Cap. 02,1:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

- Eu vou responder, Isac, mas lembre-se... - Jacob afagou seu rosto mais uma vez, tentando acalmá-lo. - Uma palavra tem terríveis implicações em uma determinada mitologia, a sua, nesse caso, mas nem sempre essas implicações correspondem a realidade.

- Fale de uma vez! - pediu a beira do descontrole.

- Somos chamados Demônios. Somos uma raça de seres elementares, imortais e dotados de poderes orientados para a Natureza. Pertencemos a uma espécie altamente civilizada com um código de honra, um código moral e crenças bastante severos. Desejamos coexistir pacificamente com sua espécie, proteger nossos amigos humanos dos aspectos mais rudimentares de nossa natureza. Por isso Elijah me afastou de você. Um Demônio não pode prejudicar um humano. É proibido. Portanto, é tabu um Demônio tentar... tentar se relacionar intimamente com um humano. Sempre foi assim.

- Mas... - Isac meneou a cabeça, tentando clarear os pensamentos e não se deixar confundir por eles. - Aquela coisa no galpão... O que era? Um Demônio, também? Um de vocês?

- Sim e não. Demônios, em sua maioria, tem a aparência que estamos exibindo agora. Somos civilizados, embora tenhamos momentos de comportamento primitivo que tentamos monitorar e controlar. Saul, a criatura que você destruiu, era um Demônio corrompido e pervertido. É necessário que ocorra um conjunto especifico de circunstâncias para desencadear a transformação, e isso não acontece há mais de um século. Não acontecia... Até hoje.

- E ainda há mais - disse Legna, atraindo a atenção de Isac - Hoje, pela primeira vez, um humano conseguiu matar um dos nossos. Já tentaram, sim, mas nenhum havia conseguido.

- E nessa noite de tantas novidades - acrescentou Noah -, Jacob, também pela primeira vez, perdeu o controle com um humano. Ele é o mais disciplinado, o mais controlado entre todos nós. Talvez não perceba, mas tudo isso tem um significado para nós.

- Acreditem, é tremendamente significativo para mim também - respondeu Isac com tom seco. - Estão dizendo que não podem ser mortos. Por isso se dizem imortais? Porque, se for isso, vi um imortal bem morto naquele depósito!

- Podemos ser mortos. Um pelo outro, por outros Nightwalkers poderosos e... por feiticeiros - Noah revelou. - Ser imortal significa que temos vida longa. Muitos aqui tem muitos séculos de vida.

- Séculos? - Isac engoliu em seco. - Quantos séculos? - ele perguntou a Jacob.

- Um pouco mais de seis, no meu caso.

- Seis séculos? - Ele se esforçava para conter gargalhadas histéricas, uma tendência que se fortalecia desde que conhecera Jacob. – E nós ainda falamos na longevidade do homem! Mas... espere, vocês nem são homens! Não são humanos! - A repentina compreensão das implicações de tal fato o atingiu como uma bomba. - Jacob, mas isso é... É impossível! O que teria acontecido se... se nós... ? Quero dizer... Ah, você sabe!

Todos na sala estavam muito inquietos. Havia um desconforto geral agora.

- Não sabemos - Noah respondeu. - Nunca aconteceu antes. Não com Demônios que não foram corrompidos. Os transformados... bem, há exemplos trágicos de homens e mulheres encontrados...

- Dilacerados - Jacob concluiu sem rodeios. Vira essa realidade com os próprios olhos. Eram fatalidades brutais, sangrentas.

- De qualquer maneira - Legna tomou a palavra -, sempre achamos que o encontro seria demais para um humano, mesmo que o Demônio em questão não fosse corrompido.

Isac não conseguia acreditar nisso. A dominação primitiva de Jacob havia sido envolvente, poderosa. Não queria nem pensar no que teria acontecido se Noah e Elijah não tivessem surgido naquele momento. Pela expressão de Jacob, era claro que ele tinha pensamentos bem semelhantes aos dele.

- Por favor, Isac, acredite em mim! - Jacob interrompeu. - Eu jamais tive a intenção de machucá-lo.

- O que ele diz e verdade. Nessa época do ano, algo acontece com nosso povo que toma muito difícil controlar o impulso de acasalamento - explicou Noah. - Nós nos policiamos com rigor, mas as vezes é mais forte que nós.

- Espere. Espere um minuto. - Isac ergueu as mãos num gesto de contenção, balançando a cabeça como se ainda não pudesse aceitar tudo que ouvia. - Essa história é muito rica em detalhes e cheia de imaginação, mas... Como posso acreditar no que dizem? Quero dizer, vocês todos parecem tao normais! Lindos, é verdade, mas normais.

Jacob sentiu os lábios se distenderem. O que havia nesse humano que despertava nele tão grande alegria? Sempre que estava perto de Isac, sentia vontade de rir. De si mesmo, de sua habitual solenidade, de tudo que havia sido tão serio por tanto tempo. Mas, em vez de ceder ao impulso e rir, ele segurou as mãos do menor, apreciando o calor da pele delicada e a energia gerada pelo contato físico, encantado com a confiança que ele demonstrava aceitando o gesto, em vez de rejeitá-lo, como era de se esperar depois de tudo que acabara de ouvir.

- Não tenha medo - ele murmurou.

Isac abriu a boca para perguntar por que deveria ter medo, mas uma súbita sensação de leveza o inundava e roubava-lhe o fôlego. Ele o fitava nos olhos, sentindo os pés deixarem o chão sem nenhum esforço, o corpo seguindo o comando de Jacob que, com aparente naturalidade, os fazia pairar no ar. Isac passou os braços em tomo do pescoço dele', o coração disparado pela descarga de adrenalina provocada pela experiência inquietante. Sentia o corpo todo tremer.

- O Destino me fez da Terra, Isac - ele contou num sussurro. - Posso manipular a gravidade, comunicar-me com todas as coisas vivas e mover placas tectônicas umas contra as outras, se eu quiser. Posso transformar uma semente em árvore com um pensamento e faze-la murchar com outro. Sinto as forças da vida de cada ser vivo nascido da Terra. Posso caçar qualquer coisa que percorra os caminhos desse mundo com os sentidos aguçados do mais ardiloso predador.

Isac não conteve uma exclamação maravilhada ao perceber que subiam cada vez mais, afastando-se dos outros que os observavam, tocando quase as vigas do teto. Só quando olhou para baixo e pôde contemplar o cenário do alto, ele compreendeu que deviam estar em um castelo. Nenhum outro tipo de construção teria aquelas paredes, o piso, o teto arredondado e todo aquele luxo.

Depois de um momento, Jacob desceu lentamente ate os pés tocarem o piso de mármore, segurando-o contra o corpo de forma protetora enquanto recuperava o peso. Ele viu apreensão nos olhos dele e uma intensa necessidade de ser seu protetor. Mais ainda, podia sentir tudo isso. Percebia que estava desenvolvendo uma sintonia com as emoções e os pensamentos de Jacob. Não sabia como estava acontecendo, mas como poderia fazer essa pergunta, se acabara de sobrevoar a sala nos braços dele?

Testando a habilidade recém-encontrada, ele teve a sensação de que o desejo de Jacob por ele era contido e controlado com grande esforço. Não havia desaparecido, como já começara a suspeitar. Por alguma razão, a constatação causou alivio. Podia parecer absurdo, perigoso e ridículo, mas parte dele não queria ser só uma urgência primitiva e passageira para Jacob.

Ao sair do circulo protetor de seus braços, Isac olhou para Elijah.

- o vento... ? - indagou.

- o Destino me escolheu para o vento - ele respondeu sério, movendo as mãos num gesto teatral enquanto piscava para ele. - Atmosfera, temperatura, ar, esses são meus domínios. Uma brisa invadiu a sala, e a forma atlética de Elijah se dissipou no ar. Como se fosse o próprio ar. A voz dele soava em todas as partes, forte e ressonante, e ele brincava erguendo seus cabelos - O clima acompanha minha vontade, as tempestades e a pressão atmosférica podem ser manipuladas por mim. Posso encher um espaço de oxigênio vital ou removê-lo completamente. O vento é o sopro da vida, e ele sopra por meu intermédio.

- Elijah - Jacob chamou irritado, olhando com ar desaprovador e acrescentando uma sutil mudança no campo gravitacional para dar ênfase ao aviso. Não gostava de ver Elijah brincando com ele, e estava expressando sua contrariedade com total clareza.

- Para mim o Destino escolheu o fogo - contou Noah, notando que Elijah se materializava ao seu lado. O Rei se contorceu numa coluna de fumaça. Ele se manteve nesse estado por um instante antes de recuperar a solidez. - Sou a lava que pulsa no centro da Terra, a conflagração que queima o velho para que o novo possa nascer em seu lugar. Sou o que ferve e inflama, o volátil e explosivo. Sou o calor do sol, o manipulador de todas as energias. O fogo queima em mim e para mim, e ele e tudo o que eu sou.

- Demônios da Terra e do Fogo são os mais raros de nossa espécie, os mais poderosos - disse Jacob. - Noah é o Rei. Nosso líder.

- Mas o fogo não pode viver sem o ar - acrescentou Elijah.

- E o ar não pode ser purificado sem a Terra - declarou Jacob.

- Cavalheiros, por favor - Legna interferiu impaciente. - Querem que Isac e eu deixemos a sala para que possam medir seus tamanhos em cima da mesa?

Isac não conteve uma gargalhada. Legna ousava dizer tal coisa a homens de tão fenomenal poder? Talvez ela também fosse especial.

- E você, Legna?

- o Destino me deu a mente - ela admitiu com voz calma, controlada. - Sou ilusão, aquilo que é criado e real apenas na mente. Sou a personificação da empatia, da lógica e da razão, do impulso e do desejo. Desejo estar em algum lugar, e apareço lá. - Ela explodiu numa nuvem de fumaça com forte cheiro de enxofre. Uma segunda explosão a fez ressurgir atrás de Isac. Sou sedução, carisma e pacificação. Esses são os verdadeiros poderes da mente, e ela os divide comigo.

- Esperem um minuto. Fogo, terra, ar e... mente? O que aconteceu com a água?

- Podemos chamar um Demônio da água, se quiser, mas não aqui - Noah ofereceu generoso.

- Então, existem cinco tipos diferentes de Demônios? Um para cada elemento? Confesso que não conhecia o elemento da mente, mas...

- Os humanos só conhecem os quatro elementos - disse Jacob. - Ate esse momento, temos seis. Terra, vento, fogo, água, mente e corpo.

- Ate esse momento?

- Nunca se sabe o que o futuro reserva. Os Demônios da mente só apareceram há quatrocentos anos. Foi um resultado da evolução.

- Entendo. - Ele olhou para Legna com a testa franzida e ar intrigado.

- Esta curioso com relação a alguma coisa? - quis saber a bela fêmea de Demônio.

- Sim, eu... não posso deixar de pensar em como eles invadem uma sala quebrando tudo, enquanto o que você produz é mais... benigno.

- Demônios fêmeas são muito diferentes de suas contrapartes masculinas. Nossas habilidades tendem para a natureza mais insidiosa do elemento que nos governa. Temos um poder muito grande, mas sutil. Ele só é notado quando já e tarde demais. Por exemplo, um Demônio do fogo fêmea pode manipular a temperatura em poucos graus, comparando sua atuação com a de Noah, por exemplo, mas seu verdadeiro fogo esta no temperamento. O fogo arde em todos nós, na ira, na paixão, no ciúme... Imagine a habilidade de manipular essas coisas. A paixão sozinha já mudou a cara do mundo.

- Para nossa sorte, só existem três Demônios do fogo vivos - Elijah brincou, dando uma divertida cotovelada nas costelas de Noah.

- Dentre eles estão Noah e Hannah, irmã dele e de Legna - Jacob explicou em voz baixa.

- Além disso - Legna continuou entusiasmada -, existem habilidades compartilhadas, as que não se relacionam não só aos sexos, mas aos elementos, também. Por exemplo, Elijah pode se tomar a neblina, uma condição climática, mas um Demônio da água também tem essa capacidade, porque a neblina e feita de vapor de água. Tanto machos quanto fêmeas de Demônios da mente podem se transportar, mas só os machos são telepatas. As fêmeas tem essa capacidade de leitura, mas para os sentimentos, não para os pensamentos. Eles têm telepatia. As fêmeas, empatia.

- Entendi.

E, por mais estranho que pudesse soar, fazia sentido. Ter todo aquele poder na ponta dos dedos era uma idéia excitante. Era uma força que podia corromper absolutamente, como se costumava dizer. o poder corrompe... mas não era o que acontecia com essa raça orgulhosa e de tão elevada autocrítica. Havia conforto para ela nessa constatação, porque precisava de alguma coisa para contrapor a enervante compreensão de que seres como lobisomens e vampiros realmente existiam. Ele também via claramente por que eles se mantinham escondidos, vivendo em segredo, sem revelar sua existência aos humanos. Se os homens encontrassem um meio de aprisionar os Demônios, certamente os usariam e perverteriam ao extremo.

Foi pensando assim, que a ultima peca do quebra-cabeça se encaixou.

- o que aconteceu com Saul? Você disse que ele foi transformado. Como? Estava atrás dele, caçando aquela criatura... - acrescentou, virando-se para olhar para Jacob. - Por isso me perguntou se eu havia visto algo incomum? E quando o encontramos, aquela luz... o outro homem... Jacob, o que era aquilo?

- Saul fo1 capturado. Nós chamamos esse processo de intimação. Há certos humanos, conhecidos por nos como nigromantes, que há muito tempo aprenderam um método secreto de intimar um Demônio, aprisioná-lo e dominar seus poderes por um determinado período de tempo. Sob os comandos do feiticeiro, uma transformação começa, progride e, no final, o Demônio se toma o que você viu, uma criatura sem controle ou noção de certo e errado. É nosso pior pesadelo.

- Oh, meu Deus! - Isac cobriu a boca com uma das mãos. - Quer dizer que pode acontecer com qualquer um de vocês?

Eles assentiram, e Isac sentiu o estômago oprimido em sinal de protesto. Aquelas belas criaturas podiam ser privadas do senso de correção e honra, da graça e da altivez que os marcava?

- Por que estão me contando tudo isso? Não temem que eu os ponha em risco? Por que confiam em mim? Quero dizer, eu... Eu matei um de vocês! Não foi intencional, eu juro, mas...

Jacob o abraçou, um gesto de ternura que fascinou Noah.

Quanto mais via ali, mais o Rei dos Demônios acreditava que algo conectava Jacob aquela pequena criatura humana.

- Isac - Noah manifestou-se -, consideramos o que você fez como um ato de misericórdia. Saul não podia mais ser ajudado por nos. Se você não o destruísse, Jacob teria sido obrigado a assumir essa dolorosa tarefa.

- Teria sido pior se Saul sobrevivesse como monstro, ferindo e matando tudo que encontrasse pela frente - Legna interferiu. - Além do mais, se tivesse alguma maldade, alguma ma intenção, eu já teria percebido. Sentiria em suas emoções. Porem, tudo que percebo e honestidade e coragem impressionantes.

- Estamos lhe contando tudo isso porque acreditamos que, de alguma forma, você faz parte do nosso futuro. - Do meu futuro, Jacob sentia vontade de corrigir. - Demonstrou habilidades incontestáveis esta noite, Isac. Creio que o destino escolheu cruzar nossos caminhos a ponto mesmo de jogá-lo da janela.

Ele riu. Jacob afagou seus ombros e continuou:

- Sendo criaturas dos elementos, acreditamos no destino e em todas as coisas inevitáveis. A mudança da maré, a alteração da face da Terra, a vida e a morte. Esses são destinos naturais. Os indivíduos têm destinos especiais, coisas que fazemos e para as quais fomos criados pelo destino. Você se uniu ao nosso destino por alguma razão, e queremos descobrir qual é.

- Por que? - perguntou, a voz tremendo com o valente esforço que fazia para conter as lágrimas. - De onde tiraram essa idéia? Ate agora, matei um dos seus, espanquei outro e quase fiz você... - Ele se deteve, o rosto corando de vergonha. - Por que diabo ainda querem alguma coisa comigo depois disso?

- Não acho que tenha espancado alguém - Elijah protestou. ofendido.

O comentário fez Isac rir, apesar das lagrimas que já brotavam de seus olhos. Ele olhou para Legna.

- Parece que os homens da sua raça e da minha tem muitos traços em comum.

Legna riu e assentiu. Elijah resmungou alguma coisa. - Então, o que fazemos agora? Quero dizer, como vamos descobrir onde eu me encaixo nessa coisa de destino?

- A história sempre se repete, tomando-se assim um meio de previsão do futuro - Noah explicou. Talvez eu tenha me enganado quando disse que nenhum humano jamais matou um Demônio antes. Pesquisar a história pode lançar alguma luz nessa situação única. Como mais de um século se passou desde que vimos um nigromante pela ultima vez, devemos reexaminar os componentes de uma intimação e os detalhes registrados sobre uma transformação. Talvez assim tenhamos alguma pista. Por que, no mesmo momento em que essas mágicas se renovaram, você apareceu? Vamos todos a biblioteca. Ela é bastante vasta e contem toda a história do nosso povo.

Alguns dias depois, Isac subia lentamente a escada da biblioteca, deixando para trás o ambiente fresco e seco e massageando os ombros e a nuca para amenizar o cansaço. A luz do sol penetrava pelas janelas no alto das paredes de pedra do salão alem das portas do aposento subterrâneo onde ficavam os livros.

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