Cap. 01,2:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

Isac se virou da janela ao ouvir a irmã girando a chave na fechadura da porta do apartamento.

- Ola, Corr! Teve uma noite divertida? - ele perguntou, olhando novamente para o céu e as estrelas cintilantes.

- Ah, foi... Legal, respondeu a irmã, deixando a chave sobre a mesa do hall do apartamento e tirando a jaqueta. Ele é um rapaz agradável. Gentil. Gentil demais, talvez.

Isac revirou os olhos, buscando a orientação das estrelas.

- Como um homem pode ser "gentil demais" nos dias de hoje?

- Ah, agora vamos ouvir a grande especialista em encontros românticos - Corrine respondeu irritada. Não lembrava quando fora a última vez que Isac tivera um encontro, nem mesmo no colégio. Ela encolheu os ombros, incapaz de entender a atitude anti-social da irmã.

Isac virou-se, desistindo de contemplar a lua.

- Muito bem, então explique o que significa "gentil demais".

- Bem, vejamos... - Corrine se aproximou de Isac juntando-se a ela na apreciação da bela noite de outubro. Ele é muito agradável, muito educado, e muito previsível. Acho que é isso que estou tentando dizer. Não é excitante. Devia sair com ele.

Isac riu, os olhos invadidos pelo humor debochado. É impressão minha, ou você acabou de me insultar?

- Não, é claro que não. - Corrine também riu, passando um braço em tomo dos ombros do irmão e abraçando-o com força. - De jeito nenhum. Só queria que conhecesse alguém. Mesmo que seja um rapaz "bom demais". Não sei se esse homem em especial poderia lidar facilmente com as coisas que saem de sua boca em certas ocasiões, e talvez eu deva preveni-lo sobre seu temperamento assustador.

- Ei, não fui eu que atormentei a mamãe com a praga da adolescência rebelde!

Corrine também riu.

- Não, mas não fui eu que infernizei o papai exibindo o mesmo temperamento da nossa mãe.

Acabaram rindo, sentindo forte compaixão pelos pais. Cada um sabia exatamente de onde haviam herdado a maneira franca de falar e a teimosia, características genéticas que manifestavam com força quase incontrolável.

- Bem, obrigado pela oferta de transmissão do namorado - Isac disse sorrindo -, mas acho que vou recusar a delicadeza.

- Como preferir - Corrine encolheu os ombros, deixando o irmão diante da janela para ir até a cozinha. Ela abriu o refrigerador e estudou o interior gelado com interesse quase científico.

Isac voltou o rosto para a lua. Havia algo nela que o tocava profundamente, provocando estranhas e intensas reações. Nos últimos tempos, sentia-se inquieto, agitado, como se lhe faltasse algo importante... Não sabia o que era. Ficar trancafiado no apartamento o deixava maluco, como se precisasse sair e caminhar para poder respirar melhor. Talvez devesse correr.

Ele balançou a cabeça. Correr numa rua deserta do Bronx depois da meia-noite? Não era de espantar que as pessoas acreditassem que a lua cheia exercia influencia negativa sobre seu equilíbrio mental! Se alguém pudesse ler seus pensamentos nessa hora, jamais reconheceriam nele o Isac calmo e juvenil que todos conheciam e amavam. E, provavelmente, o prenderiam ao chão com pregos, se fosse necessário, para garantir sua segurança.

De fato, Isac freqüentemente se perguntava se essas pessoas que o amavam realmente o conheciam. Como era possível, se ele mesmo começava a pensar que não conhecia a si mesmo?

Levava uma vida confortável e tranqüila, um estereótipo quase patético da vida de um bibliotecário solteiro e solitário. Adorava os livros. Havia uma imensa riqueza de informações a ser conquistada, muito a aprender, inúmeras histórias esperando para serem contadas. Porem, se antes os livros haviam sido a chave para sua satisfação, agora ele se sentia, de alguma maneira... Insatisfeito.

Isac abriu a janela um pouco mais, debruçando-se sobre o parapeito e buscando a noite fria e brilhante. Tudo parecia diferente quando a lua cintilava com aquela intensidade, como se quisesse competir com o sol. As sombras eram mais longas e misteriosas, e o asfalto preto e sem graça tomava-se uma estrada incandescente, uma faixa de brilho radiante.

- Se cair dessa janela, vai ser bem-feito - Corrine comentou com sarcasmo atrás dele. - Não ia colocar a tela de volta?

- E você não disse que ia para a cama? - Isac devolveu, sem se dar ao trabalho de olhar para trás.

Ele ouviu a irmã suspirar e resmungar alguma coisa, provavelmente uma censura impaciente, a resposta habitual de Corrine a tudo que a contrariava.

- Tem razão, eu vou para a cama. E não esqueça de trancar a porta antes de ir dormir. Não fique ai ate tarde olhando as estrelas. Você tem de ir trabalhar bem cedo amanhã.

- Eu sei. Boa noite - Isac despediu-se acenando, ainda sem se virar. Debruçou-se um pouco mais na janela, apoiando os braços cruzados sobre o peito e depositando todo o peso do corpo sobre o parapeito, olhando para a calçada na frente do prédio, cinco andares abaixo. Os cabelos dançavam ao vento suave, cintilando como uma crina negra e criando uma moldura quase sobrenatural para o rosto de traços firmes.

Seus olhos varreram toda a extensão da rua, e ele notou um homem alto, bem vestido e altivo caminhando na direção do edifício. Seus passos ecoavam no silencio da noite. O andar era seguro, relaxado. Ele não sabia como ou por que, mas, mesmo de onde estava, podia sentir que a casualidade dos passos era uma farsa. Havia alguma coisa naquela silhueta máscula e esguia que sugeria um constante estado de alerta, uma espécie de... Implacabilidade.

Ele devia ser muito alto, comparando sua estatura as portas por onde ele passava. O cabelo era excepcionalmente escuro, apesar de a lua brilhar sobre ele. Provavelmente preto, ou castanho-escuro. O homem vestia um longo casaco cinza, aberto e sem cinto, e mantinha as mãos dentro dos bolsos numa postura casual. O casaco dançava em tomo de suas pernas enquanto ele caminhava, abrindo-se aqui e ali, revelando camisa cinza e calça preta. Roupas caras, sofisticadas e imponentes, mesmo à distância.

A vizinhança onde Isac morava com a irmã não era das mais requintadas, e homens de aparência aristocrática e roupas como as dele não eram visitantes habituais. Naquela área, eles podiam ser rotulados como provedores da refeição do dia. Em algum lugar entre os galpões desertos e escuros que se alinhavam pelas alamedas e becos, alguém já devia estar fazendo soar a campainha que anunciava um jantar gratuito.

De repente ele parou. Isac viu um brilho intenso em tomo de seu rosto, provavelmente o reflexo da lua cheia, e teve a estranha noção de que ele sorria. Ele olhava em volta, como se procurasse alguma coisa.

Então, ele ergueu o rosto.

Isac não conteve uma exclamação sufocada ao constatar que o desconhecido olhava diretamente para ele. O coração deu um salto inexplicável dentro do peito. Dessa vez ele sorriu de verdade, um lampejo branco na escuridão. Ele deu mais um passo, olhou para os dois lados da rua, depois se apoiou relaxado em um poste de telefone, voltando a olhar para cima.

- Vai cair dai.

Isac piscou quando a voz ressonante e clara flutuou em tomo dele. Ele não gritava. Sua voz subira os cinco andares da rua até a janela e chegara sem nenhum esforço aos ouvidos dele.

- Está falando como minha irmã.

Ele também não gritava, sabendo, de alguma forma, que não era necessário. Por que não achava isso tudo esquisito? Bem, na verdade, ele achava estranho, sim. Só não se incomodava com a sensação.

- Nesse caso, ela e eu pensamos que você não devia se debruçar numa janela como está fazendo.

- Vou registrar suas preocupações - Isac respondeu com tom seco.

Ele riu. O som rico e atraente parecia girar em tomo dela, envolvendo-a na sensação de seu divertimento. Isso a fez sorrir e apertar os braços em tomo do corpo.

- Além do mais... Veja só quem fala! – ele exclamou. – O que pensa que está fazendo nessa região no meio da noite? Está cansado de viver?

- Eu sei me cuidar. Não se preocupe.

- Tudo bem. Mas ainda não respondeu a minha primeira pergunta.

- Eu vou responder, se me disser o que está fazendo pendurado na janela.

- Não estou pendurado. Estou debruçado.

- Bisbilhotando?

- Não. Se quer mesmo saber, estava olhando a lua.

Ele o viu olhar para cima, para a lua, um gesto tão casual que Isac teve a impressão de que o desconhecido não se impressionava com a beleza do céu. Não como ele.

- Enquanto estava apreciando os astros, viu alguma coisa incomum por aqui? - Ele deu a questão um tom desinteressado, mas Isac teve a impressão de que sua resposta tinha mais importância do que ele queria demonstrar.

- Ah, bem, hoje em dia o incomum é comum. Tem alguma coisa especifica em mente?

Ele o sentiu hesitar. Era como se debatesse internamente algum assunto grave. Depois ele emitiu um suspiro breve e pesado.

- Não, nada. Esqueça. Desculpe se o incomodei.

- Não, espere!

Isac estendeu uma das mãos como se quisesse detê-lo. O movimento perturbou seu precário equilíbrio e ele sentiu o corpo se inclinando, ganhando peso. As meias escorregaram no piso de madeira polida, e os pés saíram do chão no mesmo instante em que o peso do corpo ultrapassou a moldura da janela. Um estranho som de surpresa escapou de seus lábios no inicio do mergulho para a noite de negro e prata. A sensação da queda atingia diretamente o estomago, que parecia virar do avesso, e ele imaginou que poderia vomitar, se não estivesse prestes a morrer.

Mas, em vez de se chocar contra o asfalto, ele encontrou uma superfície sólida, mas acolhedora. A repentina interrupção no movimento fez doer todo o seu corpo, e estrelas brilhantes surgiram em seus olhos, atrás das pálpebras fechadas.

Isac tentava respirar, mas o ar não passava pela garganta, exigindo um esforço maior. A adrenalina a inundava numa onda gigantesca, e ele tentava se agarrar a tudo que fosse sólido e estivesse ao alcance das mãos.

- Tudo bem. Pode abrir os olhos.

Aquela voz. A voz profunda, máscula, viril.

Isac abriu um olho e viu as próprias mãos agarrando as lapelas do casaco do desconhecido.

- É... Incrível, ele gemeu, abrindo o outro olho e fitando o rosto do homem que, aparentemente, acabara de salvá-lo de abrir a cabeça no asfalto. - Incrível... - Finalmente via os traços do desconhecido, e a imagem só fez aumentar o choque que já prejudicava seus sentidos.

Ele era simplesmente lindo!

Não havia outro adjetivo para descrevê-lo. Era mais do que ser simplesmente bonito. Esse homem era absolutamente lindo. Os traços do rosto eram muito elegantes, levando ao extremo o significado do termo nobre. Cabelos e sobrancelhas escuros, dramáticos, contrastavam com os cílios tão longos que eram quase infantis. Os olhos eram magníficos, iluminados, e a boca estava distendida num sorriso que podia ser chamado de pecaminoso.

- Como... Como conseguiu... isso é... Você não poderia... Nunca! - ele gaguejava confuso, as mãos apertando as lapelas do casaco.

- Eu não. Eu não. E, aparentemente, eu poderia. - Agora ele sorria, um sorriso largo e radiante, e Isac teve certeza de que era a causa de todo aquele humor. Ele o encarou seria, furioso, esquecendo completamente que o homem acabara de salvar sua vida.

- É bom saber que alguém aqui esta se divertindo! Jacob não conseguia deixar de sorrir. Ele estava tão focada nele, que ainda não havia percebido que flutuavam quase um metro acima do chão. Era melhor assim, ele pensou, descendo devagar ate sentir os pés no chão. Teria trabalho demais para explicar como havia conseguido pegar no ar uma homem que despencava do quinto andar de um prédio para a morte.

- Não acho a situação engraçada - ele respondeu com honestidade, tomando o cuidado de mantê-lo atento a seu rosto enquanto recuperava o peso normal de um homem para os padrões humanos. - Só estou feliz por constatar que não se machucou.

Isac piscou algumas vezes, percebendo repentinamente o que o estranho fizera por ela. Jacob viu a expressão delicada passar de indignação a horror. Não devia ter feito o pobre jovem lembrar o perigo que correra, embora não houvesse possibilidade lógica de evitar tal lembrança. Ele o viu morder o lábio inferior para conter um tremor. A evidente vulnerabilidade causava uma estranha sensação em seu peito. Consciência e emoção o envolviam, e Jacob descobriu-se estudando cada pequeno detalhe daquele jovem em seus braços.

Ele era compacto. A luz da lua ressaltava sua complexão perfeita. Os cabelos eram negros, sua pele clara, sua pequena estatura e massa corporal tornara quase nem sentido o peso do impacto na queda. Os traços eram firmes, a boca era carnuda, os olhos eram grandes e cintilantes como os de uma criança inocente de uma negra como a própria noite. Era espantoso como a luz da lua intensificava sua beleza. Enquanto o amparava de encontro ao peito, ele sentia seu calor e se deliciava. Já nem lembrava mais como o calor de um ser humano podia ser envolvente, reconfortante.

Um pensamento ilícito quase tomou forma em sua mente, mas ele o sufocou em tempo. A realidade retomou com o choque. Ele quase o derrubou na pressa de encerrar o contato físico. Olhando rapidamente para a lua no céu, pôs as mãos nos bolsos e conteve a estúpida urgência de abraçá-lo.

Descobrindo-se novamente sobre os próprios pés, Isac tomou conhecimento de uma leve tontura. Era espantoso. O homem se afastara repentinamente, como se ele fosse portador de alguma doença contagiosa. Ainda assim, ele se mantinha próximo o bastante para toca-lo, caso precisasse de seu apoio, mas Isac respirou fundo e logo recuperou o equilíbrio.

Jacob o estudava com certo resguardo. Ele empurrava os cabelos para trás da orelha, pequena demais para contê-los. Era espantosa a necessidade que sentia de toca-lo, afagar seus cabelos e descobrir sua textura. Ele engoliu em seco, praguejando mentalmente num idioma próprio e muito antigo, a mandíbula tensa em resultado dos pensamentos perturbadores.

- Não sei como agradecer, senhor... senhor...

- Jacob - ele se apresentou, usando um tom ríspido que o fez recuar assustado.

- Sr. Jacob - Isac repetiu um pouco assustado.

- Não, não, só Jacob - ele o corrigiu, forçando-se a usar um tom mais suave, odiando a idéia de despertar nele o mesmo temor que causava em todos que o conheciam. Estava diante de um humano. Ele não tinha razoes para temê-lo.

- Bem, Jacob... - ele hesitou, os olhos demonstrando cautela. Porem, no segundo seguinte, ele recuperou a ousadia anterior. - Eu sou Isac Russ, e quero que saiba que estou muito grato por... Pelo que fez. Não consigo acreditar que não quebrou o pescoço para salvar o meu!

- Sou muito mais forte do que parece - Jacob respondeu sem dar maiores explicações.

Isac achava difícil de acreditar. Ele já parecia muito forte. E devia ter realmente uma força incomum, ou não o teria segurado no ar em plena queda livre. Seu corpo não era brutal, mas o peito era largo, os ombros eram fortes e, definitivamente, podia adivinhar a excelente forma física que as roupas cobriam. Jacob tinha um tipo atlético, uma estrutura muscular firme e bem definida, a julgar pelo que pudera sentir nos breves momentos em que o tocara e sentira o corpo contra o seu. Mas, alem da aparência de rara beleza, do corpo perfeito, Jacob tinha em tomo dele uma aura de poder que não podia ser comparada a nada que ela conhecera antes. Sim, ele era definitivamente mais forte do que parecia, e não só no aspecto físico.

Era o suficiente para fazer um bibliotecário sem graça tremer. O pacote era completo. Beleza, força, voz, sorriso, maneiras, e um sotaque europeu rico e elegante, como todo o resto dele. Húngaro ou croata, talvez. Ele era quieto, gentil e controlado, e exalava uma autoconfiança que sugeria perigo. A idéia causou um arrepio que percorreu sua coluna.

O pacote era muito atraente, sem duvida.

E devia ser casado e pai de seis filhos.

Isac suspirou, retomando a realidade. O ar exalado empurrou para trás uma mecha de cabelos que caia sobre. Sua testa.

- Bem, de qualquer maneira, muito obrigado por... Você sabe. - Ele apontou para a janela de onde havia despencado.

As sobrancelhas se uniram compondo uma expressão confusa. Como, exatamente, ele havia conseguido pega-lo no ar sem quebrar o pescoço? Parecia impossível!

De repente, Isac sentiu outro arrepio. Dessa vez era diferente. Seus cabelos pareciam estar em pé. Jacob o viu virar a cabeça de um lado para o outro, estreitando os olhos como se alguma coisa chamasse sua atenção. O gesto despertou os instintos de Jacob, e ele procurou sentir na noite o que a perturbava. Parecia impossível, mas ele havia captado exatamente o que ele estivera procurando.

Saul. Jacob podia sentir o cheiro do medo. Podia quase tocar a mancha feia da magia negra. Ele estava perto, como havia suspeitado ao seguir a trilha que terminara repentinamente naquela área. O que havia arrancado Saul e o levado aos gritos e chutes para a mesma da escuridão estava mais uma vez invocando, envenenando e atormentando o Demônio aprisionado.

Mas Jacob não conseguia determinar uma direção. Seus instintos de caçador não encontravam o rastro.

Perplexo, olhou para o homem a sua frente que ainda tinha a cabeça voltada para um lado, para o desconhecido. Seria possível? Essa homem havia preservado aqueles instintos que, algumas horas antes, ele acusara a raça humana de ter banido de si mesma? Ele sentia o que nem ele mesmo podia localizar? Nunca ouvira falar de ocorrência semelhante.

Mas Jacob sentia sua inquietação, captava o cheiro da mudança em sua química corporal, uma alteração provocada pela descarga de adrenalina que a impelia numa reação de luta ou fuga. Sim, definitivamente, ele sentia o Mal bem perto.

- É melhor sairmos da rua – Isac disse de repente, segurando-o pelo braço.

- Por que? - ele quis saber, negando-se a segui-lo.

- Porque não e seguro ficar aqui. - Seu tom de voz dava a entender que se explicava para uma criança de dois anos de idade. - Pare de bancar o machão e venha comigo. Vamos sair daqui.

- Não estou bancando o machão - ele respondeu, sendo deliberadamente obtuso enquanto via a ansiedade dele crescer e provocar reações agitadas, aflitas. Era fascinante ver a cor tingir seu rosto, a veia pulsar freneticamente em seu pescoço, o peito arfar com dificuldade para respirar. - Estou só...

- Escute, não me interessa o que esta fazendo! Saia da rua e ponto final!

- Por que? - Jacob persistiu.

Fascinado, o viu soprar novamente a franja com expressão exasperada. Cerrando os punhos, ele os apoiou no quadril e afastou um pouco as pernas, adotando uma postura beligerante e firme.

- Porque há lugares onde não devemos ficar, especialmente no meio da noite. E este é um deles! Se quer mesmo ficar, tudo bem. Eu vou...

Ele parou. A mão segurou a garganta e um som sufocado brotou dela.

Jacob estendeu a mão, instintivamente tentando ajudá-lo, inquietando-se com o olhar desesperado e o brilho medroso nos olhos cor da noite.

- Isac? O que e isso? - Jacob segurou-o com mãos fortes, protegendo-o com os braços.

- Alguém... Oh, Deus, não consegue sentir o cheiro? Conseguia. Estava a sua volta, fraco, mas inconfundível.

O cheiro de carne queimada. Enxofre também. Mas ele tinha os sentidos aguçados de todas as espécies predadoras, e não era nenhum desses sentidos que trazia o cheiro ate suas narinas. Não havia rastro. Não havia indicação de um caminho a seguir. Tudo era obscuro. Estava perplexo, mas a reação de espanto só perdurou por um momento. Estava diante de um humano sem suas habilidades e, no entanto, ele se comportava como se respirasse densas nuvens de fumaça e enxofre. E não havia nada ali. Nada físico.

Mas alguém exalava essa mistura nociva. Alguém em algum lugar.

Saul.

Uma espécie de claridade repentina se acendeu na mente de Jacob, embora estivesse mais confuso que nunca. Não se deteve contemplando os porquês, ou as possibilidades do que estava acontecendo ali. Só queria saber uma coisa.

- Onde? Pode me dizer, Isac? Onde ele esta?

- Perto! Dentro de mim! - As mãos agarravam o tecido da camiseta como se quisesse rasgá-la, libertar o peito da presença aflitiva. Seus olhos lacrimejavam, e as gotas pesadas corriam por seu rosto, como se o organismo quisesse lavar dos olhos a fumaça que nem estava ali.

- Escute. - Ele segurou o rosto de Isac entre as mãos. - Esta perto, mas não dentro de você. Onde? Tente me dizer onde!

Ele se soltou e começou a correr, tossindo e sufocando com a fumaça invisível, desviando de obstáculos inexistentes e tropeçando em objetos que só ele enxergava. Jacob o seguia. Eles viraram em uma esquina e atravessaram uma rua. Isac virou outra esquina, correu mais um pouco, e eles se viram diante de um imponente conjunto de portas de metal enferrujado.

Um depósito. Um galpão abandonado. Havia uma luz intensa numa das janelas superiores. Uma luz fria e nada natural, um brilho que Jacob havia imaginado que nunca mais veria na vida. Ele segurou o pequeno guia pelos ombros, puxando-o contra seu corpo.

- Escute - ele murmurou com tom confortante -, essa agonia não e sua. Não se apodere dela dessa maneira. Jacob olhou para cima, para a janela iluminada, o coração batendo no peito com a premência do momento, a necessidade urgente de agir. Mas não podia deixá-lo ali sozinho, sufocando. Se Isac acreditava na impressão a ponto de reagir com lagrimas e falta de ar, ele bem podia continuar ate a total asfixia. - Olhe em volta. Não há fumaça aqui. Está me ouvindo, Isac?

Ele estava. Não conseguia falar, mas já começava a respirar melhor.

- Assim é melhor - sussurrou Jacob, seu hálito momo tocando a nuca sensível de Isac. - Agora fique aqui, escondido, e respire.

Jacob agarrou a solda entre as duas portas e as abriu como se rasgasse uma folha de papel, não densas camadas de metal sólido, camuflando o som como era típico de sua natureza. Qualquer um dentro do galpão pensaria que havia sido apenas o vento.

Instintivamente, Isac o seguiu para o interior do galpão abandonado, sem considerar as instruções que acabara de receber. Tinha medo do que estava acontecendo, mas sentia ainda mais medo de ficar sozinho. Por isso o seguia, as mãos agarrando o casaco enquanto ele percorria as sombras. Havia lampejos de luz cortando a escuridão, e a combinação o cegava dolorosamente. Jacob caminhava sem hesitação, como se fosse em plena luz do dia, aproximando-se do brilho metálico com um propósito ameaçador que ele sentia vibrar na atmosfera. De repente, Isac sentiu que ele se erguia a sua frente, aparentemente subindo uma escada. O casaco escapou de sua mão, e ele ficou sozinho tentando localizar o degrau.

E não encontrava nada. Por mais que tateasse, não conseguia localizar o meio utilizado por Jacob para chegar ao andar superior do galpão. Tudo que podia fazer era olhar para a luz que agora contornava sua figura enquanto Jacob devagar ia se aproximando. Isac tinha a impressão de que a respiração ofegante fazia barulho demais, mas precisava de oxigênio. Jacob ia se aproximando mais e mais.

De repente, ele saltou.

Um salto fabuloso e impressionante.

Isac podia estar vendo coisas que não existiam naquela confusão de luz e escuridão, mas seria capaz de jurar que o homem havia executado um salto de dez metros e se agarrando a um objeto invisível suspenso sobre sua cabeça.

O caos explodiu no galpão.

Sem aviso prévio, a fumaça que ele havia respirado antes começou a brotar da luz sobrenatural, invadindo a parte superior do galpão como uma catarata esverdeada, formando nuvens negras e densa. Houve uma explosão violenta, entulho e corpos voaram como mísseis, e ele teve de se abaixar para proteger-se, os olhos queimando com a luminosidade intensa.

Era inacreditável, mas estava chovendo homens!

Jacob caiu no chão a uns três metros dela com um estrondo e uma violência que levantou uma nuvem de poeira. Outro corpo aterrissou sobre uma pilha de caixas bem perto dali. Um terceiro baque soou perto das portas abertas, quase aos pés dele. O homem absorveu o impacto da queda como um gato. Então, com um giro magnífico de seu longo manto, ele se virou e correu, passando pelas portas abertas para fora dali. Para longe do galpão.

Ignorando todo o resto, Isac segurou os ombros do homem caído ao seu lado. Ele estava ofegante, como se fosse difícil respirar.

- Jacob!

Comentários

Há 1 comentários.

Por Anjinho Sonhador em 2016-05-18 09:01:23
incrivel, estou sem palavras para descrever seu conto. Magnifico, nao demore a postar por favor.