Cap. 02,2:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

Alguns dias depois, Isac subia lentamente a escada da biblioteca, deixando para trás o ambiente fresco e seco e massageando os ombros e a nuca para amenizar o cansaço. A luz do sol penetrava pelas janelas no alto das paredes de pedra do salão alem das portas do aposento subterrâneo onde ficavam os livros.

Tudo a sua volta era silencioso, quieto, vazio de vida e atividade. Não estava usando um relógio, mas suspeitava de que fossem dez ou onze horas da manhã. Era muito estranho estar em plena luz do dia em um castelo onde pulsava o centro de uma cultura, e onde, mesmo assim, não havia nenhum sinal de atividade. Sua respiração parecia ecoar nas vigas do teto da casa de Noah. Havia pedras em todos os lugares, e apesar dos belos móveis no salão principal, tudo era muito simples em sua maneira própria, pessoal. Era a escassez de peças de mobília em aposentos tão amplos que dava a sensação• de ter voltado no tempo. Isso, e o fato de não haver eletricidade. Porem, o essencial era compensado de um jeito ou de outro. Havia iluminação a gás, instalações modernas e todo conforto que se podia desejar ... exceto um telefone.

A biblioteca propriamente dita era um banco de dados seccionado de acordo com um fascinante e lógico sistema de referencia. O sistema em si era impressionante, como a antiguidade dos dados nele registrados. Os Demônios eram historiados dedicados, e havia milhares de livros e pergaminhos de todos os séculos, de todas as eras. Noah, ela descobrira, era um estudioso. Ele se orgulhava de sua biblioteca, e apreciava poder compartilhar tudo que nela havia com alguém capaz de apreciar o valor das coisas tanto quanto ele. O labirinto de livros, prateleiras, mesas e estantes se estendia por toda a área subterrânea do enorme castelo e além dele, de acordo com o relato do Rei. Cavernas e nichos foram abertos nos quatro pontos cardeais, atem das fundações do castelo, e era nesses espaços mais protegidos que ficavam os livros mais antigos e delicados. Havia verdadeiras jóias ali, tesouros de antiguidade e conhecimento, relatos que, segundo Noah, nem o mais antigo dos Demônios havia testemunhado. A biblioteca era tao ampla, ele dizia, tão vasta, que seria necessário mais do que o tempo de vida de um Demônio para conhecer todo o seu conteúdo. No presente, Demônios estudiosos registravam com a mesma fidelidade de seus antecessores todos os fatos que mereciam ser registrados. O mundo crescia em saltos e em alta velocidade, e eles se empenhavam em seu trabalho, dispostos a não perder nada.

Isabella olhou em volta. Havia janelas em todas as partes e o grande salão era inundado pela luz, mas nenhuma dessas vidraças era plana. Havia pinturas, manchas e ranhuras na superfície do vidro. As imagens eram lindas, uma obra de arte como nenhuma outra que ela vira antes, cenas que descreviam períodos variados e temas diversos, como mitologia e telas de grandes pintores. Diante dela uma reprodução de uma obra de Monet. O efeito era que a luz penetrava no castelo em cascatas de cores distintas.

Sabia agora que a luz do sol fracionada pelas vidraças como por um caleidoscópio era mais suportável para os Demônios, mas os raios de sol incidindo diretamente sobre eles eram como um potente narcótico que os levava a inconsciência em segundos. E mesmo esses raios fragmentados eram tão ameaçadores para eles que um Demônio sempre acabava adormecendo em um aposento iluminado daquela maneira. Noah havia explicado que o sol não os atingia de maneira nociva como acontecia com a maioria dos Nightwalkers, mas os expunha ao dano por causar sono. Era um sono tão incontrolável, que adormeciam imediatamente, ficando assim vulneráveis a possíveis ataques. Mas, pelo menos, eles podiam assistir ao nascer do sol, desde que estivesse em local seguro onde pudessem descansar, se fosse necessário. As outras raças de Nightwalkers arderiam em chamo as que os transformariam em cinzas.

De repente ela sentiu que não estava mais sozinha. Jacob deixou a proteção das sombras em um canto do grande salão, o corpo atlético preenchendo todo o espaço com sua presença silenciosa, mas imponente. Nervoso, Isac friccionou as mãos no tecido da calca, enxugando a repentina umidade que surgira com a simples visão de Jacob. Seu coração batia com o dobro da velocidade normal, como se o revoltasse estar aprisionado longe dele. Mesmo sabendo tudo que sabia, e apesar de o próprio Jacob tê-lo prevenido sobre como seria salutar e sensato sentir um certo receio dele, seu corpo praticamente clamava por ele sempre que o via entrar em um aposento ou se aproximar. Tudo nele despertava seu interesse. A aura de segurança e autoridade era algo palpável, as roupas escuras que envolviam seu corpo atlético, contavam historias sobre um físico definido e tentador. Ele usava calças de corte perfeito e de evidente bom gosto, quase sempre de tecido nobre, veludo ou camurça que combinavam perfeitamente em qualidade e tonalidade com a seda de suas camisas. A camisa que ele vestia agora, preta, sugeria um momento de descontração com dois botões abertos sob o pescoço bronzeado e mangas dobradas até os cotovelos. Os braços expostos eram morenos, cobertos por pêlos finos e escuros. Não havia neles relógio ou outro tipo de adorno. O único enfeite era a fivela de prata no cinto de couro. Jacob estava em pé do outro lado do salão, com as pernas afastadas como se os pés estivessem colados no mármore daquele trecho do piso, mas ainda assim se podia sentir sua energia e seu calor. Era como se estivesse atrás dele, perto o bastante para envolvê-lo com seu calor corporal, a cabeça inclinada e o hálito aquecendo-lhe a nuca.

Isac estremeceu e passou a língua pelos lábios subitamente secos, sem perceber que os olhos atentos do caçador eram atraídos pelo gesto.

- Preciso falar com minha irmã - ele disse depois de um silencio prolongado. - Sei que Noah enviou um Demônio a Nova York para "implantar" nela a impressão de que eu me ausentaria por vários dias, evitando que ela venha a se desesperar com minha ausência. Mas quero telefonar para ela.

- Não temos telefones aqui - ele respondeu.

Jacob começou a caminhar em sua direção, devorando a distancia com passos largos e silenciosos como o de um grande felino, passos calculados e graciosos que promoviam uma verdadeira harmonia de músculos tonificados. De repente o salão ficou pequeno. Os olhos escuros de Jacob estavam inquietos, movendo-se com rapidez e objetividade, mas a observação permanecia focada em um único objeto, limitada ao espaço por ele ocupado. Quando Isac percebeu que os olhos profundos e negros estavam fixos em seu rosto, seu coração passou a bater ainda mais depressa, ameaçando romper-lhe o peito. Quando Jacob finalmente o alcançou, ele estava arfante, quase sem ar.

Sem se importar com detalhes como espaço pessoal e limite, ele parou diante do menor e estendeu as mãos, hesitando por um breve instante enquanto buscava respostas em seus olhos. Satisfeito com o que viu, ele afagou sua face. Isac podia sentir os dedos vibrando com intensidade. Ele o acariciava, traçando o contorno de seu rosto com tal reverencia que ele sentia a garganta oprimida em resposta.

- Vou levar você ate um telefone. Pode ate ir para casa, se quiser. Não quero que pense que estamos esperando que abandone sua vida, que negligencie suas responsabilidades por nós.

Era um sentimento sincero, mas Jacob tinha de admitir que não queria e nem podia permitir que o outro se afastasse de seus olhos. Não podia entender essa necessidade premente de mantê-lo por perto, especialmente quando tinha consciência do perigo dessa proximidade. Estava obcecado pelo desejo de tocá-lo, mesmo que fossem apenas carícias simples como a que fazia em seu rosto nesse momento, um movimento lento e delicado com o qual tentava gravar na memória o delicado contorno do rosto. Tocá-lo despertava nele uma deliciosa sensação de conexão.

- Nos vamos levar você ate um telefone, Isac. Legna, que parecia ter se materializado do nada, fez a correção imperiosa. Isac sentiu a imediata irritação de Jacob, uma sensação de desconforto e impaciência descendo por sua nuca e percorrendo todas as costas, uma impressão que, sabia, estava absorvendo dele. Ele recuou um passo, afastando-se com determinação, dando ao outro espaço para respirar, mas o ar parecia ficar estrangulado em seu peito com a separação. Ele balançou a cabeça e olhou para um e para outro.

- Muito obrigado, mas tenho certeza de que posso encontrar o telefone sozinho - insistiu Isac, dividido entre a contrariedade por Legna ter sido interrompida em seu descanso e a frustração por Jacob estar tão agitado e perturbado. Tudo que queria era que todos ali se acalmassem e retomassem a rotina.

- Isac - Legna falou novamente naquele tom firme e diplomático -, não queremos tolher sua liberdade, mas Noah expressou grande preocupação com a possibilidade de você se afastar do nosso circulo de proteção. Por favor, considere, sabendo tudo que sabe agora, os perigos que podem surgir. Ate conhecermos a natureza e o significado de sua relação com nosso povo, ficaríamos mais tranqüilos se permanecesse aqui, ou se aceitasse a proteção e a companhia de um Demônio ao se locomover.

- Legna... - Jacob tentou, injetando uma mistura de ameaça e autoridade no tom de voz. - Não temos o direito de pedir tal coisa a Isac.

- Na verdade – o próprio Isac manifestou-se -, eu não estava pensando em partir. Queria apenas conversar com minha irmã, saber como ela esta. - Ele sorriu, olhando para as mãos empoeiradas e esfregando-as uma na outra. Ele olhou para Jacob, sustentando seu olhar, embora se emocionasse com tanta intensidade. Fitá-lo daquela maneira era como se submeter a um encantamento, como ser hipnotizado, e sabia que ele sentia o mesmo.

- Não precisa nos dedicar todo o seu tempo - Jacob disse, arrancando-o do circulo formado pelos pensamentos. - Você não tem nenhum dever conosco. Pelo contrario, somos nós quem estamos em divida com você. Porque se dedica tanto a resolução dos nossos problemas?

- Você mesmo disse - ele respondeu, sem perceber que os pés o levavam na direção dele, percorrendo a distancia que os separava como se tivessem vontade própria. - De alguma maneira, faço parte de tudo isso. De alguma maneira, meu destino esta ligado ao seu.

Era como se Legna nem estivesse ali. A irmã do Rei foi tomada de assalto por uma estranha sensação de reconhecimento, uma corrente elétrica que unia os dois e que era, na mesma medida, incontrolável e ignorante dos limites e das proibições que permeavam essa união.

Noah havia sido claro ao informá-la de seu dever. Devia monitorar o Defensor. Ao menor sinal de comportamento descontrolado, ela devia chamá-lo com toda a urgência. Mas não sentia nenhuma ameaça, Não identificava em Jacob a luxúria instigada pela lua. Saberia reconhecê-la, pois já a sentira no passado nos homens e mulheres que Jacob levara a presença de Noah.

- Acredite em mim - Isac dizia com voz suave, captando com suas palavras a total e inabalável atenção de Jacob. - Quero ter as respostas para essas questões, também. E quero tanto ou mais do que você. Posso sentir... Ele hesitou, apoiando sobre o peito um punho cerrado. E como se algo estranho ganhasse vida dentro de mim e essa... nova vida viesse com uma ânsia de busca que supera até minha mais voraz curiosidade. Não consegue sentir isso?

- Eu posso sentir - Jacob respondeu solidário. Seus olhos negros e profundos passeavam pelo corpo Isac, voltando aos olhos dele e se fixando neles. - Posso sentir sua fome de conhecimento. Ela ferve no meu cérebro como água em ebulição. Não a conhecia antes de tudo isso acontecer, mas sei que ha novos lugares em sua mente, áreas que antes não estavam ai.

Legna sentiu o coração saltar dentro do peito. Jacob era terra. Só um Demônio da mente podia ler esses pensamentos, experimentar a empatia com uma sintonia tão fina. O conhecimento de Jacob era pessoal demais, muito intimo. Ele não devia ter habilidades de empatia, exceto, talvez, com sua presa durante a caça, mas era claro que ele sabia mais do que ela sobre o funcionamento da mente de Isac.

Jacob semicerrou os olhos e respirou profundamente, o suave movimento de sua cabeça e a concentração em sua expressão sugerindo que analisava esse novo sentido ao seu dispor.

- E sentidos - Jacob e Isac falaram ao mesmo tempo, as vozes soando em perfeito uníssono. - Tudo é muito mais intenso, muito maior do que era antes.

Comentários

Há 1 comentários.

Por Anjinho Sonhador em 2016-06-06 03:59:00
capitulo maravilhoso, os dois estao ligados, incrivel.