Cap. 01,3:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

Jacob caiu no chão a uns três metros dela com um estrondo e uma violência que levantou uma nuvem de poeira. Outro corpo aterrissou sobre uma pilha de caixas bem perto dali. Um terceiro baque soou perto das portas abertas, quase aos pés dele. O homem absorveu o impacto da queda como um gato. Então, com um giro magnífico de seu longo manto, ele se virou e correu, passando pelas portas abertas para fora dali. Para longe do galpão.

Ignorando todo o resto, Isac segurou os ombros do homem caído ao seu lado. Ele estava ofegante, como se fosse difícil respirar.

- Jacob!

- Isac, saia daqui! - ele rosnou a ordem imperiosa, levantando-se de um salto e agarrando-o pelos braços para arranca-lo dali a qualquer preço. O movimento brusco e violento o jogou longe, e ele caiu deitado de costas no chão. Isac ficou atordoado por um momento, mas logo recuperou a capacidade de ação, praguejando contra a dor e a posição embaraçosa em que se encontrava, absolutamente disposto a mandar Jacob para o inferno.

As palavras ficaram retidas em sua garganta quando o homem que havia aterrissado sobre as caixas se levantou rapidamente sobre eles.

Ele estava pairando. Literalmente pairando! Flutuando no ar.

Boquiaberto, Isac notou varias coisas extremamente importantes. O homem que pairava sobre ela não era um homem. Bípede, relativamente humanóide, a enorme criatura tinha olhos verdes que brilhavam como lâmpadas em sua cabeça deformada, um brilho malévolo que causava pavor. As orelhas eram enormes e tinham extremidades pontudas e pretas que se abriam numa espécie de leque.

E ele tinha presas. Sim, presas enormes.

Isac sentiu uma estranha vontade de rir. Sabia que a reação era um prenuncio de histeria.

Tudo bem, ele pensou, quando foi que eu dormi?

Era isso! Ninguém pega no ar alguém que cai de uma janela. Ele nunca teria seguido um estranho pela rua ate um galpão abandonado, especialmente no meio da noite. E não existiam seres de orelhas em forma de leque, presas na boca e cara de morcego. Não no Bronx! Muito menos voando pelo Bronx!

A criatura olhou diretamente para ele.

Tudo bem, hora de acordar, ele pensou ao ser invadido pelo pânico.

A coisa alada mergulhou em sua direção. E exibiu as presas. Como um relâmpago cortando o céu, Jacob deixou o chão em outro salto fenomenal, chocando-se com o monstro ainda no ar.

A colisão provocou um ruído assustador de carne e ossos se encontrando, e Isac se encolheu. O choque os jogou sobre outra pilha de caixas do outro lado do galpão.

Desesperado, olhou em volta buscando algum tipo de proteção. A primeira coisa que viu foi um bastão pesado e enferrujado. Ao pegá-lo, sentiu os arranhões deixados pelo metal áspero em suas mãos. Ela se levantou, segurando-o como um bastão de beisebol, brandindo-o com ar ameaçador e pronta para agir, caso Jacob não houvesse terminado o trabalho com o ser espantoso. E ele não havia.

De repente, os dois corpos em luta surgiram no ar numa explosão de caixas de papelão. Dessa vez a besta gosmenta estava em posição de vantagem, as asas batendo freneticamente e ganhando altura, as unhas em forma de garras prendendo Jacob e arrastando-o para o alto, ate arremessa-lo contra o teto com violência assustadora. O estrondo do corpo encontrando o chão foi aterrorizante e levantou uma nuvem de poeira. Horrorizado, Isac viu uma substancia escura jorrando da cabeça de Jacob, formando uma poça sob ele.

Apavorado, ele ficou onde estava, paralisado, vendo a criatura voar em círculos que iam chegando cada vez mais perto, como o vôo de um abutre que antecipa a morte de uma presa suculenta, ate que ele aterrissou com leveza inesperada a sua frente. Podia vê-lo bem agora. Peito saliente, pele emaciada e ventre côncavo. Os lábios eram finos e repuxados, expondo duas fileiras de dentes pontiagudos e as presas. As mãos eram a pior parte. Os dedos magros tinham unhas longas, verdes e finas, e delas jorrava um líquido que era muito parecido com o que já formava uma poça sob a cabeça de Jacob.

- Bonito... - ele sibilou.

- Você podia fazer uma plástica - ele respondeu, levando a mão coberta de ferrugem a boca. - Muito bem, Isac, Ótima idéia a sua! Desafie a grande e ma criatura! Vá em frente!

- Bonita carne, a coisa repugnante continuou.

Ah, agora a situação esta ficando ainda pior, ele pensou.

- Ah, bem... ouvi dizer que ser vegetariano e a moda - ele tentou, recuando um passo ao ver a criatura se aproximar. - Carne quente. Carne gostosa. - A coisa fez uma especulação grosseira e pornográfica sobre a Carne de uma parte especifica de sua anatomia.

- Ei, cuidado com a boca, meu chapa! E fique onde esta, ou eu... eu... - Ele levantou o bastão, tentando pensar em uma boa maneira de intimidar um ser sobrenatural e assustador. - Eu vou dar uma boa paulada em outro pedaço de carne, e você não vai gostar nada do que vai sentir!

Bem, se era um ser do sexo masculino, e só podia ser, pelo que acabara de ouvir, ele ficaria impressionado. Algumas coisas são universais.

Por outro lado, ele pensou, vendo-o sorrir e tocar-se entre as pernas, talvez não. O olhar que ele lançava em sua direção era de pura lascívia. Os olhos reviravam nas órbitas, e uma baba espessa e nojenta escorria por seu queixo.

Bem, se isso não era universal, não sabia mais o que era. De repente, a criatura cansou de brincar e saltou para frente. Isac gritou alarmado, atirando-se instintivamente no chão e rolando para o lado, escapando da área que o monstro determinara como alvo de ataque. Puro instinto, mas o movimento o livrou da primeira tentativa de ataque. Ele se levantou com facilidade muito maior do que esperava para um bibliotecário sedentário, virou-se com o coração aos saltos e viu a coisa se levantando e investindo contra ele novamente. Dessa vez ele decidiu usar o bastão, rezando para não errar o golpe.

Mas errou.

A inércia o fez girar em tomo de si mesmo e cair de costas. Imediatamente, a criatura se atirou sobre ele, rindo e babando de prazer num minuto...

E emitindo um terrível grito de dor no instante seguinte.

O monstro se atirou exatamente sobre o bastão que ele ainda empunhava, enterrando-o no próprio peito. Isac piscou, estranhando a facilidade com que havia perfurado o peito da criatura. Sem nenhum esforço!

Mãos fortes o tiraram de onde ele estava, bem a tempo de salva-lo da explosão que destruiu o monstro numa violenta conflagração de chamas.

Depois de arder por algum tempo, a criatura se desintegrou numa nuvem de fumaça e cinza. O cheiro de enxofre quase sufocou Isac. Teria sufocado realmente, se seu protetor não o houvesse carregado para fora do galpão usando o casaco como um véu para isolar seu rosto do ar impregnado. O ar puro a fez voltar a realidade. Pela primeira vez ele percebeu que tinha o rosto molhado pelas lagrimas.

- Jacob! Pensei que estivesse morto!

- Não. - Ele tocou-o no rosto para limpar a mistura de ferrugem, fuligem e lagrimas. - Só fiquei um pouco... abalado.

- Esta sangrando!

Ele tentou tocar o ferimento em sua cabeça, mas Jacob segurou-o pelo pulso antes que os dedos pudessem toca-lo.

- Estou bem, já disse. E sou eu quem tem de se preocupar.

Como conseguiu manter... aquilo longe de você?

- Não sei. Agarrei a primeira coisa que vi.

Ele levantou um braço, percebendo que ainda segurava o bastão enferrujado. Estava coberto de uma substancia pegajosa. Ele o ofereceu a Jacob, que o recusou como se temesse sofrer algum tipo de agressão. Depois, ele segurou seu pulso e sacudiu seu braço até ele soltar a arma improvisada.

- Ferro - disse ele com tom surpreso, quase divertido.

- Como sabia que devia usar ferro?

- Eu não sabia. Foi a única coisa que encontrei lá dentro. Sorte, acho.

Jacob duvidava disso, mas não disse nada.

- Jacob, o que era aquela coisa? Quero dizer... era real? Espere! Não responda. É claro que era real! Mas como? Foi algum tipo de experiência cientifica que não deu certo? Nunca vi nada parecido antes!

- Aquilo... - Ele parou e respirou fundo, reunindo forcas. - Aquilo já foi um de meus amigos.

Jacob andava pelo salão de sua casa, passando os dedos pelos cabelos que já tinham marcas que mais pareciam valetas, tal a freqüência com que repetia o movimento. Não havia apreciado a tarefa de informar Myrrh-Ann da morte do marido, mas, como sempre, cumprira sua tarefa com seriedade e fora ate o fim. Ela sabia desde o inicio das implicações da captura de Saul, e Noah tivera o cuidado de prepará-la para o pior, mas, ainda assim, Myrrh-Ann reagira com uma compreensível mistura de dor e fúria. Ela havia atacado Jacob com a força dos punhos.

Ela não tivera tempo para causar dor física. Noah estendera a mão e a tocara, drenando toda a energia de seu corpo. Myrrh-Ann desmaiou nos braços do Defensor, e Jacob não suportara carregá-la. Quando amparara o peso do corpo, ele havia sentido o movimento de uma nova vida no interior do ventre distendido. Havia sido como uma traição sentir algo tão intimo sabendo que a mãe da criança jamais teria permitido um contato tão próximo, se pudesse escolher.

Myrrh-Ann não precisava saber que um humano matara Saul. Era melhor que ela o odiasse, Jacob decidiu. Ele tinha a justificativa para isso. Revelar a identidade do verdadeiro responsável pela morte de Saul, nomear o jovem frágil que nem sabia o que havia feito... Não. Noah sentira que ele sonegava informação. O Defensor sentira a percepção aguçada do monarca totalmente focada nele, mas não julgara apropriado dar explicações naquele momento. Antes, precisava ter tempo para pensar. Precisava refletir sobre todas as implicações daquela noite antes de divulgar o que realmente ocorrera no galpão abandonado.

Acima de tudo, o evento era prova incontestável da existência de um verdadeiro nigromante, alguém com poder e conhecimento suficientes para intimar um Demônio. Isso ele havia visto com os próprios olhos, embora se envergonhasse e enfurecesse diante da necessidade de admitir o que vira, porque, então, era forcado a admitir também, que deixara o ser detesmível e ameaçador escapar impune, e agora ele vagava pelo mundo, o nigromante estava solto, o que não era bom para sua raça. Não era bom para nenhum clã de Nightwalkers. Onde havia um, quase sempre havia outros, e Demônios não eram suas únicas vítimas.

E ainda havia...

Ele parou, olhando para o teto. Isac dormia no quarto lá em cima. Rompera uma cápsula de ervas sob o nariz dele, uma combinação que o induzira ao sono, e assim conseguira levá-lo para sua casa na Inglaterra sem dar explicações ou revelar seu endereço.

O homem fizera o impossível. Destruíra um Demônio. E antes disso ele o sentira, ligara-se a sua energia e o localizara! Um ser humano não podia fazer tudo isso. A menos que... A menos que fosse um nigromante.

Isac não era usuário de magia. Jacob teria sentido imediatamente. Havia uma aura natural, um cheiro típico que os identificava. o bastardo que havia capturado Saul impregnara o galpão com seu olor repugnante. A aura de putrefação ainda estava alojada nas narinas de Jacob. o cheiro de Isac era limpo e deliciosamente puro. Mesmo no meio de toda a podridão e da imundície que dominavam o galpão, Jacob ainda pudera sentir a integridade intrínseca aquele aroma. Nada de perfume ou loções, nada de hábitos dissolutos, nem mesmo o almíscar territorial da presença de um macho da espécie.

Ele também não era um dos seres imortais que perambulavam pela noite. Nightwalkers que andavam entre os homens eram quase indistinguíveis deles. Mesmo assim, as raças se reconheciam, percebiam pequenos sinais que os identificavam. Não. Isac era humano.

Mas um humano que podia matar um Demônio? A tarefa era difícil ate para os próprios Demônios! Por isso ser Defensor era um trabalho tão letal. Só o mais velho de sua espécie era poderoso o bastante para causar dano mortal, e só Jacob tinha permissão incondicional para tal. Punição capital era terrivelmente rara, e executá-la não era fácil.

Como havia ficado evidente essa noite.

Isac simplesmente se armara de um bastão de ferro e perfurara o coração de Saul. Jacob não poderia ter feito o mesmo, porque nenhum Demônio podia tocar o ferro. O contato era como ácido sobre a pele. A dor era angustiante. Uma perfuração era pura agonia. E no coração ou no cérebro, a ferida era mortal. Jacob olhou para os dedos queimados pelo contato com a ferrugem no rosto de Isac. Só havia percebido o que acontecia ao sentir o ardor e a dor.

De qualquer maneira, o esqueleto de um Demônio era forte como o aço. Como uma criatura pequena como ele havia conseguido enterrar o bastão no coração de Saul, passando por costelas e caixa torácica? Diferente da vulnerabilidade dos Licantropos a prata, tão conhecida universalmente, a fraqueza de um Demônio diante do ferro era desconhecida pelo ser humano. Isac conhecia todos esses detalhes, e reconhecera na criatura diabólica que a atacara um Demônio intimado? Ou tudo havia sido mesmo uma simples e feliz coincidência?

Jacob lembrou-se de recobrar a consciência no galpão abandonado, no chão, e sacudir a cabeça para remover os cabelos e o sangue que o impediam de enxergar. Bem em tempo, vira o monstruoso Saul debruçado sobre o jovem e reconhecera que não poderia chegar até ele a tempo. Sua cabeça doía tanto, que mal podia se concentrar no poder de que fora dotado. Jamais antes havia experimentado aquele sentimento de impotência e frustração. Cometera enganos imperdoáveis no encontro, e esses erros quase haviam custado duas vidas, a dele e a de Isac. Não deveria ter sido necessária a interferência providencial na situação. Mesmo depois de tanto tempo, mesmo com mais de um século separando esse encontro do anterior, devia ter lembrado de todas as características de um transformado.

Comentários

Há 2 comentários.

Por Anjinho Sonhador em 2016-05-20 12:52:49
fantastico, Jacob esta facinado com Isac. Espero ancioso o proximo capitulo.
Por Nando martinez em 2016-05-20 12:39:44
Simplesmente incrível! Amo sua historia fantástico