Cap. 01,1:

Conto de Salém como (Seguir)

Parte da série OS FILHOS DA LUA

O rei permanecia sentado, seu corpo de proporções impressionantes preenchendo completamente a mol dura de carvalho da cadeira de espaldar alto. Enquanto Jacob se valia do poder da agilidade e da velocidade, Noah prevalecia pela força física e pela imponente musculatura. Era fácil perceber sua estrutura larga e forte sob a calça de montar e a camisa de seda que realçava os ombros imponentes. Noah tinha um estilo próprio de elegância, que era demonstrada na atitude relaxada e na maneira como ele mantinha as per­nas cruzadas apoiando um tornozelo sobre O joelho. Ele continuou sentado por mais alguns instantes, observando atentamente O Defensor.

- Presumo que tenha encontrado seu irmão mais novo em tempo de impedi-lo de causar maiores problemas.

- É claro que sim - Jacob respondeu, riscando instantaneamente a perseguição a Kane da lista de assuntos que se dispunha a discutir naquele momento.

Noah entendeu a mensagem silenciosa e aceitou os termos e os limites impostos pelo velho amigo. Viu Jacob se servir de um drinque, parar para cheirar O conteúdo de um copo e encará-lo com uma sobrancelha erguida.

- Leite - disse Noah.

- Sim, eu sei que e leite - Jacob respondeu impaciente.

- Mas... Leite de que?

- De vaca. Mas e importado do Canadá. Não foi pasteurizado nem processado.

- Hum... Esperava coisa melhor em sua casa, Noah.

- As crianças estavam aqui. Qualquer coisa melhor teria sido forte demais para elas. Se já são terríveis sem estimulante... Nem quero pensar em como teria sido perseguir os seis pequenos encrenqueiros. Minha irmã não e capaz de contê-los. Lembra-se de como ela era quando pequena, não? - O rei balançou a cabeça. - Imagine os filhos dela. E seis!

Jacob riu do comentário aflito, levando o copo aos lábios e sorvendo um gole da bebida.

- Sua irmã Hannah criou O primeiro problema antes mesmo de respirar - disse, fazendo um intervalo para beber mais um pouco do leite. - A propósito, não pretendo dar as costas para nenhum de seus parentes nos próximos dias. - Ele ergueu O copo num brinde que era pura provocação entre amigos. - É claro que estou excluindo Legna desse lado notório de sua genética - Jacob acrescentou com generosidade.

- É claro - Noah respondeu em tom seco.

- Sim, minhas irmãs são diametralmente opostas.

- Como estão as crianças? Sua irmã deve estar enlouquecendo com o esforço para tentar mantê-los todos sob controle, considerando as circunstancias atuais. - Por força do hábito, Jacob ergueu o olhar, indicando a lua que nenhum eles podia ver.

- Por que acha que Hannah os trouxe para cá? Deve ter imaginado que a presença imponente e proibitiva do tio real ajudaria a controlá-los. Noah levantou a mão para massagear um nó de tensão na nuca. - Eu bem que podia ter usado sua ajuda. Acho que sua presença teria sido mais poderosa. Imagine como eles ficariam comportados vendo o Defensor entrar!

Jacob sabia que Noah estava provocando-o com a brincadeira, mas não via muito humor no comentário. O Defensor, no mundo dos Demônios, era a figura que as mães utilizavam para amedrontar os filhos e mantê-los sob controle, submissos. Era um mal necessário, considerando o estrago que os pequenos e jovens Demônios eram capazes de causar, mas nem por isso Jacob se resignava com o lado negativo de seu papel na sociedade. Eram esses aspectos que contribuíam para sua existência solitária. Essas crianças e jovens cresciam, tomando-se adultos e idosos que nunca conseguiam superar completamente O medo do Defensor.

Por outro lado, era também esse sentimento que tomava seu trabalho mais fácil. Tudo ficava mais simples quando sua aparição súbita era suficiente para embrulhar ate os estômagos mais resistentes, reduzindo muito as probabilidades de uma batalha ou do usa da força para controlar os desgarrados. Ainda estava surpreso como esse poder funcionara perfeitamente ate com seu irmão. Kane era notório por estar sempre repetindo que, tendo sido criado pelo Defensor, não se sentia intimidado por seu poder. Agora ficara evidente que isso não era verdade, e Jacob ainda não sabia ao certo o que sentia com relação a essa descoberta. Estava grato por não ter sido forçado a lutar com seu irmão mais novo. Mas sentia-se feliz por saber que O irmão tinha medo dele, como todos os outros? De jeito nenhum.

- E então? Conseguiu descobrir algo de útil? - Jacob perguntou ao rei, notando O livro aberto sobre a mesa ao lado.

Não. - Noah olhou para o amigo, estreitando os olhos verdes e cinzentos, cujas íris eram excessivamente claras em comparação a pele morena, tanto que pareciam brilhar como brasas na escuridão. Seu olhar penetrante indicava que ele havia percebido a astuta mudança de assunto. ­Por mais arcaica que possa parecer nossa cultura e nossos costumes, esses livros provam que nos modernizamos muito. E como ler outro idioma.

- A língua e uma coisa viva. Como estudioso, devia saber que O idioma, mesmo um tão antigo quanto O nosso, evolui com O tempo.

- Sim, eu sei, mas isso não me ajuda muito agora. Esta­mos no meio de uma crise que se intensifica, e não estou mais próximo da solução do que estava antes.

- Então, vamos ter de manter a situação como está como sempre fizemos, Jacob respondeu em voz baixa, com o único propósito de aquietar a evidente frustração de Noah. O temperamento do rei era dez vezes mais famoso que o de sua irmã Hannah, embora ele também exibisse um controle dez vezes mais poderoso que o dela. Noah acreditava firmemente que nenhum individuo podia governar sobre outros se não fosse capaz de controlar e dominar as próprias emoções. - Noah, já enfrentei tudo que se pode imaginar e perseverei. Enquanto eu respirar, ninguém será prejudicado.

- Mas está ficando mais difícil, não e? - Noah ainda fitava o velho amigo nos olhos.

- A cada ano percebo que você fica mais ocupado e mais desanimado. A cada ano vejo alguns de nossos mais respeitados anciões perderem o controle como se ainda estivessem em seus primeiros cem anos de vida. Estou enganado?

- Infelizmente, não posso dizer que se engana - Jacob reconheceu com pesar, suspirando profundamente e passando os dedos pelos cabelos escuros. - Tive de conter Gideon há pouco menos de uma década. De todos os Demônios que eu imaginava serem imunes a essa loucura, Gideon era o que eu julgava mais resistente.

Gideon! Jacob balançou a cabeça, oprimido por suas emoções atribuladas e pelas horríveis recordações do terrível encontro.

- E ele ainda esta se recuperando. Não sai de sua fortaleza há oito anos.

- E não sairá enquanto a situação continuar piorando.

- Jacob tinha a testa franzida quando se sentou na poltrona diante de Noah. - Sua cadeira a mesa do Conselho continua vazia, deixando-nos... Incompletos.

Noah tinha conhecimento da angustia pessoal de Jacob com relação ao fato que discutiam, mas recusava-se a permitir que ele se afogasse em amargura.

- É melhor assim, Jacob. Por enquanto. Não creio que goste da idéia de ter de contê-lo pela segunda vez.

- Não. Mas também acho que ficar trancafiado e sozinho é a pior escolha. A escolha que vai nos levar a um conflito ainda mais devastador.

A amargura na voz de Jacob não passou despercebida aos ouvidos do rei. Noah jamais havia conhecido outra pessoa com o senso de responsabilidade do velho amigo. A morte era a única coisa que poderia fazê-lo desistir de suas obrigações. Enquanto vivesse, esse Defensor nunca desistiria. Mas alguma coisa não ia bem, e já havia algum tempo. Ano após ano, Jacob era forcado a conter os anciões que mais respeitava para dominar a loucura que os dominava temporariamente. Isso o deprimia. O pior, Noah supunha, havia sido o confronto com Gideon.

Antes dele, Jacob havia sido o Único Demônio capaz de professar algum tipo de relação de amizade com o grande Ancião. Essa amizade perdurara até o Defensor ser obrigado a escolher entre o afeto e a Lei. Não houvera escolha, na verdade. Não para Jacob. Para ele, a lei era como o sangue. Forte e inevitável para sustentar a vida. Um Defensor com o grau de dedicação de Jacob, e seu senso de obrigação, acabaria por se destruir psicologicamente se desafiasse à lei.

Noah sabia que se ele mesmo perdesse a razão e o controle de suas faculdades durante uma dessas luas sagradas e Jacob fosse forçado a contê-lo como se não passasse de uma criança recalcitrante, seria difícil não se ressentir contra o Defensor por isso. Sim, sabia que a interferência seria para o seu próprio bem, pelo bem de toda a raça dos Demônios, e definitivamente pelo bem dos humanos indefesos com quem coexistiam, mas Demônios idosos eram orgulhosos e quase sempre arrogantes, e Noah não era exceção a essa regra. Cair vitima da fraqueza já era terrível, ter Jacob como testemunha dessa desgraça era ainda pior. Ser brutalmente punido pelo Defensor, como exigia a lei, era intolerável.

Noah não invejava Jacob por sua posição.

Nesse momento, o homem que ocupava o centro dos apreensivos pensamentos do soberano inclinou a cabeça, deixando-a cair para um lado enquanto o corpo ficava imediatamente tenso. Noah sentiu os cabelos da nuca ficarem em pé, uma reação animal e primitiva ao poder sensorial que invadia o ambiente. Cada Demônio tinha suas habilidades especificas nas quais era melhor que os outros, e as perceptíveis do caçador em Jacob estavam entre seus pontos mais fortes.

- O que foi? - quis saber o Rei.

- Myrrh-Ann se aproxima - Jacob respondeu, deixando o copo sobre a mesa ao lado de sua poltrona e pondo-se em pé. - E está muito agitada.

As duas portas da sala se abriram com violência, como se uma forte rajada de vento as empurrasse. Uma espiral de poeira escura e uma intensa ventania invadiram o local, transportando um pequeno tomado que se deslocou ate parar diante dos dois homens. Logo depois do último giro, o ciclone tomou a forma de uma bela mulher com longos cabelos prateados e olhos azuis dominados pelo medo.

- Noah! - ela gritou em pânico, agarrando-se ao rei.­Ele foi levado! Precisa me ajudar. Não posso perdê-lo! Ele é tudo para mim!

- Acalme-se, Myrrh-Ann - Noah respondeu com tom controlado, envolvendo-a num abraço caloroso. - Presumo que esteja falando sobre Saul.

- Foi horrível! – A jovem beldade soluçou, agarrando-se a camisa de Noah. - Ele se desintegrou diante dos meus olhos, entre minhas mãos! Por favor, precisa nos ajudar!

Noah e Jacob trocaram um olhar apreensivo sobre a cabeça de Myrrh-Ann. Não precisavam falar para saber quais eram os pensamentos um do outro, para sentir o rápido sopro de alarme que os invadia.

- O que quer dizer com ele se desintegrou? - Jacob perguntou com cautela, tentando conter o pavor.

- Quero dizer que ele foi intimado! Escravizado! ­ Myrrh-Ann se virou entre os braços de Noah para olhar para o Defensor com uma expressão que mesclava terror e ultraje. - Num momento estava comigo, tocando meu ventre e fazendo contato com nosso filho que ainda nem nasceu, e no outro... - Ela segurou o ventre num gesto protetor, como se tivesse medo de que a criança também fosse tirada dela. ­ Seu rosto se contorceu numa dor horrível. Ele começou a desaparecer e sumiu numa espiral de fumaça negra e fétida. Ela se virou novamente para o Rei, agarrando a seda de sua camisa com mãos desesperadas, as unhas amarrotando o tecido. - Ele gritou... Oh, Noah, como ele gritou!

- Myrrh-Ann, sente-se, por favor - pediu o Rei. - Precisa se acalmar, ou vai prejudicar o bebe. Fez bem em vir. Jacob e eu cuidaremos disso.

- Mas ele foi escravizado... - Ela tremia da cabeça aos pés.

- Noah, como e possível? Por que meu Saul? Myrrh-Ann baixou a voz para um sussurro rápido e ofegante, as palavras entrecortadas pelo terror. Os dois homens na sala mal conseguiam seguir O confuso fluxo de seus pensamentos enquanto ela balbuciava.

O que ela dizia era verdade? Não viam uma intimação de um Demônio havia quase um século! Talvez ela estivesse enganada. Os Demônios já haviam sido ameaçados de extinção por esse terrível ato de escravização. Fora um truque de um nigromante, um feiticeiro do Mal, um individuo que integrava um grupo que havia diminuído muito e em proporção direta ao crescimento da ciência e da tecnologia, sendo o maior golpe sofrido por eles, O inicio do reinado do Cristianismo. Com o enfraquecimento desse tipo de magia, a paz se impusera.

Havia exceções óbvias, como os períodos de loucura incontrolável que os atormentavam nas luas sagradas, quando alguns saiam em busca de humanos como caçadores, perseguindo presas inocentes, e as ocasionais batalhas com outras raças de Nightwalkers, os seres da noite.

Desde que o mundo existia, havia Nightwalkers; as raças da noite que respiravam melhor O ar noturno, que sentiam o vigor da lua e usavam os períodos de domínio do sol como momentos de descanso, órbitas em que o melhor a fazer era dormir. Demônios, Vampiros, Licantropos e outros dividiam essas características, embora nem sempre tivessem a mesma moralidade e as mesmas crenças.

E desde que existiam os Nightwalkers, havia também. Aqueles que queriam capturá-los, humanos armados de ignorância e convencidos por contos folclóricos, seres cujo maior objetivo era matá-los, destruí-los. Esses humanos, temendo o que não compreendiam, eram fanáticos em sua cruzada para livrar o mundo das chamadas criaturas de puro mal. Os humanos comuns não davam grande importância aos Demônios, mas os feiticeiros conhecidos como nigromantes eram uma história inteiramente distinta. Em seus encantamentos residia um destino muito pior do que a morte para um Demônio capturado.

As acusações de Myrrh-Ann podiam significar um terrível rompimento no equilíbrio de seu mundo. As declarações sugeriam que a maior ameaça imposta pela magia negra de alguma forma renascera. Alguns diriam que isso era inevitável, considerando a recente fascinação dos humanos por cultos de magia negra, mas a especulação era algo muito distante da ocorrência real. Um humano usando magia negra? Depois de todo esse tempo? A história de Myrrh-Ann anunciava uma possibilidade aterrorizante.

- Noah, cuide de Myrrh-Ann. Vou procurar Saul.

- Não! Oh, por favor! - gritou a mulher.

Ela saltou sobre Jacob, que flutuou e escapou com grande facilidade da tentativa de ataque, erguendo-se lentamente no ar, determinado em cumprir seu amargo dever.

- Myrrh-Ann, o tempo é curto - Jacob respondeu com tom firme e severo, a voz reverberando pelo aposento e encontrando eco nas vigas do teto elevado. Sua intervenção firme conteve a histeria no peito arfante da pobre mulher apavorada. - Se puder encontrá-lo em tempo, ainda terei uma chance de tentar salvá-lo. Senão... Bem, você sabe qual é o meu dever. E prefiro trazê-lo de volta para você e o bebe.

Assim que concluiu a frase sombria, o Defensor desapareceu num funil de poeira.

Isac se virou da janela ao ouvir a irmã girando a chave na fechadura da porta do apartamento.

- Ola, Corr! Teve uma noite divertida? - ele perguntou, olhando novamente para o céu e as estrelas cintilantes.

Comentários

Há 1 comentários.

Por Anjinho Sonhador em 2016-05-16 03:52:08
muito legal, continua logo por favor