para você.

Isac emitiu uma exclamação espantado e se debruçou sobre o ombro de Jacob para encará-lo. Ele se encolheu ao sentir o rosto arder em conseqüência de um rubor mortificado. Mais uma vez, Isac se escondeu atrás do corpo do Defensor, torcendo para que um buraco se abrisse na terra e a tragasse para sempre.

A compreensão iluminou o rosto de Noah como um brilhante nascer do sol. Ele abriu a boca para falar, mas estava perplexo demais para formar frases coerentes.

Isac ouvia o som dos pés descalços caminhando sobre o mármore, se aproximando de Jacob. Jacob foi forçado a dar um passo para trás para não perder o equilíbrio, tal a aflição com que ele se encolhia e tentava se esconder atrás dele.

- Agora entendo - Noah disse finalmente. - Tudo isso é minha culpa, afinal. Isac, espero que me desculpe, mas você é a primeira criatura humana a se hospedar em minha casa, e confesso que não pensei nas mais simples e comuns cortesias.

- Não queria que isso se tomasse uma questão tão seria - ele protestou em voz baixa.

- Serei mais cuidadoso no futuro. Espero que possa me perdoar e perdoar Jacob por essa ridícula e inoportuna troca de agressões. Nós... Nós somos... Deve haver sempre uma importante medida de responsabilidade e controle aliada a poderes de tão elevado potencial de volatilidade, poderes como os que são inerentes aos homens da minha espécie. Mas, no final, ainda somos seres elementares. Cometi o engano de subestimar o sentimento de posse e guarda de que Jacob se viu imbuído desde que o encontrou.

Noah trocou um olhar prolongado, silencioso e repleto de significados com Jacob, um olhar que ia muito alem de um polido pedido de desculpas ou uma justificativa racional. Jacob tratava Isac como uma posse, como um homem sob sua proteção, parte integrante de sua propriedade. Quando o Rei o embaraçara inadvertidamente apresentando-se com trajes impróprios, Jacob percebera que ele olhava para Noah, outro ser poderoso, e isso havia sido absolutamente inaceitável em seu estado mental de total instabilidade. No entanto, para ser honesto, Noah não tinha idéia de como explicar essa conexão peculiar que o Defensor parecia ter com o pequeno ser humano. Toda a situação era muito desconcertante.

Jacob ainda não havia superado o impulso inicial de afastar Isac da presença de Noah. Era importante para o relacionamento que ele desse a Jacob a oportunidade de recuperar o controle sobre si mesmo com dignidade.

- Com licença, preciso ir me vestir - Noah anunciou com polidez. Ele olhou para a irmã, sabendo que Legna não sentiria medo de ficar sozinha com os dois. Retirar-se era, provavelmente, a melhor atitude que podia tomar nesse momento, embora tivesse a intenção de retomar em breve.

O Rei girou num repentino cone de fumaça, o cone girou na direção da escada e subiu os degraus para os aposentos na ala norte do castelo.

Jacob emitiu um suspiro longo, uma evidente tentativa de aliviar a tensão que oprimia seu peito, e fechou os olhos por um momento enquanto todos os impulsos irracionais e perigosos desapareciam depois da partida de Noah. Restava apenas uma consciência mais esclarecida e um profundo pesar, resultado direto do arrependimento gerado por seu comportamento primitivo. O que Isac estaria pensando dele agora? Ele mantinha o braço caído ao longo do corpo, os dedos flexionados como se fosse difícil conter o impulso de tocá-lo novamente. Era melhor colocar alguma distancia entre eles. Agora que havia recuperado o raciocínio e um comportamento mais apropriado, sabia que precisava se afastar de Isac por decisão própria, ou haveria outro confronto. Tudo havia sido um lamentável mal-entendido, mas não conseguira dar voz aos próprios sentimentos como um ser civilizado, inteligente, algo que nunca acontecera com ele antes.

- Desculpe, Isac - ele murmurou, por fim. - Agora, deixe Legna levar você ate o telefone mais próximo. Vá conversar com sua irmã - Jacob sugeriu depois de recuperar a compostura. - Mas não a faça ficar muito tempo exposta ao sol. Ela não é tão forte quanto eu e Noah. Tenho algumas coisas para resolver antes de ir descansar um pouco. - Assim dizendo, decidiu que uma saída rápida seria a única forma de colocar a necessária distância entre ele e Isac. Desse modo, sem mais do que um breve aceno, ele se transformou numa nuvem de poeira e partiu por uma das janelas de vitrais coloridos.

Era luz do dia quando Jacob flutuou pelo castelo de Noah a caminho da biblioteca. Ele olhou em volta, procurando por Isac, e aproximou-se de uma seção mais afastada, no fundo do aposento, atraído pelo ruído de papeis.

Ouviu uma exclamação abafada, um grito contido e um baque súbito de alguma coisa se chocando contra o chão. Jacob chegou a tempo de ver Isac pendurada em uma prateleira, os pés balançando no ar em busca de algum apoio. No chão, bem embaixo dela, havia um tomo de aparência bastante antiga, e a poeira que se espalhara em tomo dele sugeria que o livro havia sofrido a queda cujo barulho ele escutara. À esquerda, bem longe do centro da cena, estava a escada que Isac aparentemente usara.

Com um suspiro exasperado, Jacob alterou a própria gravidade e flutuou até onde ele estava.

- Vai quebrar o pescoço.

Isac não esperava ouvir uma voz tão próxima, considerando as circunstâncias em que se encontrava, e deixou escapar um grito assustado. Uma das mãos soltou a prateleira e balançou no ar antes de encontrar o peito sólido. Ele a segurou contra o corpo, os braços sustentando seus joelhos eo outro em sua coluna. O calor do corpo másculo a inundava com uma agradável sensação de segurança e conforto, e Jacob o pôs no chão segundos depois sem fazer alarde.

- Precisava me assustar desse jeito? Essa sua mania de chegar sem fazer barulho está começando a me enervar.

Comentários

Há 1 comentários.

Por Anjinho Sonhador em 2016-06-09 01:46:33
incrivel, mais Jacob nunca podera tocalo? Ancioso pelos proximos capitulos.